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[Durante esta semana, o Observador viaja em reportagem pela Irlanda do Norte, pela Escócia e por Inglaterra para acompanhar uma das eleições mais decisivas na história do Reino Unido]
A primeira memória que Alex MacLureigh tem de futebol é de 1967, quando tinha oito anos. “Lembro-me de estar a assistir com o meu pai à final da Taça dos Clubes Campeões Europeus, que o Celtic ganhou. Não conseguia acreditar, ficou-me gravado na memória. Como não? Era a primeira vez que um clube escocês ganhava aquele troféu!”
Agora, 52 anos depois, este homem adulto de 60 anos está num bar no centro de Glasgow, o Malones, pronto para assistir a mais um jogo de futebol do Celtic, como faz há muito tempo. Não tem nenhuma cerveja na mão — o álcool fica para o final da partida, já que, antes, os nervos não lhe permitiriam segurar num copo sem espalhar tudo pelo chão. “Não se escolhe o Celtic. É-se do Celtic, nasce-se do Celtic, aliás”, garante Alex.
Alto, de cabeça rapada e botas de construtor civil, tem um ar que impõe respeito. Mas o largo sorriso por ir ver aquilo que espera ser uma vitória, desarma de imediato qualquer receio: “3-1 para o Celtic”, é a vitória que prevê este escocês antes do apito do início da partida. Quando Neil Lennon, o treinador da equipa e ex-jogador do clube, aparece no ecrã, Alex aplaude entusiasticamente, com o resto da multidão. Os nervos estão em franja e não é para menos, já que não se vai jogar um jogo qualquer, mas sim o Old Firm: o confronto que opõe os inimigos de sempre na mesma cidade, Celtic contra Rangers. E não é só de futebol que isto se trata. Para muitos, como Alex, um jogo destes também é política — que é como quem diz independência.
Nos boletins de voto da próxima quinta-feira, os escoceses não vão responder sobre se querem manter-se ou isolar-se do Reino Unido (como, provavelmente, alguns gostariam). Mas com o Brexit cada vez mais real, há quem tenha mudado de ideias em relação ao referendo de 2014 e já admita defender a independência para permanecer na União Europeia. São esses os mesmos que, mais do que votar SNP ou Labour, vão votar contra Boris Johnson.
[As eleições britânicas estão a ser o tema do Zoom desta semana na Rádio Observador. Pode ouvir aqui o último sobre Nicola Sturgeon e o Partido Nacional Escocês]
O Old Firm não é só um dérbi: é um confronto entre duas comunidades
O Malones, pub mesmo no centro de Glasgow que está há muito associado ao Celtic, está cheio. Duas televisões e um ecrã gigante compõem o cenário dos que aqui vieram para assistir ao Old Firm, o velho clássico entre os dois maiores clubes de Glasgow, que move milhares, e que é alimentado por uma das rivalidades mais aguerridas de todo o futebol mundial.
Alan Bissett conhece de perto essa realidade. Autor, poeta e dramaturgo escocês, há muito que acompanha a interseção entre política e futebol na Escócia. É autor do livro Pack Men, que usa a ficção para analisar um dos ataques mais conhecidos de hooligans dos Rangers, em 2008, em Manchester. E é também autor da coletânea Born Under A Union Flag: Rangers, Britain and Scottish Independence. Mas também tem coisas a dizer sobre os Celtic, ou não fosse ele um apoiante da independência escocesa, posição que muitos dos adeptos do clube também adotam.
“Estes clubes têm uma rivalidade histórica porque representam duas comunidades diferentes de Glasgow”, resumiria o autor ao Observador, mais tarde, no rescaldo do Old Firm desse domingo. “O Celtic foi fundado por monges católicos como forma de angariar dinheiro para as comunidades mais pobres de imigrantes irlandeses, geralmente católicos, que vieram para a Escócia fugidos à Grande Fome do século XIX, relacionada com a falta de batata. E essa comunidade enfrentava muita discriminação aqui”, conta por telefone.
“Porque o Celtic representava o catolicismo irlandês, os Rangers começaram, por reação, a assumir-se como unionistas e a favor da Rainha. A identidade protestante solidificou-se em torno do clube como forma de reação”, acrescenta Alan. “Os Rangers representam a força de Sua Majestade e o Celtic representa o sentimento anti-britânico. Recentemente, com os eventos políticos, essas ideias têm sido exacerbadas. E, portanto, o Celtic tem ficado mais colado à ideia de independência da Escócia, como forma de rebelião.”
Foi assim em 2014, a propósito da campanha durante o referendo à independência escocesa (que o ‘Não’ venceu com 54% dos votos), quando a organização Campanha Radical pela Independência usou alguns jogos no estádio do Celtic para chamar atenção para a causa. Ao todo, no 18.º minuto (numa referência à data do referendo, a 18 de setembro), cerca de mil adeptos levantaram cartazes a dizer “Sim”, em letras garrafais de cor verde. Fora do estádio, seriam ainda mais.
“Ainda me lembro bem de quando nos chamavam de ‘escumalha escocesa’ em Inglaterra”
É com este contexto na cabeça que as dezenas de adeptos do Celtic ali presentes, no Malones, olham para o jogo que decorre. A primeira parte segue sem qualquer momento de relevo — está “aborrecida”, confessam alguns. Os Rangers estão mais ao ataque, o que deixa os adeptos do Celtic desconfortáveis. Por isso, quase todos olham em silêncio para o ecrã.
Até que, já nos últimos 15 minutos antes do intervalo, um dos jogadores do Rangers faz uma falta feia sobre um dos extremos do Celtic, Johnny Hayes. Alex, desesperado, começa aos gritos, repetindo múltiplas asneiras começadas pela letra F. Mesmo em frente a uma das televisões, um adepto que, até aí, assistia calmamente à partida, levanta-se e mostra à televisão as duas mãos em forma de V, num gesto ascendente com os dedos — um sinal que, no Reino Unido, só tem um significado e não pode ser colocado de forma mais elegante: “Up yours”.
O árbitro marca falta e o jogo segue. Apesar disso, Alex está irritado com ele. “Fuck off, you fucking scumbag”, grita contra o ecrã, quando o rosto do homem vestido de negro aparece em grande. Depois, já mais calmo, comenta com a mulher: “Estás a ver como eles estão sempre a mandar a bola para trás? Não é bom sinal, não conseguem furar a defesa deles.”
Apito para o intervalo e a multidão dirige-se quase toda ao mesmo tempo para o bar, a fim de reabastecer os copos de pints com cerveja. O barulho das conversas volta a subir de tom — aqui ninguém quer saber da opinião dos comentadores. Alex diz ao Observador que ainda está confiante na vitória do Celtic: “Agora aposto mais no 1-0, mas vamos ganhar à mesma. Honestamente, somos a melhor equipa.” “Não há nervos nenhuns, então?”, perguntamos. “Não diria tanto”, confessa o escocês, rindo-se de seguida.
Com o jogo ainda em pausa, é o melhor momento para conversar. Alex é católico e fã do Celtic, isso já sabemos. Mas será também independentista, como aqueles que levantaram cartazes pelo “Sim” num jogo do clube? “Sem dúvida”, responde. “Nós queremos a independência e havemos de tê-la. Só não sabemos quando será”, acrescenta, com a mesma certeza de quem diz que o Celtic ainda vai ganhar por 1-0, apesar de o jogo estar tremido. Votou pelo “Sim” no referendo de 2014 e espera voltar a fazê-lo novamente, se vier a haver acordo entre Westminster e o governo escocês para uma nova consulta — até porque a primeira-ministra do governo regional, Nicola Sturgeon, já afirmou que não tenciona promover nenhum processo de independência “rebelde”, como o da Catalunha. Referendo sim, mas com acordo das duas partes.
A situação parece quase absurda: num pub escocês em Glasgow, com música a tocar e gente a conversar em voz muito alta, fala-se com descontração no decorrer de um Old Firm sobre política. Seria quase impensável que algo do género pudesse acontecer em Portugal, no intervalo de um Benfica-Sporting. Como se explica um fenómeno destes? “Bom, a política e o futebol na Escócia estão cada vez mais interligados”, analisa Alan Bissett. “Com o aumento da pobreza no Reino Unido, há uma tendência para aqueles que enfrentam mais desigualdade e insegurança se agarrarem a identidades tribais para dar um sentido à vida. Na Escócia, o futebol é o desporto das classes baixas e, à medida que muita da classe trabalhadora se sente mais e mais ignorada, agarra-se com mais força ao futebol.”
E como é que a independência da Escócia se relaciona em concreto com um Celtic-Rangers? “Porque uma possível separação da Escócia do resto do Reino Unido é algo que assusta muito os adeptos dos Rangers, que se identificam como unionistas”, acrescenta. “De repente veio o Brexit e isso acentuou-se.”
A cinco minutos do reinício do jogo, Alex dá mais uma explicação para as suas ideias políticas: “Trabalhei em Inglaterra durante 16 anos como engenheiro. Recordo-me tão bem de como eles falavam de nós, como nos chamavam a ‘escumalha escocesa’… Não quero nada com eles”, atira. “O Boris é um idiota. Não quer saber da Escócia, se ele pudesse decidir só contava de Londres para sul.” Assim sendo, o engenheiro garante que vai fazer como sempre e votar no Labour — apesar de, concede, “Corbyn não ser um líder nato” —, o que o define como uma espécie em vias de extinção, tal é a queda acentuada que se prevê que o Labour pode vir a ter na Escócia face ao Partido Nacional Escocês (SNP) de Nicola Sturgeon, também ele à esquerda.
A frase de Alex sobre os ingleses pode bem passar por sectarismo escocês, com o sentimento anti-Inglaterra a sobrepor-se a tudo o resto para justificar uma possível independência. Mas Alan, chamado a comentar, faz por deixar um alerta: “Não é necessariamente um sentimento anti-ingleses, um sentimento contra as pessoas de Inglaterra. É um sentimento contra a classe dominante, que é, na sua maioria, inglesa. Aquilo que incomoda aqui é que o poder está concentrado em Londres, na Câmara dos Comuns, na monarquia, na City. Ninguém aqui está contra uma simples pessoa que trabalha num supermercado em Yorkshire… É contra a classe que controla o poder. E esses são sempre eleitos pelos ingleses, os escoceses não têm população suficiente para ter força eleitoral e mudar uma eleição.”
Brexit, referendos e… “here comes the Celtic!”
“Futebol e política… Escolheste um belo lugar para vir fazer reportagem, então!” O comentário é feito por Emma Bannister, uma estudante de enfermagem de 28 anos que decidiu ir ao Malones assistir ao Old Firm com uma amiga. Torce, naturalmente, pelo Celtic “desde pequenina”, porque a sua família “é católica”. E tende também a torcer sempre contra os Rangers, seja onde for o jogo: “Muitos dos adeptos dos Rangers costumam votar nos tories e… eu sou muito anti-tory”, reconhece, entre risadas. “É por coisas como a austeridade, o ataque aos direitos das pessoas com deficiência, a falta de apoio à causa LGBT… A lista não tem fim.”
Emma nasceu em Lockerbie, uma pequena cidade do sul da Escócia com apenas quatro mil habitantes. Saiu para estudar em Londres e agora vive em Glasgow, onde está a acabar a sua formação para ser enfermeira. Admite que, na sua terra, não é tão fácil encontrar escoceses pró-independência como no centro desta cidade. Afinal, Glasgow foi dos locais onde o voto a favor da independência foi mais alto em 2014 (53%) e, também, uma daquelas onde a rejeição ao Brexit foi maior (56% a favor da manutenção na UE). Mas Emma tem uma certeza: “Se o Brexit for para a frente, iremos ver manifestações gigantescas aqui na Escócia.”
Os mais novos são dos grupos mais entusiasmados com a perspetiva de a região se separar do Reino Unido. E, entre aqueles que eram contra a ideia, há muita gente que começa a olhar com bons olhos para uma possível independência, por causa, precisamente do Brexit. E é essa a posição de Emma: “Quando o referendo de 2014 aconteceu, eu não pude votar porque estava em Inglaterra, mas, se pudesse, tinha votado não. Agora votaria sim, a 100%”. E o que é que a fez mudar de ideias? “Para já, como não estava a viver aqui, não percebia o impacto total disto. Com o Brexit, fiquei a entender. E agora, em especial com o Boris, é ainda pior. Ele não quer saber de nós, acha que somos cidadãos de segunda”, diz a estudante.
Com o início da segunda parte do jogo, a dinâmica de inércia entre o Celtic e os Rangers mantém-se. A bola vai rolando, mas ninguém arrisca. Tudo se mantém morno. Até que, de repente, há golo do Celtic aos 59 minutos e o Malones parece à beira de vir abaixo. “Oh oh oh oh oh oh oh, here comes the Celtic!” canta o bar em uníssono, com as mãos a baterem nas mesas e os pés no chão. Alex abraça um desconhecido, mesmo ao seu lado, para festejar.
Já não voltará a fazer-se silêncio no Malones nessa noite. De repente, o jogo torna-se frenético. Frimpong, do Celtic, comete uma falta na grande área e é expulso de imediato com vermelho direto. Penálti para os Rangers e risco extremo de haver empate. Alex tapa os olhos com os punhos cerrados, não consegue ver. “For fucks sake”, continua a repetir, com o sotaque escocês tão carregado que o U parece tornar-se um O. Mas eis que o guarda-redes Fraser Forster faz uma defesa espetacular e evita o pior. Nova explosão no Malones: “Here comes the Celtiiiiiic!”, canta-se novamente.
Emma e a amiga festejam, com um abraço e mais uma rodada. Ao Observador, Emma diz que vai votar no SNP na quinta-feira, porque considera que só com o partido independentista é possível ter “uma voz da Escócia em Westminster”. É mais uma eleitora a engrossar a fileira de apoiantes do SNP, que cresceu exponencialmente ao longo dos últimos anos. Basta pensar que em 2014, ano do referendo à independência, tinha apenas 25 mil militantes registados — agora vai em mais de 125 mil.
Muito graças ao Brexit, claro está. “Durante 300 anos tivemos um Reino Unido que agregava quatro nações diferentes: a Escócia, a Irlanda do Norte, o País de Gales e a Inglaterra”, remata Alan Bissett. “Mas agora, em parte graças ao Brexit, as linhas divisórias emergiram e a tensão já é demasiada para este Reino se manter unido. E sim, isso influenciou a dinâmica dos Celtic e dos Rangers.”
“Bye, bye, Rangers”. Venha daí a independência, dizem os adeptos do Celtic
A tensão entre os dois clubes torna-se mais notória do que nunca à medida que o jogo avança. A jogar com apenas dez homens, o Celtic está à defesa — e aflito. O nervosismo sente-se por todo o pub, com os adeptos a insultarem jogadores dos Rangers quando aparecem no ecrã. Mas a defesa do Celtic lá se vai aguentando, até aos 90 minutos. O árbitro anuncia então seis minutos de prolongamento — o que faz refilar alguns dos clientes mais barulhentos do Malones.
Mas, à medida que o prolongamento se arrasta, a euforia começa a crescer. Parece cada vez mais certo que o Celtic vai ganhar ao seu grande rival e conquistar mais uma Taça da Liga escocesa. Na televisão, o realizador mostra um adepto dos Rangers de rosto desolado, na bancada. No Malones, o escocês que fez o gesto dos dois Vs faz agora adeus para a televisão, como quem diz “bye bye, Rangers”. Os últimos dois minutos são de loucos: o Rangers faz um remate certeiro mas, uma vez mais, o guarda-redes Forster faz uma defesa espetacular. De seguida, diz-se magoado, numa tentativa de queimar algum tempo. Nas bancadas, aparece o cantor Rod Stewart e os clientes no Malones festejam a presença daquele que é provavelmente o adepto mais conhecido do clube.
Finalmente, ouve-se o apito afinal e o bar volta a explodir em gritos de felicidade e aplausos. Alex abraça a mulher e beija-a, agarrando-a bem apertada para festejar. “1-0, eu disse-te!”, grita ao Observador, antes de se despedir com um aperto de mão solene, primeiro, e um beijo na cara, em seguida.
“Ó meu Deus, isto foi tão entusiasmante!”, comenta Emma, que festejou o resultado aos pulos. E até faz análise de treinadora de bancada: “O truque foi terem deixado entrar o Édouard na segunda parte”, afirma, referindo-se ao avançado francês. Agora, é altura de festejar. A estudante manda vir mais uma cerveja, mas garante que será a última, “porque amanhã é dia de aulas”. Quinta-feira, “se os tories não tiverem uma vitória”, celebrará mais um pouco.
A vitória do Celtic foi difícil, com sofrimento até à última, mas chegou. Irá acontecer o mesmo com a tão desejada independência, para alguns? “É difícil dizer”, analisa Alan ao Observador. “É possível que, no caso de não haver uma maioria clara no Parlamento, possa vir a haver um governo do Labour com o apoio do SNP, mas que a condição imposta por este seja a de que venha a haver um novo referendo. Mas é também possível que o Labour faça do SNP um bode expiatório e diga que não há governo porque os escoceses exigiram demasiado.”
O dramaturgo suspira: “Em 2014 era tudo muito simples: havia um referendo acordado com Westminster e bastava que as pessoas votassem a favor. Agora há tantos detalhes, tantos ‘ses’, tantos cenários… O Brexit baralhou isto tudo.” O sonho de uma Escócia independente parece, por isso, muito mais distante do que uma vitória do Celtic sobre os Rangers, pelo menos para já. Mas alguns dos adeptos pró-independência vão tomando alento precisamente no futebol. Já com as televisões em silêncio, a música regressa ao Malones. Nas colunas toca We Shall Overcome, a música que se tornou famosa com o movimento dos direitos civis nos EUA e que foi adotada por muitos, sobretudo à esquerda do espectro político, ao longo dos tempos.
“Do fundo do meu coração, acredito mesmo: um dia destes, venceremos”, vai cantando Joan Baez, à medida que os clientes vão saindo para o frio das ruas de Glasgow e o Malones se vai esvaziando. Os adeptos do Celtic venceram a batalha deste domingo. A da independência deve demorar um pouco mais.
Na Irlanda do Norte, os muros continuam erguidos: “Ninguém aqui está limpo”