Uma versão adulterada de Panic Show do trio de rock argentino La Renga foi um arranque de um espectáculo onde o Presidente argentino apresentou o seu mais recente livro, e onde aproveitou para consolidar apoiantes e lançar acusações à oposição.

A gritar em uníssono a palavra “Liberdade”, instantes antes da música começar, ouve-se a plateia, à qual se junta o Presidente, que galvaniza os presentes. Mal toca a primeira nota, Javier Milei transforma-se num autêntico vocalista de rock ao esbracejar, gesticular e interagir com a plateia para que cantem e sintam a música com ele. “Eu sou o rei, o leão”, interpretou, com um deputado do seu partido na bateria e o biógrafo no baixo. “Toda a casta é o meu apetite”, cantou ainda, ao fazer um trocadilho com a letra original da canção para atacar aqueles que durante a campanha eleitoral foram o seu alvo: os partidos políticos tradicionais.

Com uma voz rouca e um casaco de cabedal preto comprido,  Javier Milei cantou na emblemática arena Luna Park, em Buenos Aires, com capacidade para 8.000 pessoas, que já recebeu estrelas internacionais como Frank Sinatra e Duran Duran. “Fiz isto porque queria cantar”, proclamou Milei, 53 anos, que na adolescência foi vocalista de uma banda de covers dos Rolling Stones chamada Everest.

[Já saiu o segundo episódio de “Matar o Papa”, o novo podcast Plus do Observador que recua a 1982 para contar a história da tentativa de assassinato de João Paulo II em Fátima por um padre conservador espanhol. Ouça aqui o primeiro episódio.]

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O lado artístico de Milei não é uma novidade, já que esta faceta conquistou os eleitores durante a campanha eleitoral do atual Presidente. Nas imediações do estádio, havia, inclusive, merchandising que incluía bonés de basebol com citações frequentes do líder ou livros de autores da escola austríaca de economia, que é altamente apreciada por Milei.

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Depois da atuação, na passada quarta-feira, o economista ultraliberal deu uma longa palestra sobre o seu 13º livro “Capitalismo, Socialismo Y La Trampa Neoclásica — De La Teoría Económica A La Acción” (“Capitalismo, socialismo e a armadilha neoclássica”, em tradução livre para português). À medida que o evento ia decorrendo, dos espectadores foram-se dispersando até a sala ficar meio cheia.

O evento teve um modelo semelhante aos que Milei tem vindo a organizar desde que entrou na cena política em 2021. O jornal argentino La Nación considerou-o um ato “absolutamente extravagante”, fora do registo da política argentina, sobretudo em tempos de crise e de ajustamento.

Apelidado de populista, Javier Milei assume-se como um político antissistema, ao pretender quebrar o status quo, mesmo que para isso utilize palavrões e aja de forma impulsiva.

Da televisão à presidência da Argentina. Quem é Javier Milei, o economista que prefere “a máfia ao Estado”?

Milei “continua a ser uma personagem que gosta de dar espetáculo”, disse o analista político Carlos Fara ao jornal Buenos Aires Time, sublinhando que o líder do La Libertad Avanza irá “alimentar sempre a polarização”, e que a sua estratégia de comunicação dá a entender que está sempre em fase de campanha.

Oposição considerou o espetáculo uma manobra de distração

Durante a sessão, Milei denunciou os “malditos comunistas” que culpa pelo mal-estar económico da Argentina e os “inimigos que tentam derrubar o governo porque querem que o socialismo e a miséria continuem”, bem como o movimento pró-escolha “assassino”. “Eu como as elites ao pequeno-almoço!” cantou Milei, na sua versão da faixa Panic Show, dos La Renga.

A oposição argentina ficou pouco impressionada, tendo chamado à atuação uma tentativa de distração dos problemas internos exacerbados pela austeridade de Milei. “Com o seu espetáculo no Luna Park, Milei está a encobrir uma enorme crise económica e social, que a sua administração só agravou”, disse Itai Hagman, deputado da coligação de centro-esquerda Frente de Todos. “Não há perspetivas de melhoria a curto ou médio prazo; a ideia de uma recuperação rápida ou de um boom de investimento estrangeiro é um cenário que existe apenas na mente do Presidente”, acrescentou.

Resultados económicos aquém das expectativas

O chefe de Estado que prometeu mudar radicalmente o país e transformá-lo numa “potência” lida agora com resultados poucos animadores da economia. Seis meses depois de ter tomado posse, 60% dos cidadãos vivem na pobreza e a inflação anual subiu para 290% — à frente da Síria, e da Venezuela, embora a inflação mensal tenha abrandado um pouco nos últimos meses.

Horas antes da apresentação do livro, o instituto nacional de estatística INDEC revelava que a atividade económica tinha abrandado 8,4% em março, numa altura em que o governo de Milei tem estado a implementar medidas de austeridade.

Sergio Gómez, um dos mais de 14 milhões de eleitores que levaram Milei ao poder, admitiu que o seu negócio de transportes saiu prejudicado com o fim “de todos os subsídios aos transportes públicos de passageiros”, mas disse ao jornal The Guardian que está convencido da necessidade de fazer “uma limpeza económica” e que o povo argentino não pode continuar “a viver uma mentira”. Uma outra apoiante venezuelana, Ana Eugenia Clemente, sente um ódio profundo “pela esquerda malvada” que diz ter prejudicado o seu país, e acredita que Milei “é uma pessoa que veio para salvar não só a Argentina, mas o mundo”.

No final, Milei voltou a proclamar a palavra “liberdade” que já havia utilizado no seu discurso de tomada de posse, quando se dirigiu aos “argentinos de bem”, em novembro de 2023. Para o Presidente, a liberdade é a solução para a profunda crise económica e para a inflação galopante da Argentina.

Embora o governo tenha alegado que se tratava de um evento privado, o ajuntamento de pessoas para venda (e revenda) de bilhetes era visível no exterior da arena, que estava vedada, tendo a polícia federal estado no local.