Quando se repete muito uma ideia, diz-se que costuma servir para auto-convencimento. E a ideia de um Governo “estável”, “sólido”, “unido” e “coeso” — escolha-se o adjetivo — tem sido repetida por todos os ministros deste Governo. É assim hoje, como foi antes da maior crise política por que passou a coligação, precisamente há um ano.

“O Governo está coeso“, Passos Coelho, 28 novembro de 2012

“O Governo está absolutamente coeso, portanto a coligação está coesa”, Paula Teixeira da Cruz, 16 abril de 2013

“O Governo está coeso, estamos apostados em conseguir levar a bom porto tudo o que é preciso fazer em termos de reforma de Estado”, José Pedro Aguiar-Branco, 6 maio de 2013

Em Portugal, “temos uma coligação muito coesa, por comparação (com outros países). Um Governo é uma entidade colectiva com várias perspectivas dos seus membros. É porque há posições diferentes e por elas serem discutidas e consensualizadas, que isso dá valor às políticas públicas”, Miguel Poiares Maduro, 18 de junho de 2013

“Gostaria de sossegar os espíritos mais inquietos: o Governo está totalmente coeso e unido num propósito comum que é o de concluir o Programa de Ajustamento Económico e Financeiro”, António Pires de Lima, 22 outubro 2013

“O Governo está coeso e sólido como sempre esteve”, António Pires de Lima, 30 de junho de 2014

Faz agora um ano que Paulo Portas comunicou ao país, através de uma carta de demissão difundida pela comunicação social, a sua demissão “irrevogável”. O mote era a escolha de Maria Luís Albuquerque para substituir Vítor Gaspar, mas o fundo da decisão era a necessidade de o Governo abrir uma nova fase da governação, mais centrada no crescimento e menos em medidas difíceis de austeridade. A demissão acabou por ser revogada: por Passos Coelho, que recusou a aceitá-la; e pelo CDS, que na primeira reunião da direção empurrou Portas para um recuo. Assim aconteceu.

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Um ano depois, com Portas promovido a vice-primeiro-ministro e a pasta da Economia nas mãos do CDS, a coligação está mais calma. Mas, na estrada que leva às eleições de 2015, ainda se vêem muitos de sinais perigo.

A irrevogabilidade do entendimento entre Passos Coelho e Paulo Portas para o próximo ano, em quatro partes:

Primeiro sobressalto: Resposta ao Tribunal Constitucional

Passos Coelho não quer viver em constante “sobressalto constitucional”, mas ainda poderá ter mais uns “sobressaltos” até ao final do ano. Os juízes do Palácio Ratton ainda têm para avaliar a constitucionalidade do Orçamento Rectificativo, onde está inscrita a Contribuição Extraordinária de Solidariedade, e este pode bem ser o rastilho para uma (nova) crise na coligação. E é já certo que o novo corte nos salários da função pública também vai parar ao TC.

Depois do último chumbo ao Orçamento do Estado de 2014, a ministra das Finanças admite ter ficado com um buraco nas contas públicas de 860 milhões de euros (brutos) e a resposta a este chumbo divide os dois parceiros. É que o CDS anda a fazer da redução da carga fiscal uma bandeira, mas tanto Passos Coelho como Maria Luís Albuquerque já disseram que não há folgas para usar, admitindo mesmo novo aumento de impostos.

Portas até concordou com o recente aumento da TSU (em 0,2 pontos percentuais) e do IVA em 0,25 destinado à Segurança Social, mas o vice-primeiro ministro acredita que, para que os partidos recuperarem a tempo das eleições legislativas, o Governo precisa de dar sinais de abrandamento da austeridade. As respostas aos chumbos do Constitucional têm gerado as maiores crises no seio do Governo e com o leque de medidas que podem ser usadas a ficar mais pequeno — e o tempo a escassear –, o aumento de impostos parece ser cada vez mais provável.

Segundo sobressalto: O último orçamento

A discussão do Orçamento do Estado para 2015 será o ponto de maior tensão para esta coligação no último ano. Os meses de setembro e de outubro concentram todas as decisões e os pontos de rutura entre PSD e CDS podem tornar-se mais evidentes. Sobretudo se Paulo Portas quiser fazer vingar algumas das ideias adiadas dos centristas no último orçamento desta legislatura.

Há vários pontos em cima da mesa, desde logo descer o IRS e impedir as taxas sobre produtos nocivos para a saúde (excesso de açúcar e sal). Ainda esta semana, o ministro da Economia, Pires de Lima, voltou a lembrar que deseja que o Governo possa “iniciar um processo de redução da carga fiscal, que atinge particularmente os que vivem do seu trabalho, já a partir de 2015”. Mas do desejar ao acontecer vai um longo caminho que passa pelo Terreiro do Paço.

No Ministério das Finanças as contas são outras. Na última audição do Parlamento, Maria Luís Albuquerque fez questão de sublinhar que “enquanto existir défice e a dívida pública continuar demasiado elevada, não podemos falar de folgas”. E em 2015 as contas são apertadas. Com o chumbo do corte nos salários a valer 860 milhões de euros brutos só este ano (no próximo será mais), e com a nova taxa das pensões a caminho do Constitucional, do lado de Passos ninguém fala abertamente da intenção de baixar o IRS em 2015, apesar de já estar constituída desde o início do ano a comissão de reforma do imposto.

Mas na lista centrista há mais temas à espera de oportunidade: o aumento do salário mínimo e a baixa do IVA da restauração.

Terceiro sobressalto: Acordo de coligação, o tabu de Portas

As táticas do PSD e do CDS não coincidem: o PSD quer uma clarificação o mais rapidamente possível sobre uma coligação pré-eleitoral para as eleições do próximo ano, o CDS quer empurrar para depois da discussão do Orçamento do Estado. O desencontro tornou-se mesmo público, na sequência de uma entrevista do vice-presidente do PSD, Marco António Costa à Rádio Renascença, em que pediu uma rápida clarificação sobre uma coligação pré-eleitoral.

O impasse criado por Portas está a deixar alguns setores do PSD no Governo intranquilos e, perante o avolumar de dúvidas (mesmo sobre a sua continuidade no Governo e na coligação), o vice-primeiro-ministro resolveu fazer uma declaração inédita. À Lusa, declarou que quem escolhe são os portugueses em eleições. Ou seja, tenciona candidatar-se nas próximas eleições legislativas, com ou sem o PSD.

Mas a negociação do acordo de coligação promete ser um desafio. Passos já admitiu ser capaz de governar com o PS, o que o CDS não gostou de ouvir. A dúvida é, pois, saber se esse acordo poderá vetar ou não um Bloco Central ou deixará claro que o PSD nunca poderá trocar o PS pelo CDS, obrigando a um Governo a três.

No plano das medidas, o CDS quer um acordo de coligação que garanta à partida que o CDS tem um peso maior — ao contrário do que aconteceu no primeiro — que inclua não só as medidas da coligação como a escolha do candidato a apoiar para Presidente da República.

Mas no meio disto ainda pode acontecer mais um momento de tensão, que tem a ver com a lei eleitoral para a Assembleia da República (ponto de consulta obrigatória, segundo o atual acordo de coligação).

Se o PS apresentar em breve a reforma da lei eleitoral, como António José Seguro prometeu, reduzindo o número de deputados, obrigará o PSD a tomar uma posição estratégica: de um lado, um consenso com os socialistas numa reforma com a qual concorda nos princípios gerais e que reduziria o peso dos pequenos partidos, do outro, o parceiro de coligação que não quer ouvir falar de uma reforma do sistema eleitoral que reduza a representatividade dos pequenos partidos. Mesmo que a reforma fique adiada para futuro, o PSD será obrigado a dar um sinal político.

Quarto sobressalto: Escolha do comissário europeu e candidato a belém

Os nomes importam. E para o CDS importam muito. O primeiro a estar em cima da mesa é o do próximo comissário europeu indicado pelo Governo português e a escolha pode não ser de fácil consenso. A única certeza que Passos Coelho já deu foi a de que este não será da área socialista.

Mas os nomes não ficam por aqui. Há eleições presidenciais em 2016 e do acordo de pré-coligação eleitoral entre PSD e CDS pode constar o candidato a Belém. Aliás, os centristas querem que esse seja um dos pontos do acordo. E, para isso, já lançaram o nome de Marcelo Rebelo de Sousa. Em entrevista à TSF, António Pires de Lima disse que Marcelo era quem estava melhor colocado e que “gostaria que PSD e CDS apoiassem um candidato num momento decisivo, pode ser na primeira ou segunda volta das presidenciais, que tivesse possibilidade de as ganhar e ganhasse”.

Ora Marcelo não faz dos planos de Passos Coelho. Na moção que levou ao congresso, o líder do PSD Para Passos defendeu que o candidato presidencial não seja “um “protagonista catalisador de qualquer conjunto de contrapoderes ou num catavento de opiniões erráticas em função da mera mediatização gerada em torno do fenómeno político”. Nem “deve buscar a popularidade fácil”. Palavras que foram interpretadas como sendo dirigidas ao comentador da TVI, que reagiu a esta moção, dizendo mesmo que Passos quis exclui-lo da corrida. O líder e o comentador ainda fizeram as pazes, num congresso do PSD, mas a marca ficou lá.