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Nélia Santos aproveitou a hora de almoço desta terça-feira para levar o pão a um dos padeiros de Mora que está infetado com a Covid-19. “Como é que se costuma dizer? Em casa de ferreiro, espeto de pau. Todos os dias lhe vou deixar o pão a casa. Vamo-nos ajudando uns aos outros”, conta a secretária da Junta de Freguesia ao Observador. Não é propriamente a função de Nélia: há três funcionários designados para essa tarefa, mas todos colaboram. Até o presidente da Junta vai levar comida a casa de quem precisa. O tesoureiro também, mas ficou entretanto em confinamento e, enquanto não souber o resultado do teste, não sai de casa. “Estou a fazê-lo quase como voluntária, como amiga. Já fui a algumas famílias levar desde medicação, a termómetros, a alimentos. A nossa missão é esta”, acrescenta a secretária.
A missão da Junta de Freguesia é essa, mas para Nélia ainda há outra: todos os dias passa na casa do tio Joaquim — como a ele se refere — para ver como está. Por vezes, quando ele precisa, leva-lhe comida e medicação, mas o seu principal objetivo é saber dele. Não tem “praticamente” família, vive sozinho e está infetado com a Covid-19. Nem os vizinhos, que são grandes amigos dele, o podem ajudar porque também eles estão confinados. É Nélia que tenta, à distância, fazer-lhe companhia: todos os dias passa pela casa, chama-o e “ele aparece à janela”. “Tio Joaquim, como está? Como está a febre? Como é que se sente?”, simula Nélia, acrescentando: “Ainda hoje fui lá levar-lhe uma bombinha porque ele tem bronquite. No domingo, fui deixar-lhe o medicamento para a tensão: deixo em cima do muro, grito por ele — “Tio Joaquim, tem aqui a sua encomenda” —, ele depois vem e recolhe”.
É assim que se vive agora o dia-a-dia em Mora. A vila alentejana no distrito de Évora conseguiu chegar até ao início de agosto sem nunca ter registado qualquer caso positivo. Mas, de repente, 46 dos cerca de 2.500 habitantes ficaram infetados. Mais: segundo a diretora-geral da Saúde, são mais de 300 as pessoas “potencialmente envolvidas” no surto, entre infetados e pessoas que contactaram com eles. Isto significa que cerca de 12% dos morenses estão fechados em casa. Outra percentagem — incalculável — passou a dedicar-se a cuidar deles, das suas hortas e dos animais.
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Cerca de 12 famílias estão a ser ajudadas. “Não há ninguém que esteja a passar necessidades”, garante presidente da câmara
Basta ligar para a Junta de Freguesia ou mandar um email com a lista de compras e o sítio onde querem que as mesmas sejam adquiridas. “Deixamos a lista nos espaços comerciais — que já são muito poucos abertos, só já há dois —, eles recolhem a encomenda, fazem a conta, nós pagamos, recolhemos, levamos à pessoa, com o talão dentro do saco. Passados dois ou três dias, ou quando a pessoa voltar a fazer uma encomenda de novo, recolhemos o dinheiro da primeira encomenda e deixamos a segunda”, explica ao Observador Nélia Santos.
Há três funcionários designados para esta função: um está sempre na Junta e outros dois na distribuição. Um deles era para estar de férias, mas acabou por não ir, até porque um quarto funcionário da Junta de Freguesia ficou infetado e foi preciso reforçar a equipa. Estimam que estejam a ajudar cerca de “uma dúzia de famílias, incluindo o senhor Joaquim”, explica Nélia, detalhando que é o único caso de uma pessoa que vive sozinha que estão a ajudar. “Há uma outra senhora que vive sozinha, mas tem família por cá”, adianta.
O presidente da Câmara de Mora, Luís Matos, garante ao Observador que “não há ninguém em Mora que esteja a passar necessidades por não poder sair de casa”. Além de comida, também são levados medicamentos e ração para os animais. A Câmara está também a fazer a recolha do lixo porta-a-porta a cerca de 30 pessoas. “É o que podemos fazer nesta altura e o que está ao nosso alcance”, remata Nélia Santos.
De galinhas a gatos, funcionários da Junta trataram de animais de infetados. Pessoas em confinamento têm horários para poder ir à horta
Além das pessoas, é preciso também tratar das hortas e dos animais. “Aqui toda a gente tem um bocadinho de terreno onde cultiva as suas coisinhas da horta“, lembra Nélia, para depois contar que os funcionários da Junta chegaram a ir “cuidar de alguns animais” de pessoas que estavam em confinamento, de galinhas a gatos. Nos casos dos infetados é diferente: “Levamos os alimentos para os animais e um vizinho ou um amigo cuida deles”.
Entretanto, as pessoas que estão em confinamento pediram autorização à Autoridade Regional de Saúde (ARS) do Alentejo para poderem sair de casa para irem à horta ou tratar dos animais. Mais: foram estipulados horários para cada uma delas. “Há mapas onde reportam que uma pessoa pode sair das 20h00 às 21h00 para tratar dos animais ou das 6h00 às 7h00 para regar a horta, por exemplo”, explica ao Observador o Major Vieira, do Comando Territorial da GNR de Évora.
Mas nem todas as pessoas confinadas conseguem obter essa autorização: os delegados de saúde avaliam caso a caso. Por exemplo, é mais provável dar uma autorização a alguém que esteve em contacto com uma outra pessoa que contactou com um infetado do que a pessoas que estiveram em contacto direto com um doente e aguardam o resultado dos testes.
Santa Casa da Misericórdia está a ajudar três ou quatro famílias. GNR faz fiscalização porta a porta
Além da Junta de Freguesia, também a Santa Casa da Misericórdia de Mora tem estado a ajudar a população com o mesmo sistema de apoio domiciliário. “Todos os pedidos que nos chegam verificamos e fazemos apoio domiciliário. Damos nota à nossa cozinha, que fabrica mais refeições para aquelas pessoas e o nosso serviço de apoio domiciliário vai entregar”, explica ao Observador o vice-provedor José Mariano.
Estima que entre três a quatro famílias estejam neste momento a ser auxiliadas por este serviço da Santa Casa da Misericórdia. Um deles é um homem cuja mulher foi internada no Hospital de Évora com Covid-19 e a filha está também em confinamento. Acabou por ficar sozinho.
Sobe para 46 o número de casos positivos de Covid-19 na vila alentejana de Mora
Também a GNR reforçou o patrulhamento. Todos os dias, um guarda vai à casa das 46 pessoas infetadas fazer um “controlo porta a porta”. “Veem se a pessoa lá está e se precisam de alguma coisa”, explica o Major Vieira. É um dois em um: por um lado, verificam se o doente está a cumprir o isolamento profilático; por outro, se detetarem alguma pessoa que precise de alguma ajuda, reportam à Junta de Freguesia. Segundo garantiu o Major Vieira ao Observador, não houve até ao momento “nenhuma situação de incumprimento”, de alguém que tenha saído de casa mesmo estando infetado ou estando obrigado ao isolamento.
Parte da população fechou-se em casa e fechou estabelecimentos por iniciativa própria por “angústia, ansiedade e medo”
O surto deu sinais de existir no dia 9 de agosto — mas o vírus já lá andava há mais tempo. Nesse domingo à noite, o presidente da Câmara de Mora, que se encontrava de férias, foi alertado para a existência de três casos de Covid-19 na vila de Mora: todos eles de pessoas de famílias diferentes. “Estamos a falar de um concelho que nunca teve nenhum caso de doença e praticamente em oito ou nove dias passámos do zero para os 46 casos. Tivemos que agir muito rapidamente. Na segunda de manhã tomámos logo as medidas que às 9h00 da manhã era possível tomar para reduzir os contactos com as pessoas”, diz ao Observador Luís Matos.
Foram encerrados os serviços municipais de atendimento ao público. A autarquia coordenou-se com as autoridades de Saúde para definir a forma de fazer os testes e os sítios para o fazer. Pediu aos lares que reforçassem as medidas de prevenção bem como aos comerciantes para que tivessem cuidados redobrados. “Passámos a mensagem de que nessa altura era importante que as pessoas ficassem em casa — não só as que estão em confinamento obrigatório”, recorda o presidente da Câmara.
A população foi sensível ao conselho do presidente — mais não fosse porque o surto de Reguengos de Monsaraz, a menos de 100 quilómetros de distância, que vitimou 16 utentes, ainda é suficientemente recente para assustar. “À medida que foram surgindo mais casos na vila, foram encerrando estabelecimentos. Dois ou três em que houve funcionários infetados fecharam de imediato. Outros, dada a situação de angústia, ansiedade e medo, decidiram encerrar por iniciativa própria. Houve uma sensibilidade da população”, diz ao Observador Luís Matos.
Luísa Prates, proprietária da Pastelaria da Praça, no centro da vila, reconhece que houve essa sensibilidade e diz que Mora está “um completo deserto”. Deixou de ver os clientes habituais: alguns estão infetados — conhece todos os 46 —, outros em confinamento. É um dos poucos estabelecimentos que continua aberto: tomou essa opção para tentar “minimizar” os dois meses que esteve fechada e “triplicou” as medidas de segurança.
No que diz respeito a medidas de segurança e rastreamento de contactos, o Presidente da Câmara garante ainda que a ARS do Alentejo tem estado a seguir o surto e que “não há, neste processo, que apontar responsabilidade por mau funcionamento”. “Toda a gente tem estado a cumprir aquele que é o seu papel. Há experiências no Alentejo que não têm corrido bem e está-se a apostar para que as coisas corram melhor possível”, acrescenta.
Aliás, na Câmara já se trabalha prevendo o pior cenário, com a criação uma bolsa de voluntariado para substituir os funcionários que estão a prestar apoio domiciliário, na eventualidade de ficarem infetados. “Todos nós sabemos que uma das falhas de Reguengos foi a maior parte dos funcionários ficar infetada”, lembra Luís Matos, acrescentando que o objetivo é “se vier a acontecer uma coisa dessas” haver “pessoas que se disponibilizam para dar o apoio que for necessário”. “Neste momento, como está a situação, estamos a conseguir responder. Se as coisas se complicarem, temos de saber onde vamos às pessoas. Temos de nos precaver“, remata.