790kWh poupados com a
i

A opção Dark Mode permite-lhe poupar até 30% de bateria.

Reduza a sua pegada ecológica.
Saiba mais

Neste momento há cerca de 1.500 portugueses a residir no Qatar, país onde no próximo domingo arranca o Mundial de Futebol
i

Neste momento há cerca de 1.500 portugueses a residir no Qatar, país onde no próximo domingo arranca o Mundial de Futebol

Neste momento há cerca de 1.500 portugueses a residir no Qatar, país onde no próximo domingo arranca o Mundial de Futebol

Atropelos de direitos humanos, salários milionários, trabalho escravo e quotas de álcool. Cinco portugueses contam como é viver no Qatar

Cinco portugueses contam como é viver no país anfitrião do Mundial. Sobre as polémicas, há quem fale em "campanha desleal". Outros são menos taxativos: "Nem tudo é verdade, nem tudo é mentira".

    Índice

    Índice

Há cerca de três anos, ainda não estava na moradia com piscina onde vive hoje, com a mulher, mas num apartamento noutra zona de Doha, Paulo Neves chegou a casa, depois de dar mais um treino, e viu uma série de polícias à volta de um café. “Um qatari de 18 anos matou um gajo que andava com a irmã. Era um sudanês, por acaso um culturista muito famoso, e o irmão dela não gostava dele e já tinha dito que o ia matar”, recorda o personal trainer português, há seis anos a viver no Qatar.  Nessa manhã, o rapaz cumpriu a ameaça: entrou armado no café, atingiu mortalmente o namorado da irmã e ainda disparou contra ela, mas o tiro não foi fatal.

Nos dias seguintes, Paulo Neves bem procurou, mas nos jornais do Qatar nem uma menção ao crime, que acabou com o homicida de 18 anos a ser detido, depois de uma perseguição que até helicópteros envolveu. “Nunca teve hipótese, fugiu, mas tinha sido filmado à saída e à entrada do café, portanto, foi rapidamente apanhado”, completa o português, a partir dos detalhes que entretanto ouviu de um qatari a quem dava treino, e que tinha informação privilegiada porque fazia parte das Forças Armadas. “A imprensa esconde um bocado as coisas más. Quando há um crime ou um assassinato, raramente se sabe, é tudo abafado. Aliás, só sai cá para fora o que eles deixam.”

Escrever sobre o Qatar, um dos países mais seguros do mundo — garante quem lá vive e comprovam vários rankings —, começando com uma referência a um homicídio será pouco ortodoxo, mas o objetivo não é sequer desmontar essa ideia.

Assegura Paulo Neves, 49 anos, e fazem coro os outros quatro portugueses com morada no país com quem o Observador falou, essa é mesmo uma das maiores vantagens de ali viver — os salários acima da média serão outra, mas já lá iremos.

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

“A imprensa esconde um bocado as coisas más. Quando há um crime ou um assassinato raramente se sabe, é tudo abafado. Aliás, só sai cá para fora o que eles deixam”
Paulo Neves, personal trainer

Mauro Saraiva, por exemplo, perdeu a conta às vezes que se esqueceu de tablets, telemóveis e computadores em cafés — e voltou horas mais tarde para os encontrar intocados.

Elisabete Reis, que em Macau vivia num 38.º andar e tinha grades nas janelas, nem sabe bem onde está a chave da casa onde mora, com o marido e a mais nova de três filhos, no município de Al-Rayyan, a 15 quilómetros do centro de Doha — a porta está sempre destrancada, tal como a do carro, que muitas vezes põe a funcionar largos minutos antes de sair, para o ar condicionado ir refrescando o interior.

E Rosa Silva nem queria acreditar quando, uma semana depois de ter perdido uma nota de 200 riais, cerca de 56 euros, na loja da Singer, lá voltou para comprar mais linhas de costura e o proprietário lhe devolveu o dinheiro que lá tinha deixado cair. “Alguma vez isto acontecia em Portugal?!”, compara a esteticista, que há seis anos trocou o salão onde trabalhava em Alverca por um gabinete caseiro em Lusail, a cidade construída de raiz a meia hora da capital do Qatar para receber o Mundial de Futebol, que arranca este domingo, 20 de novembro.

Uma “ditadura disfarçada”, onde a palavra da mulher vale 500 vezes mais que a do homem e onde a “wasta” é natural

O Qatar é seguro, mais seguro do que a maioria dos países do mundo, isso é ponto assente. E o crime presenciado por Paulo Neves não prova o contrário. Mas os contornos com que tudo aconteceu revelam outras especificidades do país de maioria muçulmana, altamente vigiado por câmaras de alta resolução colocadas um pouco por todo o lado, e com uma comunicação social que está longe de ser independente.

Questionado sobre se existe liberdade de imprensa no país, João Canas, que se mudou para lá em 2013, justamente para ajudar a construir Lusail, e ficou até fevereiro deste ano, altura em que saiu para a Arábia Saudita, para trabalhar no projeto Neom, a região futurista com 25.500 metros quadrados que vai ser construída junto às fronteiras com a Jordânia e o Egito, começa por suspirar longamente.

Depois, recorda o Doha News, “o jornal mais fidedigno e mais aberto”, que depois de “ser forçado a sair do país” acabou por deixar de ser editado. “Acho que há muitas condicionantes”, elabora finalmente. “O que sei é que há pessoas que têm medo de falar.”

“No Médio Oriente existe uma coisa que se chama ‘wasta’, que para nós será algo entre o tráfico de influências ou o poder quase que impune de algumas pessoas, mas que para eles é uma coisa natural, há até artigos técnicos sobre isso. ‘Eu trabalho para um sheik que é mais poderoso do que o teu, portanto eu estou mais impune’”
João Canas, consultor sénior na área da segurança

“Isto aqui é uma ditadura, mas é uma ditadura disfarçada”, concretiza Paulo Neves. “As pessoas podem fazer tudo — se não fizerem asneiras. Por exemplo, se alguém publicar alguma coisa nas redes sociais contra o Qatar habilita-se a ir para a cadeia, a pagar a multa e a ser expulso do país. Acho que eles controlam tudo o que se passa nas redes sociais. E não querem saber se as pessoas já estão aqui há dez anos ou se têm família. São expulsas, eles não perdoam”, garante o PT.

O que nos conduz de volta ao homicídio do culturista sudanês: por muito que as leis do país sejam rígidas, explica o português, natural de Vila Nova de Gaia, não serão aplicadas a todas as pessoas.

Paulo Neves foi contratado por uma cadeia de ginásios e foi sozinho para o Qatar. Sara, a mulher, também é PT e juntou-se a ele depois

João Canas, de 46 anos, aprendeu essa lição da pior maneira, quando algumas das empresas de construção que tinha por missão supervisionar em Lusail, como consultor sénior na área da segurança, com os pelouros da Gestão do Risco e de Emergências, passaram simplesmente a interditar-lhe o acesso às obras e a reportar diretamente ao Ministério do Trabalho. “No Médio Oriente existe uma coisa que se chama ‘wasta’, que para nós será algo entre o tráfico de influências ou o poder quase que impune de algumas pessoas, mas que para eles é uma coisa natural, há até artigos técnicos sobre isso. ‘Eu trabalho para um sheik que é mais poderoso do que o teu, portanto eu estou mais impune’.”

Paulo Neves, que desde que chegou foi avisado para não se meter em confusões e manter a distância em relação às mulheres qataris — “aqui, a palavra de uma mulher é 500% superior ao homem, se uma qatari fizer uma queixa contra nós, para além de irmos logo para a cadeia, somos expulsos do país” —, não sabe o que aconteceu ao certo com o qatari que disparou no café, porque o crime não foi tornado público. Mas as informações privilegiadas que tem dizem-lhe que o mais certo é que o homicida do namorado da irmã tenha ficado impune.

“Aqui a palavra de uma mulher é 500% superior ao homem, se uma qatari fizer uma queixa contra nós, para além de irmos logo para a cadeia, somos expulsos do país”
Paulo Neves, personal trainer

“Não tenho a certeza sobre se foi punido ou não, tenho qataris que me dizem que hoje em dia eles não facilitam”, começa por dizer. “Mas se o pai for uma pessoa com muito poder não há punição nenhuma. Até porque a lei deles prevê que se possa matar por desrespeito à família — ou já não é bem assim, mas para muitas pessoas ainda é. Portanto, o que digo é que se pertencer a uma daquelas famílias mais importantes não lhe acontece nada.”

Trabalhadores escravizados ou “campanha desleal contra o Qatar”? “Nem tudo é verdade, nem tudo é mentira”

Nas primeiras páginas dos jornais internacionais ao longo dos últimos meses, com a aproximação do Mundial de Futebol, o Qatar tem sido acusado de violações dos direitos humanos, não apenas no que diz respeito à proibição da homossexualidade, mas também às condições de trabalho que, revelou o britânico The Guardian no ano passado, terão sido responsáveis pela morte de pelo menos 6.750 trabalhadores migrantes oriundos de Índia, Paquistão, Nepal, Bangladesh e Sri Lanka entre 2010 e 2021.

Elisabete Reis, que trabalha como consultora de imagem, etiqueta e protocolo e chegou ao país em 2006, ainda o Qatar estava longe de ser escolhido para organizar a prova, diz que é tudo mentira, um ataque orquestrado contra o país que, além do pódio dos mais seguros, ocupa também um lugar no grupo de países mais ricos do mundo, pelo menos desde que há pouco mais de 70 anos ali foi descoberto petróleo e, depois, gás natural.

Paulo Neves, 49 anos, no Qatar desde 2017

Mostrar Esconder

Antes de se estabelecer no Qatar, há mais de cinco anos, Paulo Neves viveu e trabalhou como personal trainer no Dubai — onde conheceu a mulher, Sara, de 40 anos, também PT —, e em Omã.

Quando surgiu a oportunidade de se mudarem para Doha, ele foi à frente, para ver se a proposta que lhes tinham feito era a sério, ou “uma vigarice”, como diz que lhes aconteceu no vizinho Omã.

Começaram por trabalhar na Aspire Academy, a maior rede de academias de desporto no país, recentemente privatizada, mas só lá ficaram durante 14 meses. “Pagam muito mal nos ginásios, em média 1000 euros a profissionais de fitness, decidimos trabalhar por conta própria.”

Como o “Kafala system” obriga a que todos os trabalhadores estrangeiros no país tenham um “sponsor”, que se responsabiliza por eles, o português fez um contrato com um cliente, qatari, e passou a dar treino em part-time num campo militar.

“No Dubai podemos ser freelancers e pagar o nosso sponsor, mas aqui não”, explica o PT. “Na altura, se quisesse ir trabalhar para outra empresa, tinha de ter autorização da empresa anterior. Entretanto isso mudou e já não é necessário. A não ser que a empresa para onde se muda seja concorrente — aí já é preciso esperar 5 anos para poder fazer novo contrato.”

“É uma coisa de que se fala aqui, sentimos que tem sido feita uma campanha desleal contra o Qatar usando uma ou outra situação que tenha acontecido. Foi muito empolado. Onde é que não há maus tratos? No outro dia li uma reportagem sobre maus tratos na Alemanha! Na Alemanha! Nós, que vivemos aqui, sentimos que o Qatar não é perfeito, óbvio, mas desde que ganhou o Mundial gerou-se uma campanha que é bastante desleal.”

João Canas — que chegou ao país em setembro de 2013, dias depois de receber um telefonema a confirmar o convite de emprego, estava na altura em pleno incêndio na Serra do Caramulo, como segundo comandante de um corpo de bombeiros de Águeda — acredita que a realidade é mais complicada do que isso: “Nem tudo é verdade, nem tudo é mentira.”

“Em primeiro lugar estão sempre os locais, depois os americanos, ingleses, europeus ocidentais, europeus de leste e no fim os trabalhadores da Índia, Nepal e Bangladesh. A estratificação é mais notória nestes países do que noutros. Há muita gente que chega ao Qatar e que se deslumbra, porque é de facto um mundo encantado, costumo dizer que é uma espécie de Disneyland. E para quem tem acesso às coisas boas é fantástico, temos é de ter a consciência de que para elas funcionarem alguém tem de as fazer, e muitas vezes essas pessoas não são vistas nem têm voz”
João Canas, consultor sénior na área da segurança

Parte do trabalho do especialista em Proteção Civil, contratado por uma multinacional americana, passava por inspecionar os campos de trabalhadores da construção civil em Lusail. “Havia algumas boas práticas, mas cheguei a encontrar situações onde a higiene não era a melhor e onde a segurança não era um dos pontos altos, para quem não estava habituado, no início, foi um murro no estômago”, recorda João Canas, que diz que chegou a encerrar alguns desses campos e a deslocar os trabalhadores, invariavelmente provenientes de países como Índia, Bangladesh ou Nepal, para instalações construídas de raiz de acordo com as regras de segurança internacionais.

“Menos de 15% da população, talvez 12%, são qataris, tudo o resto são estrangeiros. O que obriga a que o próprio tecido social seja completamente diferente. Há uma grande mistura e complexidade relativamente à multiculturalidade, que tem de se ter em conta, como é óbvio. Eu vejo aspetos imensamente positivos nisso, mas também sabemos que existem nacionalidades que estão estratificadas consoante os passaportes, por causa das faixas salariais e do tipo de trabalhos que lhes são atribuídos”, lamenta, para depois elaborar uma espécie de escala de “importância” de origens no país.

Mauro Saraiva em 2021, a ver um jogo da Arab Cup no estádio Al Janoub, um dos oito que vão receber o Mundial de Futebol do Qatar

“Em primeiro lugar estão sempre os locais, depois os americanos, ingleses, europeus ocidentais, europeus de leste e no fim os trabalhadores da Índia, Nepal e Bangladesh. A estratificação é mais notória nestes países do que noutros. Há muita gente que chega ao Qatar e que se deslumbra, porque é de facto um mundo encantado, costumo dizer que é uma espécie de Disneyland. E para quem tem acesso às coisas boas é fantástico, temos é de ter a consciência de que para elas funcionarem alguém tem de as fazer, e muitas vezes essas pessoas não são vistas nem têm voz”, critica. “Certas nacionalidades, como a nossa, não notam, mas há sempre outras que são discriminadas. Por exemplo, os blue collar workers, as pessoas que têm trabalhos braçais, como na construção civil, não podem entrar no mercado tradicional, o Souq Waqif, e existem até centros comerciais em zonas periféricas, com outro tipo de lojas, criados de propósito para elas.”

Em Lusail, conta João Canas, chegou a encontrar 20 pessoas num quarto diminuto e outras tantas a viver nos estaleiros das obras, dentro de contentores de armazenamento de materiais perigosos, porque eram os únicos locais com ar condicionado — um outro português a viver no país desde 2019, Mauro Saraiva, analista de performance da Liga de Futebol do Qatar, descreve o calor como a pior das provações a que estão sujeitos os que ali vivem, e recorda o máximo de temperatura a que já esteve sujeito: 58ºC, com 80% de humidade, no verão de 2020. Por isso mesmo, explica o analista, que é também “team base camp manager” da seleção portuguesa de futebol no Mundial, durante os meses de verão, entre as 10h e as 15h, as horas de maior calor, os operários da construção civil não trabalham. Pelo menos é o que diz a lei, o que não significa que todos os empregadores a cumpram, ressalva João Canas.

“Por exemplo, os blue collar workers, as pessoas que têm trabalhos braçais, como na construção civil, não podem entrar no mercado tradicional, o Souq Waqif, e existem até centros comerciais em zonas periféricas, com outro tipo de lojas, criados de propósito para elas. Vi pessoas que se enforcaram em campos de trabalhadores. Duas vezes. Eram nepaleses, de baixa estatura, enforcaram-se em beliches, nos tubos na parte de cima. Nunca soubemos se eram rixas entre eles, se eram suicídios literais"
João Canas, consultor sénior na área da segurança

Além de terem sido proibidos de pernoitar nos locais de obra, graças à intervenção da sua equipa, conta o consultor de proteção e socorro, os trabalhadores passaram também a ter melhores condições de alojamento e de segurança e a ter as refeições servidas por empresas de catering — “chegámos a encontrar fogões a gás debaixo da cama, um perigo de incêndio. Estão num campo de trabalhadores, saem às 5h da manhã num autocarro, que agora tem de ter ar condicionado mas que na altura não tinha (e se calhar continua a não ter), fazem três horas de caminho até à obra, trabalham, levam a marmita com a comida, correm para o autocarro outra vez, e ainda tinham de cozinhar… A maior parte destas pessoas trabalha 12h por dia e tem um dia de folga por mês. No Qatar, trabalham-se 48 horas por semana, eu também as fazia, mas trabalhava 5 dias por semana e num ambiente de escritório”.

Para quem tem este tipo de trabalhos, a experiência é outra — e será aí que reside a diferença essencial entre imigrante e expatriado. “Estão lá, não têm privacidade, não têm vida social, não têm companhia, o dano emocional deve ser brutal”, diz o português, que em duas ocasiões testemunhou o resultado destas dificuldades, da pior forma possível. “Vi pessoas que se enforcaram em campos de trabalhadores. Duas vezes. Eram nepaleses, de baixa estatura, enforcaram-se em beliches, nos tubos na parte de cima. Nunca soubemos se eram rixas entre eles, se eram suicídios literais.”

Mauro Saraiva, 35 anos, no Qatar desde 2019

Mostrar Esconder

Em dezembro de 2018, Mauro Saraiva, que durante seis anos foi o responsável internacional da Videobserver, uma empresa de software de análise desportiva portuguesa, foi convidado para dar formação no Qatar.

“Vim cá para dar um curso internacional de análise de jogo e de treino, organizado pela QSL, a Liga de Futebol do Qatar, e pela Federação de Futebol. Tínhamos pessoas do Kuweit, Bahrein, Arábia Saudita, Qatar, Omã, Egito e Tunísia”, recorda.

Correu tão bem que, meses depois surgiu o convite para se mudar para Doha, com direito a alojamento e salário bem acima da média portuguesa. “É um país seguro, que dá estabilidade às pessoas que vivem cá e que nos dá condições a todos os níveis para termos uma vida decente — pelo menos essa é a minha experiência e a das pessoas com quem me relaciono”, conta ao Observador.

Logo da primeira vez que lá esteve, diz, teve a sensação de que gostaria de viver no país: “Basta sair à rua aqui em 90% dos sítios (tirando o deserto, claro): única diferença para Portugal ou para a Europa é a temperatura, parece que estamos dentro de um forno”.

“O país mais rico do mundo — ou um dos — podia perfeitamente pagar mais a estas pessoas, que ainda por cima estão a construir o país”

Apesar de ter conseguido melhorar as condições de alguns milhares de trabalhadores — “houve uma altura em que estávamos a gerir 50 ou 60 mil pessoas ao mesmo tempo” —, o português agora na Arábia Saudita não duvida de que a sua intervenção foi uma gota no oceano — que chegou a valer-lhe algumas ameaças.

“Em toda a realidade e dinâmica de desenvolvimento estrutural do país, admito que pudesse haver um grande número de acidentes. Há muita construção civil de pequenos bairros e casas privadas onde não há o controlo que há nos grandes projetos. Em Lusail houve alguns acidentes, mas nós tínhamos o controlo de todos os contractors principais, não das empresas sub, sub, sub contratadas. E é aí, por norma, que os problemas acontecem. É aqui que acontecem as infrações, o confiscar de passaportes por construtores sem escrúpulos”, aponta o especialista. “Uma das minhas funções estava relacionada com a segurança, que não encontrámos em alguns dos sítios. Por exemplo, a segurança contra incêndios não era propriamente tratada naquele tipo de estrutura temporária, para trabalhadores. Quando tentávamos impor regras a estas empresas e quando fazíamos relatórios que expunham as suas vulnerabilidades e fraquezas, elas reagiam. Cheguei a ser ameaçado indiretamente por estar a tentar expor algumas situações. Disseram-me: ‘Já cá passaram muitas pessoas nessas funções, veja lá o que está a fazer’.”

“Estas pessoas ganham menos do que o ordenado mínimo em Portugal. Esse, para mim, é o grande escândalo. O país mais rico do mundo — ou um dos — podia perfeitamente pagar mais a estas pessoas, que ainda por cima estão a construir o país”.
João Canas, consultor sénior na área da segurança

Comparando aquilo que acontece em algumas empresas de construção civil no Qatar com as denúncias de escravatura laboral registadas em Portugal, em Odemira, João Canas diz que o problema naquele e noutros países do Médio Oriente é equiparável mas muito maior — e não apenas por uma questão de escala.

“Em primeiro lugar, existe o ‘Kafala system’, um sistema em que as entidades patronais patrocinam a entrada dos trabalhadores no país e que os impede de mudar de trabalho e até de sair do país sem um exit permit, e depois também é proibido haver sindicatos. De vez em quando veem-se algumas manifestações, mas vem logo a polícia e tenta abafar o caso”, explica o português, que aponta ainda o dedo aos salários pagos a estes trabalhadores.

Parte do trabalho de João Canas passava por inspecionar os campos de trabalhadores da construção civil em Lusail

Por muito que no Qatar recebam bastante mais do que nos países de origem, diz, não deixam de ganhar pouco: “Estas pessoas ganham menos do que o ordenado mínimo em Portugal. Esse, para mim, é o grande escândalo. O país mais rico do mundo — ou um dos — podia perfeitamente pagar mais a estas pessoas, que ainda por cima estão a construir o país.”

Sem tirar nem por, foi, aliás, o que lamentou recentemente aos dois jornalistas franceses autores do livro “Les Esclaves de l’Homme Pétrole” (“Os Escravos do Homem do Petróleo”, ainda sem tradução em português) o indiano Krishna Timilsina, que trabalhou durante vários anos no setor da construção no país e descreveu “condições de vida precárias, água de qualidade terrível e turnos intermináveis”. “Há tanta coisa no Qatar que está a ser construída graças ao nosso trabalho — estádios, centros comerciais, pontes e estradas —, mas nós não somos convidados a partilhar o sonho.”

João Canas, 46 anos, no Qatar entre 2013 e fevereiro de 2022

Mostrar Esconder

João Canas chegou ao Qatar em setembro de 2013 e um mês depois já estava de regresso a Portugal, para assistir ao nascimento da filha, Joana.

Ao longo dos anos que esteve naquele país, antes de em fevereiro de 2022 se mudar para a Arábia Saudita, onde está a trabalhar num projeto megalómano e multimilionário que inclui a construção da The Line, uma cidade espelhada construída na horizontal, ao longo de 170 quilómetros, mais alta do que o Empire State Buildig, o consultor viveu sempre sozinho.

Fez parte do Embrace Doha, uma associação cultural que pretendia dar a conhecer aos expatriados os hábitos e a cultura local e do Qatar Natural History Group, onde teve “oportunidade de explorar o país de uma forma completamente diferente”, participou na apanha de pérolas e assistiu à desova das tartarugas.

Ao longo desses anos, a filha, hoje com 9, visitou-o regularmente. Em Lusail existe uma oliveira com o nome dela, que ambos plantaram. É a “árvore da Joana”.

 

O estilo de vida qatari, da classe média alta à “estratosfera”

Os salários elevados (não para todos, já se viu) são, a par da segurança, um dos maiores trunfos que o Qatar tem para a oferecer a expatriados, atraídos para o país para desempenhar as funções que a minoria qatari não sabe — ou não quer — fazer.

Uma península do tamanho do distrito de Beja, com uma única fronteira terrestre com a Arábia Saudita, o Qatar tem neste momento 2,8 milhões de habitantes — sendo que só 313 mil deles são qataris. Os locais nem chegam ao pódio das nacionalidades com mais residentes no país, surgindo apenas depois de Índia, Bangladesh e Nepal. Ao todo, convivem ali, naquele pequeno território do Médio Oriente, cerca de 140 nacionalidades diferentes. Portugueses serão 1.500, mas antes da pandemia chegaram a ser mais.

“Aqui é tudo feito para eles. Desde que nascem, têm um salário pago pelo governo que é muito maior do que o meu, por exemplo. Nós estamos aqui para os ajudar. Eles convidam as pessoas para virem para cá trabalhar, para colmatar certas necessidades laborais que têm. No meu caso, venho para os ajudar a melhorar o futebol, ponto. Não venho para me aproveitar do qatari, para lhe roubar o trabalho ou para lhe ficar com o dinheiro — o qatari continua sempre a ter o poder. Basicamente, os qataris são chefias. O país é deles”
Mauro Saraiva, analista da Liga de Futebol do Qatar

Quando o Observador lhe pergunta se as condições económicas que encontrou no país são extensíveis aos locais, Mauro Saraiva, o analista que em Portugal deixou um trabalho mal pago na formação do Belenenses para abraçar no Qatar uma carreira de sucesso na liga nacional de futebol, com direito a remuneração em consonância, não consegue conter o riso.

“Aqui é tudo feito para eles. Desde que nascem, têm um salário pago pelo governo que é muito maior do que o meu, por exemplo. Nós estamos aqui para os ajudar. Eles convidam as pessoas para virem para cá trabalhar, para colmatar certas necessidades laborais que têm. No meu caso, venho para os ajudar a melhorar o futebol, ponto. Não venho para me aproveitar do qatari, para lhe roubar o trabalho ou para lhe ficar com o dinheiro — o qatari continua sempre a ter o poder. Basicamente, os qataris são chefias. O país é deles”, explica o português, de 35 anos.

"Lembro-me de o meu colega de trabalho direto me contar que tinha chegado a passar fome e que o pai tinha sido pescador. Esse meu colega era o que era considerado classe média baixa: tinha uma reforma de um trabalho na ordem dos 20 mil euros/mês, depois um ordenado similar no trabalho em que estava comigo, e ainda tinha uns negócios paralelos; patrocinava empresas para operar no país, recebia comissões e percentagens de lucros de negócios"
João Canas, consultor sénior na área da segurança

A escala começará algures na classe média alta e termina na “estratosfera”: “Os qataris são divididos por castas, há famílias mais poderosas e mais ricas do que outras. Há qataris que têm vidas de classe média alta, não são todos de classe alta. E depois há aqueles que nem conseguimos compreender a vida que têm”, tenta descrever Mauro Saraiva que, por estes dias, está a acumular funções e a trabalhar para a entidade que organiza o Mundial no país, como supervisor responsável pela estadia da seleção portuguesa.

João Canas, que ao longo dos 9 anos que passou no país trabalhou com inúmeros qataris e ficou amigo de outros tantos, arrisca-se a descer mais um furo e a falar em “classe média baixa”. O significado é que não bate certo com o significante: “Na década de 40, o Qatar passou pelos chamados ‘anos da fome’, antes de descobrirem petróleo e, mais recentemente, gás natural, que foi o que os tornou ricos. Nessa altura, os qatari viviam da pesca e da apanha de pérolas. Lembro-me de o meu colega de trabalho direto me contar que tinha chegado a passar fome e que o pai tinha sido pescador”, começa por contextualizar. “Esse meu colega era o que era considerado classe média baixa: tinha uma reforma de um trabalho na ordem dos 20 mil euros/mês, depois um ordenado similar no trabalho em que estava comigo, e ainda tinha uns negócios paralelos; patrocinava empresas para operar no país, recebia comissões e percentagens de lucros de negócios. Isto é o que é considerado classe média baixa no Qatar, porque depois há pessoas que vivem mesmo na estratosfera. A família do meu diretor, por exemplo, já era rica há 400 anos e ele cresceu e viveu num mundo completamente surreal.”

Já não se ganham “absurdos de dinheiro” e a homossexualidade “existe e é explícita”

Elisabete Reis e o marido, Miguel Heitor, chegaram ao Qatar em 2006, vindos de Macau, onde ele viveu desde os 9 anos e para onde ela se mudou em 1995, ano em que deixou o trabalho como assistente de bordo na Portugália por um lugar na recém-fundada Macau Airlines.

Na altura, tinham dois filhos, Diogo, com 3 anos e meio, e Duarte, com 20 meses. Quando Miguel, que trabalhava no Instituto do Desporto, foi convidado para participar na organização qatari dos Jogos Asiáticos, resolveram ir, “à aventura”, e ficar durante um ano.

Nunca mais de lá saíram e entretanto nasceu Sofia, agora com 13 anos — e a única dos 3 que ainda mora com os pais no Qatar; os irmãos mais velhos já estão ambos na universidade, no Canadá.

“Uma casa para uma família pode custar facilmente entre 4 a 5 mil euros por mês, e a escola pública é árabe, portanto temos de por as crianças em escolas internacionais, que também são caras. Agora a gasolina aumentou, está a 70 cêntimos — quando cheguei era 30 cêntimos. Tenho um jipe, V8, e normalmente encho o depósito duas vezes por semana, já não é assim tão barato"
Elisabete Reis, consultora de imagem, protocolo e etiqueta

Miguel, que entretanto ajudou a fundar a Liga profissional de futebol do país, é agora diretor do departamento de desenvolvimento de futebol; Elisabete tornou-se consultora de imagem, protocolo e etiqueta, fundou uma empresa, e hoje divide-se entre closets e ações de formação para profissionais. “Para a semana tenho um curso de dining etiquette a começar numa embaixada. Vou treinar o staff que trabalha para o embaixador em casa para receber”, explica.

A viver numa villa paga pelo empregador do marido, avisa que o país não é “rico para toda a gente” e que o custo de vida “é muito alto”: “Uma casa para uma família pode custar facilmente entre 4 a 5 mil euros por mês, e a escola pública é árabe, portanto temos de por as crianças em escolas internacionais, que também são caras. Agora a gasolina aumentou, está a 70 cêntimos — quando cheguei era 30 cêntimos. Tenho um jipe, V8, e normalmente encho o depósito duas vezes por semana, já não é assim tão barato. Não se esqueça que os nossos carros aqui consomem muita gasolina, por causa do ar condicionado, que tem de estar sempre a funcionar”.

Apesar de conceder que foi ganhar “melhor do que a média dos portugueses”, Mauro Saraiva também garante que no Qatar já não se ganham os “absurdos de dinheiro” que se ganharam até junho de 2017, mês em que Arábia Saudita, Emirados Árabes Unidos, Bahrein e Egito impuseram um bloqueio diplomático e económico a Doha, que acusaram de apoiar “grupos terroristas”. “Vim ganhar bem, claro. Não tenho qualquer tipo de problemas financeiros, enquanto se continuasse a trabalhar em Portugal para ter uma oportunidade continuava seguramente a tê-los. Mas a diferença entre a realidade e aquilo que as pessoas pensam é muito grande”, garante o analista da Liga de Futebol do Qatar .

Elisabete Reis, no Qatar desde 2006

Mostrar Esconder

A consultora de imagem, etiqueta e protocolo (que prefere não divulgar a idade) mudou-se para o Qatar com o marido há já 16 anos e assistiu a todas as mudanças que o Mundial de Futebol impulsionou no Qatar.

Foi convidada para ser a “fan leader” da seleção portuguesa durante o torneio. “Não é um grupo da comunidade portuguesa, mas  um grupo de apoiantes da nossa seleção. Até temos fãs porque o amor deles ao Cristiano Ronaldo ultrapassa tudo o que é compreensível”, tinha dito ao Observador, duas semanas antes de estalar a polémica sobre a alegada contratação de adeptos no país para engrossarem as fileiras de fãs das seleções que vão entrar em prova. “Ninguém aqui no Qatar é pago para apoiar a Seleção Portuguesa, nem eu nem os restantes fãs”, garantiu entretanto.

Com o marido, que é diretor do departamento de desenvolvimento de futebol da Liga do Qatar, Elisabete Reis vai ver todos os jogos de Portugal nos estádios. Os dois filhos mais velhos, que adoram futebol, estão destroçados por não poderem ver o Mundial no país onde cresceram: estão a estudar no Canadá e o torneio vai calhar em época de exames na universidade.

O princípio, diz o português, a quem em março deste ano se juntou a mulher, Andreia, será válido não apenas para o dinheiro mas também para os costumes. “Tem-se falado muito na perseguição aos homossexuais, mas isso não é verdade. Nós, que vivemos aqui, sentimos um bocado de tristeza porque as pessoas que fazem esse tipo de comentários nunca meteram os pés no Qatar e não entendem a realidade do que é viver aqui. Já vi casais homossexuais e nunca vi ninguém a maltratar ninguém, é só isso que posso dizer. Desde que as pessoas não andem a esfregar a sua sexualidade na cara das outras, ninguém quer saber”, garante o português. “Vejo homens de mão dada, vejo mulheres de mão dada, e claro que algumas pessoas olham e outras podem fazer comentários completamente bárbaros, mas em Portugal isso também acontece.”

“Tem-se falado muito na perseguição aos homossexuais, mas isso não é verdade. Nós, que vivemos aqui, sentimos um bocado de tristeza porque as pessoas que fazem esse tipo de comentários nunca meteram os pés no Qatar e não entendem a realidade do que é viver aqui. Já vi casais homossexuais e nunca vi ninguém a maltratar ninguém, é só isso que posso dizer. Desde que as pessoas não andem a esfregar a sua sexualidade na cara das outras, ninguém quer saber”
Mauro Saraiva, analista da Liga de Futebol do Qatar

Apesar de a lei qatari prever punições de até sete anos de prisão, acrescenta João Canas, a “homossexualidade existe e é explícita” — se bem que apenas em espaços destinados a expatriados, não em zonas mais tradicionais, onde o decoro islâmico se impõe. “Em Portugal, toda a gente fala do José Castelo Branco porque é uma figura única. No Qatar, vi vinte Castelos Brancos, muito mais extravagantes e muito mais divas ainda, porque têm muito mais dinheiro. Acho que são como aquelas adolescentes que levam a minissaia na mochila, não devem sair de casa assim vestidos. São figuras que aparecem nos espaços de recreação da moda — já foi o Nobu, o Mandarine, o Secret Garden, agora é o Manco — e não são criticadas, são perfeitamente aceites. Se calhar não podem é ir para uma zona tradicional qatari.”

Nenhum dos seis portugueses com quem o Observador falou ouviu alguma vez falar de homossexuais detidos por demonstrações públicas da sua orientação sexual. Mas a verdade é que as notícias do homicídio do culturista sudanês também não lhes chegaram aos ouvidos e não foi por isso que deixou de acontecer.

No final de outubro deste ano, a Humans Rights Watch denunciou seis casos de agressão e cinco de assédio sexual alegadamente cometidos por elementos do Departamento de Segurança Preventiva do Qatar, entre 2019 e 2022, contra pessoas lésbicas, gays, bissexuais e transgénero detidas em locais públicos sem qualquer outra justificação que não a sua “expressão de género”. De acordo com o relatório, além de terem tido os respetivos telemóveis revistados de forma ilegal, os agentes da autoridade exigiram às mulheres transgénero que assistissem a sessões de terapia de conversão num centro de “saúde comportamental” do governo qatari.

“Vivo no Qatar há 16 anos e nunca tapei o cabelo, nunca!”

Para Elisabete Reis, tudo isto faz parte de uma campanha de desinformação contra o país — em que se enquadram também as acusações sobre o tratamento dado às mulheres no Qatar. Apesar de a lei islâmica em vigor ainda prever o chamado sistema de tutela, que entrega ao homem o poder de decidir sobre a mulher (filha ou mulher, na maior parte dos casos) que vive na sua dependência, a maior parte das famílias já não a observa, garante a consultora.

“A maioria das que conheço já praticamente não impõe essa regra, a mulher já viaja sozinha, já não tem de levar um acompanhante homem. Claro que haverá famílias em que isso não acontece. As famílias também se modernizaram, antigamente é que o sistema de tutela era levado à risca”, explica a portuguesa, que foi convidada pela organização do Mundial de Futebol para ser a “fan leader” da seleção de Portugal no Qatar.

“É uma coisa de que se fala aqui, sentimos que tem sido feita uma campanha desleal contra o Qatar usando uma ou outra situação que tenha acontecido. Foi muito empolado. Onde é que não há maus tratos? No outro dia li uma reportagem sobre maus tratos na Alemanha! Na Alemanha! Nós, que vivemos aqui, sentimos que o Qatar não é perfeito, óbvio, mas desde que ganhou o Mundial gerou-se uma campanha que é bastante desleal”
Elisabete Reis, consultora de imagem, protocolo e etiqueta

“A mulher qatari é muito cosmopolita, muito independente, estuda, tira cursos universitários. Não conheço nenhuma qatari que não esteja na universidade. Não conheço uma. A maioria continua a ter como primeiro objetivo constituir família, mas a vertente profissional é muito importante. Tenho uma cliente, uma miúda de 20 e poucos anos, que acabou agora o curso, foi pedida em casamento, está a trabalhar e não tem intenção nenhuma de deixar de o fazer”, conta, continuando depois a dar outros exemplos.

Como o de Sheikha Mozah, a mãe do atual Emir, fundadora da Qatar Foundation, propriedade da família real, conhecida pelos avultados investimentos em programas de educação, investigação, inovação e desenvolvimento comunitário, que considera “a figura mais imponente do Qatar”. Ou os casos das três ministras que fazem atualmente parte do governo do país — nas pastas de Desenvolvimento Social e da Família, Educação e do Ensino Superior e Saúde Pública. Ou até o de Fatma Alremaihi, a realizadora e CEO do Instituto de Cinema do Qatar — “Já a vesti várias vezes para ir aos Óscares”, revela Elisabete Reis, com indisfarçável orgulho.

Elisabete Reis e o marido chegaram ao Qatar em 2006 para ficar durante um ano, ainda os dois filhos mais velhos eram pequenos. Nunca mais de lá saíram

“Já lemos com cada coisa: ‘Ai, atenção, mulheres, não andem na rua sozinhas ou cuidado com a forma como se vestem, podem ser presas’. É absolutamente ridículo: a mulher no Qatar pode andar sozinha a qualquer hora do dia, da tarde ou da noite. Vivo no Qatar há 16 anos e nunca tapei o cabelo, nunca! E nunca me foi pedido! A não ser que se vá visitar uma mesquita, mas isso é normal”, insurge-se a portuguesa.

“Não é preciso usar sheila [lenço], não é preciso cobrir o cabelo, nem sequer é preciso usar a abaia, a vestimenta de cor preta ou outra que elas usam por cima da roupa. Nós, as expatriadas, não precisamos. Posso sair de casa de calças, de vestido, de saia, o que for. Nos espaços internacionais pode usar-se o que se quiser. E veem-se pessoas vestidas como se sai à noite em Lisboa. O que se pede é que, na rua e nos lugares mais tradicionais, as pessoas respeitem os costumes locais e se vistam com alguma modéstia. Mas isso não é um bicho de sete cabeças. Sou consultora de imagem, faço imensos closets, ninguém é mais bonito por andar mais destapado.”

Rosa Silva, que tem 54 anos e que se mudou para o país em 2016, um ano depois de o marido, que em Portugal trabalhava como cameraman a recibos verdes, ser contratado pela televisão do Qatar, também diz que anda vestida “à vontade”.

Rosa Silva mudou-se de Alverca para Doha em 2016. "Não sinto que tenha muito mais dinheiro aqui”, diz

Mas recorda o dia em que, em pleno Ramadão, tentou entrar num centro comercial de Doha de calções e foi chamada à atenção pelo segurança, que “começou a implicar”; e a ocasião, há apenas uma semana, num consultório médico, em que uma outra segurança, mulher, lhe disse que tinha de ter mais cuidado ao sentar-se, por causa da racha do vestido, que lhe deixava as pernas demasiado à mostra.

Já Mauro Saraiva e Paulo Neves descobriram, quando não os deixaram passar da porta, que é proibido, para mulheres e para homens, entrar em edifícios institucionais de calções. “Ia mudar a água e o gás para o meu nome, estava um calor enorme e eu estava de calções. O segurança não me deixou entrar, tenho de estar apresentável porque vou estar perante um oficial do governo”, explica o analista da liga qatari de futebol. Paulo Neves, que no caso queria ir aos correios e dada a profissão vive de calções, passou a andar sempre com um par de calças no porta-bagagens.

Essa nem sequer é uma regra que o chateie, mas há outras que já não tolera tão bem, admite o personal trainer, que agora trabalha por conta própria e também dá treino num campo militar, mas que quando estava em ginásios só dava aulas a homens — “quando cheguei, há seis anos, só havia dois ginásios mistos. Hoje em dia, 90% são mistos, mas as mulheres treinam de um lado, com mulheres, e os homens do outro, com homens. Cheguei a dar treino a duas mulheres mas não em ginásio. Se ninguém as puder ver elas não se importam de treinar com homens, mas em público não podem”.

O tratamento dado às mulheres é uma das coisas que o incomodam. “Faz-me muita confusão haver praias aqui no centro da cidade em que as mulheres não podem ir de biquíni nem de fato de banho, só de calções abaixo do joelho. Acho uma vergonha, não podem querer ter um sítio para turistas e depois impor estas regras”, irrita-se o português.

“No salão tinha mais trabalho, o trabalho aqui é diferente, um bocadinho mais calmo, vou tentando fazer as minhas marcações, mas o nível de vida também é muito caro. Não compro nada aqui, levo tudo de Portugal, ceras, tudo. É tudo muito, muito caro. E não sinto que tenha muito mais dinheiro aqui”
Rosa Silva, esteticista

“Há praias, como uma que há na Qatara, que é um sítio mais in, que tem carroceis, onde elas [as qataris] vão e levam os miúdos, a que não podemos ir de biquíni, só de calções. Depois há outras onde vamos e estamos na boa”, detalha sobre o mesmo tema Rosa Silva, que apesar de cobrar mais dinheiro em Doha do que em Alverca, garante que o seu nível de vida não subiu assim tanto com a mudança.

Umas unhas normais, que em Portugal fazia por 8 euros, custam 80 riais no Qatar — 22,5 euros. Já umas unhas de gel, que custavam 15 euros no salão onde a esteticista trabalhou durante anos em Alverca, agora ficam por 150 riais, 42 euros, no seu apartamento em Lusail.

“No salão tinha mais trabalho, o trabalho aqui é diferente, um bocadinho mais calmo, vou tentando fazer as minhas marcações, mas o nível de vida também é muito caro. Não compro nada aqui, levo tudo de Portugal, ceras, tudo. É tudo muito, muito caro. E não sinto que tenha muito mais dinheiro aqui”, lamenta, para depois se focar nos pontos positivos, que a levam a não querer pensar em abandonar o país, apesar das saudades da filha e das duas netas e das dificuldades que tem com o inglês. É que ao contrário do que acontecia em Portugal, pelo menos no Qatar o marido tem um emprego fixo.

Rosa Silva, 54 anos, no Qatar desde 2016

Mostrar Esconder

Há coisas no Qatar que Rosa Silva, que se mudou para o país há seis anos, para viver com o marido, que foi contratado para trabalhar na televisão local, continua a não tolerar.

“Eles abusam dos trabalhadores, e eu acho que qualquer pessoa tem direito a respeito”, diz a esteticista, referindo-se ao facto de no Qatar existirem “empregados para tudo”, desde para tirarem as compras da passadeira do supermercado até para transportarem os sacos atrás dos donos, pelos centros comerciais fora.

“No início foi um bocadinho complicado perceber a mentalidade deles. As qataris, por exemplo, têm a mania de que são superiores, passam à frente, não há respeito. No início calava-me, porque não sei muito bem falar inglês, mas depois comecei a falar mesmo em português: ‘Olha, vai lá para a fila que eu já cá estava!’”, conta, entre risos.

No Qatar, garante, não ganha assim tanto dinheiro, mas há coisas que compensam e a saúde é uma delas: “Temos seguro de saúde, e o hospital é ótimo. Se for preciso fazer uma ressonância ou um exame do género, fazemos na hora ou, no máximo, dois ou três dias depois”.

Como é que se distingue um qatari num bar? É o homem alcoolizado com a marca redonda do traje tradicional a vincar-lhe a cabeça

Outra questão que tem sido levantada relativamente ao Mundial é a do consumo de álcool, que a FIFA garantia em setembro que ia estar à disposição dos adeptos, não apenas nos oito estádios que vão receber o torneio, mas também nas fanzones, mas que entretanto recuou e proibiu nesses locais, a dois dias do arranque do Mundial.

Também aqui os portugueses com morada no Qatar dizem que aquilo que tem sido noticiado não corresponde exatamente à verdade. “Tudo aquilo que é visto como uma restrição, é mentira. Bebe-se álcool e consome-se todo o tipo de drogas. Mas não é oficial, como é óbvio”, garante João Canas, do alto da sua experiência de nove anos no país. “A primeira noite em que saí no Qatar fazia envergonhar qualquer noite de Albufeira. Agora, isto não é para toda a gente nem toda a gente tem acesso a isto. Há circuitos. Porque quando há muito dinheiro, há tudo.”

Além de as bebidas alcoólicas estarem à venda para consumo imediato em restaurantes e bares, onde expatriados e qataris podem entrar mediante a apresentação e scan do cartão de residente ou do passaporte — estes últimos, desde que não vestidos com o thobe, o traje tradicional do Qatar —, esses produtos também podem ser comprados para levar para casa na loja da QDC (Qatar Distribution Company) —, mas aí apenas por estrangeiros. A loja, propriedade da Qatar Airways, também é o único espaço do país onde é possível comprar carne de porco.

"A primeira noite em que saí no Qatar fazia envergonhar qualquer noite de Albufeira. Agora, isto não é para toda a gente nem toda a gente tem acesso a isto. Há circuitos. Porque quando há muito dinheiro, há tudo"
João Canas, consultor sénior na área da segurança

O processo não está isento de burocracia, explica Elisabete Reis: “Até há pouco tempo só havia um ponto de venda de álcool, muito recentemente abriu outro. Para poder comprar, é necessário ir à administração, preencher um formulário, trazer uma carta do local de trabalho onde é referido o salário e a partir daí é atribuída uma quota de álcool mensal e um cartão com o nome da pessoa.”

“O álcool é para levar para casa e para ser consumido na morada que está no cartão, não para ser distribuído nem para andar a correr a cidade. Assim que compramos, temos de ir para casa. Eu e o Miguel costumamos ir a Portugal no verão e ainda hoje, quando chegamos ao Jumbo, entramos e ficamos alguns minutos a olhar para as prateleiras do álcool: ‘Olha, tudo à venda!’. Parecemos uns parvinhos”, ri-se a consultora de comunicação.

Apesar de, legalmente, o consumo de álcool estar interdito à população qatari, em particular, e muçulmana, no geral, o que não faltam são qataris menos conservadores, que não observam a regra, diz João Canas. “Os qataris não têm acesso ao QDC, mas tinha muitos colegas que me pediam para lhes comprar bebidas. E muitas vezes, nos bares, vemos pessoas completamente alcoolizadas ainda com aquela marca arredondada, do thobe, a vincar-lhes a cabeça. É tudo uma questão de embaraço, por isso é que os qataris podem entrar nos bares, mas não com os trajes tradicionais, que os identificam. A convivência acaba por ser sã, mas o qatari que não bebe, que é conservador, que segue os valores do Islão, olha com embaraço para o outro.”

João Canas mudou-se para o Qatar em setembro de 2013 e viveu lá até fevereiro deste ano. Como consultor em Lusail conheceu Sheikha Hind bint Hamad Al Thani, a irmã do Emir

De acordo com o português, agora a trabalhar na vizinha Arábia Saudita, o que não faltam são histórias e episódios de excessos cometidos por qataris. Como uma espécie de desafio que há uns anos esteve em voga entre jovens e que consistia em não parar nos sinais vermelhos. “Havia uma coisa incrível chamada roleta russa qatari em que miúdos mais novos, alguns sem carta de condução, não paravam nos semáforos”, recorda João Canas. “Muitas vezes havia acidentes com mortos. Uma vez, o carro não parou e bateu num camião de cimento, que se virou. O carro incendiou-se e os dois miúdos que iam lá dentro e o motorista do camião morreram. As imagens foram captadas pelas câmaras de um semáforo e o vídeo acabou por ser publicado, ainda andou a circular durante três ou quatro dias”.

Também partilhado há uns anos, nas redes sociais, continua a lembrar-se, foi o episódio em que um qatari, “completamente alterado, com álcool ou drogas”, foi filmado em frente ao Hotel Sheraton, a tentar estacionar o carro. “É um hotel icónico de Doha, onde normalmente acontecem todos os eventos de chefes de Estado. O homem aparece num vídeo com um carro de muito alta gama a bater numa série de carros — batia, fazia marcha atrás e voltava a bater, em três minutos fez ali um prejuízo de vários milhões. E os seguranças estavam todos com medo de o apanhar porque ele era de uma família importante”, descreve o consultor de proteção e socorro, para a seguir revelar como acabaram estas duas histórias.

"Até há pouco tempo só havia um ponto de venda de álcool, muito recentemente abriu outro. Para poder comprar, é necessário ir à administração, preencher um formulário, trazer uma carta do local de trabalho onde é referido o salário e a partir daí é atribuída uma quota de álcool mensal e um cartão com o nome da pessoa”
Elisabete Reis, consultora de imagem, protocolo e etiqueta

Depois das três mortes provocadas pela roleta russa qatari (e do despedimento do funcionário que pôs o vídeo a circular), conta João Canas, foi publicada uma lei a proibir a publicação de todas as imagens captadas pelas câmaras do Ministério do Interior. O escândalo do qatari com falta de jeito para estacionar também deu direito a alterações legislativas: “Foi um embaraço grande. Dias depois saiu uma notícia a dizer que era expressamente proibida a divulgação de imagens que pudessem denegrir a imagem dos qataris.”

“Fala-se no boicote ao Mundial mas na prática vão lá todos. E eu também”

Seja para inglês ou para qatari ver, a verdade é que, nos últimos doze anos, desde que o Qatar foi escolhido para receber o Mundial de Futebol — “Uma escolha errada”, admitiu agora o ex-presidente da FIFA Joseph Blatter, meia dúzia de dias antes do pontapé de saída do torneio —, muito mudou no país.

“Deixa-me alguma nostalgia, Doha era uma cidade em que as pessoas se conheciam, agora vivemos mais longe uns dos outros. Mas também temos mais opções: quando cheguei a Macau íamos às compras a Hong Kong e quando cheguei ao Qatar íamos às compras ao Dubai, mas hoje em dia temos tudo aqui. E este desenvolvimento tem tudo ou muito a ver com o Mundial”
Elisabete Reis, consultora de imagem, protocolo e etiqueta

Elisabete Reis, que diz que viu o mesmo acontecer em Macau, diz que o que encontrou há 16 anos e aquele onde vive agora são “países diferentes”. “Quando cheguei ao Qatar éramos 800 mil, menos de 400 mil eram locais. Agora somos quase três milhões, e os qataris não aumentaram assim tanto. Doha em 2006 era uma cidade pacífica, as estradas eram de dois sentidos. Hoje temos cinco faixas para cada lado e vimos crescer zonas, como a Pearl e Lusail, que antes eram deserto. Há hotéis atrás de hotéis, viadutos, estradas, há muito mais residentes, carros e trânsito”, vai enumerando.

“Deixa-me alguma nostalgia, Doha era uma cidade em que as pessoas se conheciam, agora vivemos mais longe uns dos outros. Mas também temos mais opções: quando cheguei a Macau íamos às compras a Hong Kong e quando cheguei ao Qatar íamos às compras ao Dubai, mas hoje em dia temos tudo aqui. E este desenvolvimento tem tudo ou muito a ver com o Mundial”, diz, para depois invocar lojas, museus, estádios e a linha de metro que foi inaugurada em 2019 e é uma espécie de jóia da coroa nacional. “É o único metro do mundo que foi totalmente feito em cinco anos. Foi tudo mais acelerado para poder responder a esta onda de fãs que agora vão viajar para o Qatar e é uma linha absolutamente surreal — é VIP, é espetacular. Não é sujo, feio, com ar deprimente, é um metro com pinta.”

“Fala-se no boicote ao Mundial mas na prática vão lá todos. E eu também. Isto parece hipocrisia, mas não é: sei o que fiz e o que faço, mas a verdade é que se não for também não vou alterar nada”
João Canas, consultor sénior na área da segurança

João Canas, que ajudou a tornar esta transformação real e garante que nunca deixou de fazer a sua parte, no sentido de corrigir as injustiças e disparidades de classe que, acredita, são maiores no Qatar e nos restantes países do Médio Oriente, prepara-se para regressar ao país antes do fim do mês, mas agora como visitante. “A minha vida no Qatar foi muito boa, mas sempre tive a noção de que podia mudar de um dia para o outro. A forma de gestão do país é muito aleatória e não devia ser”, lamenta.

Mais do que para ver futebol, vai passar cerca de 10 dias no país a visitar os amigos que lá tem, mas tenciona ir ver um ou outro jogo de Portugal. “Fala-se no boicote ao Mundial mas na prática vão lá todos. E eu também. Isto parece hipocrisia, mas não é: sei o que fiz e o que faço, mas a verdade é que se não for também não vou alterar nada.”

Assine por 19,74€

Não é só para chegar ao fim deste artigo:

  • Leitura sem limites, em qualquer dispositivo
  • Menos publicidade
  • Desconto na Academia Observador
  • Desconto na revista best-of
  • Newsletter exclusiva
  • Conversas com jornalistas exclusivas
  • Oferta de artigos
  • Participação nos comentários

Apoie agora o jornalismo independente

Ver planos

Oferta limitada

Apoio ao cliente | Já é assinante? Faça logout e inicie sessão na conta com a qual tem uma assinatura

Ofereça este artigo a um amigo

Enquanto assinante, tem para partilhar este mês.

A enviar artigo...

Artigo oferecido com sucesso

Ainda tem para partilhar este mês.

O seu amigo vai receber, nos próximos minutos, um e-mail com uma ligação para ler este artigo gratuitamente.

Ofereça artigos por mês ao ser assinante do Observador

Partilhe os seus artigos preferidos com os seus amigos.
Quem recebe só precisa de iniciar a sessão na conta Observador e poderá ler o artigo, mesmo que não seja assinante.

Este artigo foi-lhe oferecido pelo nosso assinante . Assine o Observador hoje, e tenha acesso ilimitado a todo o nosso conteúdo. Veja aqui as suas opções.

Atingiu o limite de artigos que pode oferecer

Já ofereceu artigos este mês.
A partir de 1 de poderá oferecer mais artigos aos seus amigos.

Aconteceu um erro

Por favor tente mais tarde.

Atenção

Para ler este artigo grátis, registe-se gratuitamente no Observador com o mesmo email com o qual recebeu esta oferta.

Caso já tenha uma conta, faça login aqui.

Assine por 19,74€

Apoie o jornalismo independente

Assinar agora