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Nos primeiros meses de 2020 esperávamos a chegada de algumas séries que tínhamos já debaixo de olho, graças a trailers sumarentos e elencos milionários. Mas não pensávamos que seria o streaming a olhar sobre nós, a garantir-nos ocupação e a mostrar-nos o mundo possível a partir do sofá (ou de qualquer outro sítio a partir de onde pudéssemos espreitar um ecrã). Se havia suspeitas de que as séries concorriam para a posição de produto de entretenimento mais desejado — por produtores, atores, realizadores e pelo público –, o ano que agora acaba veio esclarecer eventuais dúvidas. De forma inesperada e sem qualquer charme, mas foi impossível fugir ao óbvio: as séries, de ficção, documentais, mini, maxis, médias e de outros géneros, foram a nossa companhia, a melhor, a mais criativa e a mais escapista.

Porque prestámos (e continuamos a prestar) mais atenção do que nunca ao que a televisão tem para nos oferecer, temos mais favoritos, as escolhas multiplicam-se, os conselhos que temos para dar a quem pede sugestões são em maior número, mais variadas e em géneros cada vez mais variados. O outro lado da moeda é evidente: com tanta oferta e tanto tempo de ecrã, foi mais fácil e mais frequente encontrar séries que ou não vimos até ao fim ou, mesmo que tenhamos chegado ao último episódio, nos deixaram entre abraços com a desilusão. Este é um resumo possível, assinado por quem habitualmente vê séries e sobre elas escreve aqui no Observador.

Alexandre Borges

Melhor Série: “The Last Dance” (Netflix)

Bem sei que o espírito do tempo manda dizer que vivemos a idade de ouro da ficção televisiva; na minha humilde opinião, quem a vive é o documentário. As séries documentais foram buscar recursos narrativos e técnicos à ficção e, no fim do dia, se o que importa é ver uma história bem contada, é difícil fazer melhor do que quem tem o trunfo da verdade do seu lado contra o da mera verosimilhança. Tal como há dois anos com “Wild Wild Country”, este ano, não houve série de ficção capaz de fazer melhor do que “The Last Dance”, o brilhante documentário dirigido por Jason Hehir para a ESPN e Netflix acerca da derradeira temporada da equipa de sonho dos Chicago Bulls. Do primeiro ao último dos dez episódios, não há cinco minutos assim-assim. Heróis, vilões, ambição, traição, volte-faces e redenções – está tudo ali.

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Melhor personagem: Steve Kerr (“The Last Dance”, Netflix)

Quem viu “The Last Dance”, sabe do que estamos a falar. A personagem do ano poderia ser o monstro Michael Jordan, ou o louco Dennis Rodman, o amargurado Scottie Pippen, o pastor Phil Jackson ou o ínvio manager Jerry Krause. Escolhemos o secundaríssimo Kerr por quanto representa da arte de contar histórias. O modo como é preparada a sua aparição em “The Last Dance”, muitos episódios antes, rumo ao momento verdadeiramente redentor em que culmina, é de ir às lágrimas de alegria. Uma pequena grande personagem, numa grande história, contada por brilhantes narradores.

Episódio do ano: “Marathon” (“State of the Union”, HBO)

Se nos perdoarem trazer para aqui uma série de 2019 (o equivalente contemporâneo ao século passado) que talvez muitos não tenham visto, ela é “State of the Union”. Pequena pedra preciosa escrita por Nick Hornby, realizada por Stephen Frears e interpretada pelos maravilhosos Rosamund Pike e Chris O’Dowd, retrata os encontros de um casal em crise, dez minutos antes de seguirem para a sessão semanal de terapia conjugal. Por enquanto, tem apenas uma temporada de 10 episódios de cerca de 10 minutos cada; portanto, é para ver tudo como se fosse um só filme ou peça de teatro. A escolher um episódio que seja, pois, o primeiro – e deixar o autoplay da HBO fazer o resto.

Desilusão do ano: “Gambito de Dama” (Netflix)

Tal como “Boneca Russa” ou mesmo “Chernobyl” ou outras coisas em anos anteriores que um misterioso conselho de sábios parece decidir, algures, que todos “temos mesmo de ver”, “Gambito de Dama” não está à altura do hype. É uma boneca animada a passear entre caricaturas de russos, machistas e familiares pretensamente atormentados. Uma personagem sem sentimentos, que desfila a beleza de Instagram em cenários de Instagram, iniciada no xadrez pelo contínuo de um orfanato que não se percebe por que razão preferiu uma carreira na cave à de xadrezista de classe mundial. Dizem que a história tem ecos da de Bobby Fischer. Lamentamos, mas, mais uma vez, qualquer bom documentário sobre Fischer revelaria muito mais profundidade humana, política e simbólica do que esta promenade vistosa para entreter olhos sonolentos, de portátil ao colo, no fim de mais um longo dia de trabalho e pandemia.

André Santos

Melhor série: “Dave” (HBO Portugal)

Dave é Lil Dicky, o nome artístico de David Burd, que dá corpo e inspiração a uma história que pode ser a de muitos rappers brancos, como também pode ser a de qualquer aspirante a artista. Ao longo de dez episódios, “Dave” vai convencer o mundo – e o espectador – sobre as razões pelas quais devemos acreditar nele como artista, que a sua arte é mais do que uma piada, embora a piada seja o sustento da verdade e a elevação de tudo isto. A chave aqui é “acreditar”. “Dave” passa a primeira metade da série a construir sorrateiramente as personagens, a dar razões para as detestar, deixando o espectador fixar-se na ideia de que são inocentemente bidimensionais. Lil Dicky assume que quem está do outro lado irá consumir a série por inteiro: e acertou, “Dave” bateu recordes de audiência do “FX”, incluindo os de uma série à qual deve muito, “Atlanta”. Nessa assunção, recompensa o espectador nos cinco episódios finais, quando deixa as personagens saírem da casca, afirmarem-se e viverem aquilo que estavam a conter nos primeiros episódios. “Dave” termina com uma homenagem a “Trapped In The Closet” de R. Kelly, exponenciada ao limite do que é permitido ver na televisão: e não tem a ver com sexo, mas com moralidade. No fim, Dave/Lil Dicky consegue o que quer, afirmar-se como artista, humorista, rapper, tudo perante uma audiência de descrentes. Um deles é o espectador – quem aqui escreve é um bom exemplo –, que viu tudo a desenvolver-se num pacote de dez episódios, cerca de cinco horas, absolutamente brilhantes.

Melhor Personagem: Shaughna Phillips (“Love Island”, ITV2)

Antes do confinamento, passei um mês e meio praticamente fechado numa casa numa aldeia inglesa. Quase no final desse período, começou a sexta temporada de “Love Island”, no ITV2. Entre 12 de janeiro e 23 de fevereiro vi todos os episódios, em direto. Cerca de uma hora diária (exceto aos sábados, quando não havia emissão). Não me lembro da última vez que segui, regularmente, um programa em tempo real, em que fiz um esforço para tal, do início ao fim, sem perder um único episódio. Aliás, um único segundo. No último ano, o único período em que tive mais liberdade para não estar em casa, passei-o a ver gente fechada numa casa, na Cidade do Cabo, na África do Sul. Sim, é reality TV e Shaughna não é bem uma personagem, é uma pessoa, mas ao fim de mês e meio tornava-se impossível de ver os participantes como pessoas. E, para ser totalmente honesto, Shaughna nem era a minha participante favorita, mas a forma como sobreviveu ao longo de semanas (depois de ter perdido o seu par e de não existir nada que justificasse a sua permanência no concurso, a não ser a empatia dos colegas) – até finalmente ser votada para fora – foram uma espécie de vitamina para os meses seguintes: se a Shaughna consegue sobreviver a isto, eu também consigo. Não é a melhor das mentalidades, mas é aquilo que a reality TV ensina.

Melhor Episódio: “How To Put Up Scaffolding” (“How To with John Wilson”, HBO Portugal)

Provavelmente nunca ouviu falar de John Wilson e o autor desta série documental está bem ciente disso. “How To With John Wilson” (a quem já foi encomendada uma segunda temporada) é um raro momento de televisão, em que um objeto estranho regista o antes e durante de um momento que irá alterar a sociedade (a pandemia), de forma involuntária, usando esse aspeto para falar, de forma universal, das obsessões humanas. John Wilson filma a partir de Nova Iorque, com as suas características únicas, mas fala para o mundo. Transforma o seu olhar em narrativas que comunicam com as manias, obsessões e fobias de qualquer um. É um dom raro este de construir a partir de algo muito específico para conceder ao espectador um conhecimento, uma dádiva, universal. Como é o caso de andaimes, que é sobre o que trata este episódio, que começa por esclarecer a razão dos andaimes serem uma indústria tão grande em Nova Iorque, para depois dar uma lição de montagem e sobre diferentes estéticas. Não vale a pena explicar como ele chega lá, mas resolve tudo com a acertada conclusão de que como a obsessão com a ilusão de segurança transforma as coisas e o modo como se habita com elas. E como isso vai para lá das coisas e molda a personalidade humana, tornando-a mais frágil e vulnerável à aceitação da vida. É intenso. É muito divertido, perspicaz e importantíssimo. John Wilson explicou o sentido da vida através de andaimes, mas também o faz noutros episódios com coberturas de sofás, memória e risotto.

Desilusão do Ano: “Normal People” (HBO Portugal)

A pior coisa que vi na televisão foi aquele documentário sobre o polvo na Netflix (“My Octopus Teacher”). Seguido pelo “The Social Dilemma”, também na Netflix. Mas não são séries e, na realidade, não vi séries más neste ano. Tive sorte. Mas “Normal People”, que é um bom complemento ao livro de Sally Rooney, fez-me sentir velho. Muito velho. E ainda não tenho quarenta. Mas um dos charmes da série é precisamente esse, fazer sentir velho quem já não está nos 20s ou está com a vida mais ou menos formada. Quando ainda se pode mudar as coisas, não olhar para trás e ver a excitação, mas encontrar isso no presente, no futuro. Ainda ter coragem para sentir que se pode mudar o mundo, ou fazer qualquer coisa do género. Quando ainda se pode mudar de país sem bagagem. Sim, ainda se pode fazer isso nos 30s, nos 40s, nos 50s, nos 60s ou nos 70s, mas a dura realidade é que vamos ficando velhos. Por mais que os 30s ou os 40s sejam os novos 20s, estamos velhos. “Normal People” disse – e fez – isso muito bem. Não é uma má série, só me deixou chateado. Estou velho.

Joana Stichini Vilela

Melhor Série: “Giri/Haji: Dever/Vergonha”, (Netflix)

Se dependesse do algoritmo, nunca teria chegado aqui. A esta série, digo. A finta provoca alguma satisfação mas também dá que pensar: que criações extraordinárias andarão a escapar-nos por entre os pingos do algoritmo?

E por falar em pingos, a dada altura de “Giri/Haji”, um dos personagens diz qualquer coisa como: “Há muito tempo, alguém deixou cair uma pedra na água. Só agora é que estamos a ver as ondas.” A alegoria, que também pode ajudá-lo a perceber como se forma um tsunami, serve para explicar que não há atos sem consequências. Aqui, resulta numa alucinante teia de ações e reações intercontinentais e dá gás ao enredo.

Esta série policial britânica, passada entre a Tóquio dos Yakuza e o underground londrino LGBT, é capaz de ser a maior surpresa do ano. Uma mistura inusitada de géneros, com tanto de sangue e emoção, como de drama e humor. A lufada de ar fresco estende-se à estética e ao lado formal. Mesmo que nem sempre resulte, deixa no ar a provocação: será que naquela que é sem dúvida a idade de ouro da televisão e no ano em que mais tempo passámos em frente a ecrãs andamos a exigir pouco ao nível da inovação e da ousadia?

Uma nota final para o magnífico Will Sharpe, cujo Rodney lhe valeu um prémio Bafta e para quem a Internet já pede um spin-off.

Melhor Personagem: Arabella (“I May Destroy You”, HBO)

Uma das séries mais marcantes do ano, muito por causa da protagonista. A britânica Michaela Coel interpreta (e escreve e realiza) a história de Arabella, vedeta do twitter feita ficcionista, que tenta reencontrar-se depois de ser vítima de violação. Consentimento sexual, racismo, sexismo, dependência das redes sociais e de outras drogas: as suas questões são duras, mas reais. E Arabella não nos dá tréguas. Interpela-nos, desinquieta-nos, tira-nos da nossa zona de conforto. Uma personagem cheia de inseguranças e contradições, perdida no jogo de espelhos entre a Internet e a vida cá fora, com quem não resistimos a empatizar.

Melhor Episódio: “Favourites” (“The Crown”, Netflix)

Entre muitas outras virtudes, um dos aspetos mais sedutores da série “The Crown” é a forma como explora a complexidade humana de personagens que até agora estávamos habituados a ver apenas nas páginas dos livros de História. Esta quarta temporada acicatou o debate sobre se haverá limites para a efabulação das vidas de figuras que, apesar de públicas (o que quer que isso queira dizer), terão direito à sua própria narrativa. Mas quando se assiste a episódios como “Favourites”, em que de forma subtil e incisiva se debate um dos últimos tabus da parentalidade (os filhos favoritos) e também um dos medos mais profundos das mães (que os filhos cresçam para ser pessoas desprezíveis), aqui encarnados numa pessoa que sucede ser a Rainha de Inglaterra, o tema é, não indiscrição, mas ficção, na sua encarnação mais sublime e universal.

Desilusão do Ano: “The Undoing” (HBO)

Havia muitos outdoors espalhados por Lisboa, o que não é assim tão frequente. Protagonizam Nicole Kidman, que ainda em 2017 brilhara em “Big Little Lies”, e Hugh Grant que, apesar de ser Hugh Grant, também é Hugh Grant. E assina David E. Kelley, o homem que nos primórdios disto tudo fez a diferença com coisas como “Picket Fences”, “Ally McBeal” e, há menos tempo, “Big Little Lies”. Portanto, sim, verdade, “desilusão”. Porque, depois do tédio e do cliché, do plástico e do previsível, tudo o que se retém antes de adormecer são os casacos compridos de Kidman e o casting de Matilda de Angelis como uma perturbante assombração.

José Paiva Capucho

Melhor Série: “The Plot Against America” (HBO)

Não vai concordar com esta escolha se for contra adaptações literárias à televisão ou ao cinema. Mas esta série faz jus ao livro de Philip Roth que lhe deu nome. Numa altura em que está na moda criar cenários distópicos sobre universos onde o populismo reina, “The Plot Against America” leva o troféu. Aqui, os EUA evitam meter-se na Segunda Guerra Mundial e resolvem sentar-se à mesa com Hitler, sendo o piloto Charles Lindbergh o protagonista do negócio. Aqui, os judeus são perseguidos em terras americanas, mas sem serem levados até campos de concentração. O antisemitismo sente-se nas ruas, no comércio, no mau olhado, no confronto de palavras. O ódio e o medo que vai crescendo contagia o próprio seio familiar judaico. E é esse o grande trunfo desta série: levar-nos para dentro dos lares de quem é discriminado, sentir a sua dúvida, avaliar as suas escolhas. No fundo, colocar o espectador dentro do universo da história, que será sempre um bom objetivo para qualquer série.

Melhor Personagem: Bojack Horseman (Netflix)

Bojack Horseman vai continuar a ser a personagem, mesmo que decida parar de existir nas nossas vidas. É o nosso cavalo falante favorito e aquele que, mesmo não sendo figura de carne e osso, nos representa melhor. A sexta e última temporada de uma das mais aclamadas séries de animação pode já não ter aquele factor de surpresa e encanto de todas as outras, mas continua certeiro, mesmo no seu fim: na comédia, no drama, na catarse, na vergonha, no amor, na incerteza angustiante que nos corrói quando somos incapazes de responder à pergunta “o que andamos todos aqui a fazer?”.  Às vezes, a solução é só continuar. Um ciclo que se fecha, com muita pena. Continuaremos contigo, Bojack.

Melhor Episódio: “Eyes, Eyes, Eyes, Eyes” (“I May Destroy You”, HBO)

Arabella (Michaela Coel, também criadora da série) é a força da natureza das séries televisivas deste ano. O que começa como mais um triste episódio na vida de milhares de mulheres – acaba drogada numa festa – transforma-se num caos narrativo, despedaçado, cru, provocador, onde a protagonista vai colhendo os cacos, e percebendo, gradualmente, que quer vingança pela violação que sofreu. E pelos abusos que vai sofrendo de outros homens.  O bom do episódio (e de toda a série) é que não pretende ser activista ou panfletária. É profundamente cómica – não fosse também britânica – mas também uma caricatura dos tempos que vivemos : a crítica às influencers quase que merece um beijo na boca consentido. Se o primeiro episódio não lhe despertar qualquer emoção, talvez seja melhor largar o telemóvel, puxar para trás, e ver outra vez.

Desilusão do Ano: “Run” (HBO)

Desde que “Fleabag” viu a luz do dia, está meio mundo à espera de saber qual o próximo grande projeto de Phoebe Waller-Bridge. Andou ocupada com “Killing Eve” ou a fazer de daemon do seu “hot priest” (Andrew Scott) em “His Dark Materials”. Mesmo assim, este ano teve o dedo também em “Run”, comédia/drama sobre a história de antigos namorados que, fartos da vida que levam, resolvem fugir de comboio e tentar o amor outra vez. Pois bem, a expectativa passa a desilusão: personagens fracas, sem química, numa carruagem que mais valia ter uma avaria, para ver se espevita a vontade de chegar ao fim do episódio. É como se a série “Normal People” fosse toda gravado numa viagem da CP, mas em jeito de sitcom.

Susana Romana

Melhor série: “Tiger King” (Netflix)

Em termos de excelência de produto televisivo, as melhores séries do ano terão sido “Pátria”, a conclusão de “Dark” ou as mais recentes temporadas de “The Crown” e “Better Call Saul”. Mas a série do ano, aquela que é sinónimo de 2020 e que se tornou numa espécie de hino não oficial do confinamento foi “Tiger King”, o documentário em sete partes sobre o submundo dos jardins zoológicos de beira de estrada com centenas de tigres. Trancados em casa a ver o mundo como o conhecíamos a abrir fissuras talvez irreparáveis, fomos levados por este cocktail explosivo de homicídio, traição, sexo maluco, ascensão de um culto, toxicodependência, reality show, casamento poliamoroso e relatos de pessoas a ficarem sem membros superiores e/ou inferiores.

“Tiger King” relata a história de Joe Exotic, Joseph Allen Maldonado de seu nome verdadeiro, preso por tentativa de homicídio de uma ativista pelos direitos dos animais e dona de um santuário de tigres, Carole Baskin. Ambos foram inimigos viscerais durante anos, desde que Maldonado ainda não tinha o seu GW Zoo mas já comprava tigres e fazia criação para dispor de bebés adoráveis para fazer espectáculos em centros comerciais. Mas a própria Carole Baskin também não é exatamente quem parece. Com milhares de fãs do seu santuário Big Cat Rescue que contribuem com generosos donativos para a causa, usa e abusa do trabalho de voluntários não-remunerados e não será também sempre correta no tratamento aos animais. Ah, e existe o pequeno detalhe de se calhar ter assassinado o seu riquíssimo primeiro marido.

“Tiger King” é o exemplo acabado do que foi ver televisão em 2020, naquela altura em que parecia mesmo que era a única coisa que havia para fazer. Deu azo a memes com fartura, a longas conversas de WhatsApp, a tweets divertidos de figuras públicas e até à hipótese de um dos últimos atos políticos de Trump vir a ser um perdão presidencial a Maldonado. Parece pouco? Naquela altura das nossas vidas, foi tudo.

Melhor personagem: Homelander, “The Boys” (Amazon Prime Video)

É muito difícil descrever Homelander sem recorrer a asneiras que o releguem para a categoria de descendente de uma meretriz ou de macho de grande porte de uma cabra. Mas tentemos: Homelander é o maior super-herói do mundo, e isso faz dele o maior vilão do mundo.

Confusos? Homelander é a grande coqueluche da Vought International, uma soberana organização que gere os The Seven, os sete super-heróis mais poderosos do mundo, vendidos como símbolo máximo açucarado da bondade, justiça e cristandade. Porém, para lá das action figures vendidas aos milhões e dos salvamentos convenientemente captados pelos jornalistas, há um deboche de fazer corar aquelas orgias que estão sempre a ser desmanteladas em Bruxelas. A esmagadora maioria dos heróis são indivíduos instáveis, egoístas, com problemas com drogas, viciados em sexo, profundamente sádicos e com uma balança moral digna do mais perverso guarda de Auschwitz. Mas o pior de todos (bom, o melhor do ponto de vista narrativo) é mesmo Homelander.

Desempenhado de modo desconfortavelmente vil e irritante (como se quer) pelo neo-zelandês Antony Starr, Homelander é um sádico narcisista que não se rala com absolutamente nada nem ninguém para além dele próprio. A olho nu um misto de Super Homem com Capitão América, é o líder dos The Seven não só por ser quem tem mais poderes sobrenaturais, mas também porque só se ouve a si próprio. Exemplos máximos disso: o momento em que deixa morrer um avião cheios de civis na primeira temporada e o momento no qual quase tem sexo consigo próprio na segunda temporada.

Muito para lá daquilo que é o ambiente natural das sagas de super-heróis, Homelander é um tratado sobre tudo o que há de moralmente falido num século XXI que se queria esclarecido e empático. Não é o herói que 2020 queria, mas é o herói que 2020 merece.

Melhor episódio: “Das Paradies” (“Dark”, Netflix)

Num distante 2019, o mundo ainda se enfurecia com pouco. Ó, éramos tão ingénuos e fofinhos. Daí uma das grandes celeumas do ano ter sido o polémico final de “Guerra dos Tronos”. Goste-se mais ou menos da solução encontrada, uma coisa parece certa: os criadores da série não foram capazes de juntar devidamente todas as pontas soltas e diversas personagens que foram apresentadas ao longo dos anos, numa missão complexa e espinhosa que se ficou, talvez, pelo satisfatório.

A missão de “Dark”, a série alemã que foi um inesperado sucesso da Netflix durante três anos, era ainda mais arriscada. Num grau de enredamento que envolvia várias linhas temporais, realidades paralelas, mundos apocalípticos e conceitos teológicos, era difícil chegar ao final com tudo no sítio, mas mantendo surpresa e encantamento. O último episódio consegue-o, fechando com chave de ouro aquele que é talvez um dos maiores tratados de guionismo de sempre. O casal Baran bo Odar e Jantje Friese, que em conjunto criou e escreveu a totalidade dos episódios da série, não deixaram nada por explicar. E caramba, se havia coisas para explicar.

O que começa como uma série sobre o desaparecimento de uma criança na cidade fictícia de Winden, abraçada por uma imponente floresta, acaba por se tornar numa saga que mistura o desastre de Chernobyl e, eventualmente, um eixo temporal que vai de 1888 a 2053. É uma das grandes séries de ficção científica de sempre, mais dada a uma patine crua e suja do que a naves espaciais de um branco impecável, e que acaba por ser sobre os assuntos mais tangíveis: o amor, a família, o medo e o controle.

Desilusão do Ano: “Run” (HBO)

O primeiro episódio de Run é uma das melhores coisas que vi em 2020. Um conceito apelativo, diálogos sumarentos, uma realização veloz e uma dupla de protagonistas com uma química tão visível que só lhe faltava escorrer pelas paredes. A isto acrescente-se que foi apadrinhado e co-produzido por Phoebe Waller-Bridge, criadora de “Fleabag”, uma das minhas séries preferidas de sempre.

Então, o que aconteceu de errado? Aconteceu que “Run” é como uma daquelas caixas de lata lindas de bolachas de manteiga que afinal lá dentro têm o material de costura da nossa avó. “Run” promete muito e concretiza zero, numa absoluta perda de tempo que ainda estou a digerir. Criada pelo braço direito criativo de Waller-Bridge, a guionista Vicky Jones, foi cancelado após apenas uma temporada. Foi uma temporada a mais.

A premissa de “Run” é a de um ex-casal de namorados que fez um pacto há 17 anos: se um deles se fartasse da sua vida, mandaria um SMS ao outro simplesmente com a palavra “foge” (“run”, em inglês), e sem mais combinações iriam encontrar-se em Grand Central Station para apanharem o mesmo comboio e juntos atravessarem o Estados Unidos. Inúmeras questões sobre o que se passou nesses 17 anos são levantadas, poucas são respondidas. O final é tão satisfatório como, cheio de larica, abrir o frigorífico e ter apenas meia embalagem de mostarda. Antes uma honrada sandes de panado de uma estação de serviço.