Um “ataque terrorista” levado a cabo por “neonazis” ucranianos. O Presidente russo, Vladimir Putin, manifestou, esta quinta-feira, a sua indignação pela entrada de um grupo de militares da Ucrânia em território russo: terão conseguido atravessar a fronteira da Rússia, deslocar-se cerca de 170 quilómetros dentro das fronteiras russas e chegar à região de Bryansk. Kiev nega as acusações e fala numa “operação de bandeira falsa” levada a cabo pela Rússia.
Moscovo tem reportado a existência de supostos ataques da Ucrânia (ou, pelo menos, tentativas de ataques) em várias localidades que a Federação Russa alega administrar em solo ucraniano, como a Crimeia ou Mariupol — e que Kiev tem interesse em reconquistar. Contudo, as operações supostamente ofensivas já atingiram território russo, como um drone que sobrevoou uma aldeia perto de Moscovo, ou, agora, a alegada entrada de militares ucranianos em Bryansk.
Esta vaga recente de ataques, em pontos que não tinham sido atacados há vários meses e outros que nunca tinham sido alvo de alegadas ofensivas ucranianas, surge no início de março, numa altura em que tipicamente os russos e os ucranianos celebram a chegada da primavera. Coincidência ou não, é nesta estação do ano que o Ocidente espera que a Ucrânia comece a já anunciada contraofensiva. Com o armamento moderno ocidental a chegar a território ucraniano, aliado a uma melhoria das condições atmosféricas (os próximos dias mostram temperaturas acima do habitual para esta época do ano), poderá este ser o início de um novo tipo de iniciativas da Ucrânia na guerra?
Os dirigentes ucranianos têm transmitido a mensagem de que o período mais duro para a resistência do país pode ter acabado. Essa ideia ficou expressa no discurso diário do Presidente ucraniano desta quarta-feira. “Este inverno acabou. Foi muito difícil e, sem exagero, todos os ucranianos sofreram dificuldades. Mas conseguimos garantir à Ucrânia energia e aquecimento”, afirmou Volodymyr Zelensky.
Ainda mais longe foi o chefe da diplomacia ucraniano. Dymtro Kuleba, que escreveu na sua conta pessoal do Twitter que Vladimir Putin tinha “sofrido outra grande derrota” a 1 de março. “Apesar do frio, da escuridão e dos ataques com mísseis, a Ucrânia preserverou e derrotou o terror do inverno”, saudava o ministro dos Negócios Estrangeiros, assinalando também que a “Europa não congelou, apesar do gozo e das previsões russas”.
On March 1, 2023, Putin suffered another major defeat. Despite the cold, darkness, and missile strikes, Ukraine persevered and defeated his winter terror. Furthermore, Europe has not 'frozen' despite Russian predictions and mockery. I thank our partners for standing with Ukraine.
— Dmytro Kuleba (@DmytroKuleba) March 1, 2023
À parte estes ataques em zonas como a Crimeia ou Bryansk, certo é que o ponto mais quente do conflito continua a ser Bakhmut, localidade onde as forças ucranianas receiam perder terreno nos próximos dias. Mas estarão já a colocar em marcha outro plano ofensivo, desta feita maior e mais ambicioso?
Como foram os ataques dos últimos dias em território disputado pela Rússia e Ucrânia?
Esta vaga de ataques invulgares começou no final da semana passada em Mariupol, cidade que foi palco de intensos combates até maio de 2022, altura em que foi conquistada pelas forças russas após meses de resistência. A localidade no sul da Ucrânia, e que dá acesso ao Mar de Azov, foi bombardeada recentemente pelas forças de Kiev. “Estou chocado com os ataques em Mariupol. O inimigo definitivamente começou algo novo”, sublinhou Ivan Utenkov, um dos mais conhecidos bloggers militares russos.
Esta segunda-feira, no seu relatório diário sobre a guerra, o ministro da Defesa britânico dava conta de que dirigentes pró-russos “reportaram pelo menos 14 explosões” em redor de Mariupol. “Os locais dos incidentes incluíram um armazém de munições, dois depósitos de combustível e uma fábrica siderúrgica que servia como base militar.”
Adicionalmente, o governo britânico admite que a Rússia que possa ficar “preocupada” com estas “explosões inexplicáveis”, ainda para mais ocorrendo numa “zona que antes estava fora das capacidades” ucranianas de ataque. “Apesar de devastada pela guerra, Mariupol é importante para a Rússia porque é a maior cidade que a Rússia conquistou em 2022 e que ainda controla”, nota o ministério britânico, que sublinha que a localidade integra também “uma importante rota logística”.
Latest Defence Intelligence update on the situation in Ukraine – 27 February 2023
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— Ministry of Defence ???????? (@DefenceHQ) February 27, 2023
Nunca confirmando oficialmente a autoria dos ataques numa cidade que a Ucrânia quer voltar a controlar pela sua importância simbólica e estratégica, Nataliya Humeniuk, porta-voz das forças armadas ucranianas, assinalou apenas que a “inacessibilidade é um conceito muito relativo”. “O que é considerado inalcançável nem sempre o é. Mariupol já não é completamente inalcançável para nós.”
Ainda mais a sul, na Crimeia, a Rússia denunciou uma vaga de ataques com drones. O porta-voz do Ministério da Defesa russo, Igor Konashenkov, divulgou, na quarta-feira, que saiu “frustrada uma tentativa do regime de Kiev em realizar um ataque massivo com drones contra as instalações da Península da Crimeia”. Em concreto, o responsável militar detalhou que foram abatidos seis equipamentos ucranianos. “Não houve vítimas nem danos materiais” do lado russo.
O conselheiro de Volodymyr Zelensky, Mykhailo Podolyak, também se pronunciou sobre os ataques na Crimeia, mas não os reivindicou. O responsável da presidência ucraniana enfatizou apenas que a Ucrânia “não realiza ataques contra o território da Rússia” — e que se limita a conduzir uma “guerra defensiva com o objetivo de libertar todos os seus territórios”. De salientar que a Ucrânia encara a península, anexada ilegalmente pela Rússia em 2014, como parte integrante do seu território nacional.
Operação de bandeira falsa ou sabotagem ucraniana na Rússia?
O território russo também não ficou imune a esta nova vaga de ataques. Durante a manhã de terça-feira, o governo russo suspendeu por algumas horas os voos no aeroporto de São Petersburgo, por conta da presença de um “objeto não-identificado”, idêntico a um drone. A Rússia não detalhou se se tratou de um equipamento ucraniano, nem a Ucrânia reivindicou a autoria daquilo que poderia ser uma invasão do espaço aéreo russo.
Mas, no mesmo dia, o Ministério da Defesa da Rússia adiantou que tinha intercetado três drones ucranianos: um na região de Krasnodar, outro em Adiguésia e ainda um terceiro a 100 quilómetros de Moscovo, nas proximidades da aldeia de Gubastovo. A pasta liderada pelo ministro Sergei Shoigu acusou o regime de Kiev de tentar “atacar locais de infraestruturas civis” com drones. Mas a Ucrânia nunca se pronunciou sobre estes ataques aéreos.
A drone was found near a Gazprom facility in Kolomna, 500km from the Ukrainian border. It appears to be a domestically produced UJ-22 drone with a range of 800km. It is possible the same type of drone was used to attack the oil facility in Tuapse. pic.twitter.com/IlmdG5m1eS
— Kyle Glen (@KyleJGlen) February 28, 2023
Esta quinta-feira, a Rússia denunciou então a entrada de um “grupo de sabotadores” no seu território. A imprensa do país frisava que tinham existido inclusive situações de confronto, incluindo civis. Uma delas terá ocorrido quando “vários residentes” foram feitos reféns por militares da Ucrânia dentro de uma loja, na aldeia de Lyubechan. O governador russo da região de Bryansk, Alexander Bogomaz, assinalou igualmente que “os sabotadores abriram fogo contra um carro em andamento”. “Como resultado dos tiros, um residente morreu e uma criança de dez anos ficou ferida.”
Alegadamente, após este episódio, Vladimir Putin teria ordenado uma reunião de urgência do Conselho de Segurança, mas a informação foi mais tarde desmentida. O porta-voz do Kremlin, Dmytro Peskov, confirmava, ainda assim, que se mantinha na agenda do Presidente russo a reunião com as altas patentes militares marcada para esta sexta-feira — onde o tópico deverá ser abordado.
Do seu lado, a Ucrânia negou que tenha estado por detrás desta operação, assegurando não ter tido conhecimento prévio desta entrada de combatentes seus em território russo. As Forças Armadas de Kiev sugeriam que as “forças militares da Rússia podiam recorrer a provocações, de forma a descredibilizar a Defesa” ucraniana. A mesma argumentação foi esgrimida por Mykhailo Podolyak, que, no Twitter, caracterizou a operação como uma “provocação deliberada clássica”. “A Federação Russa quer assustar o seu povo e justificar o ataque contra outro país.”
The story about ????????sabotage group in RF is a classic deliberate provocation. RF wants to scare its people to justify the attack on another country & the growing poverty after the year of war. The partisan movement in RF is getting stronger & more aggressive. Fear your partisans…
— Михайло Подоляк (@Podolyak_M) March 2, 2023
Na prática, Kiev acusava Moscovo de desencadear operações contra os seus próprios interesses — alguns deles dentro do seu próprio território — para depois acusar a Ucrânia de ser a autora material desses ataques. A teoria da Ucrânia sai reforçada pelo relatório diário do think tank norte-americano Instituto para o Estudo da Guerra, da véspera. No documento desta quarta-feira, o organismo sinalizava que as “autoridades russas” estariam a “intensificar a promoção de operações de bandeira falsa para desviar a atenção da falta de ganhos tangíveis no campo de batalha” e, também, para “retardar o fornecimento dos tanques ocidentais” e outro tipo de ajuda militar do Ocidente às forças de Zelensky.
“O ressurgimento recente de várias operações de bandeira falsa sugere que as autoridades russas estão a tentar mitigar os impactos informativos de uma contínua falta de sucessos russos no campo de batalha”, lê-se no documento do Instituto para o Estudo da Guerra, que também estipula que o “Ministério da Defesa russo e os altos funcionários” deverão aumentar o seu “envolvimento nestas operações de informação”, à medida que a ofensiva russa em curso em Lugansk se aproxima do fim e os detalhes da contraofensiva de Kiev estão a ser ultimados.
Há ainda outra possibilidade em cima da mesa: que os ataques na Rússia tenham sido orquestrados por um grupo de resistência anti-Putin — o Corpo de Voluntários Russos. Na rede social Telegram, o grupo reinvidicou o ataque, assinalando que não estar a “lutar contra os civis”. “Não matamos pessoas desarmadas. Chegou a altura de os cidadãos russos entenderam que não somos escravos. Lutem!”
Denis Sokolov, que se apresentou ao jornal espanhol El País como chefe do “centro de coordenação da resistência do Conselho Civil do Corpo de Voluntários Russos”, confirmou igualmente que a ação foi executada por cerca de dez membros do grupo de “voluntários” russos.
Operação em cidade russa junto à fronteira com a Ucrânia reivindicada por grupo de russos anti-Putin
Sem garantias de que o ataque desta quinta-feira tenha partido de sabotadores ucranianos, ou que se tenha tratado de uma operação de bandeira falsa, ou ainda tenha sido orquestrado por um grupo de resistência contra o Presidente russo, a Rússia garantiu, ainda assim, que retaliou contra o grupo, expulsando-o do território do país. “O inimigo foi empurrado para território ucraniano, onde foi alvo de um ataque massivo de artilharia”, indicaram os serviços de informações russos em comunicado.
Prenúncio da contraofensiva com a chegada da primavera (e das temperaturas mais altas)?
Caso se confirme que os ataques mais recentes simbolizam o início de uma nova contraofensiva, a Ucrânia conta com condições atmosféricas de feição. O relatório desta quinta-feira do Ministério da Defesa britânico antevê que as temperaturas subam. Em consequência, a neve deverá derreter — e os terrenos ficarão lamacentos. “Isso vai limitar o movimento transfronteiriço, o que vai providenciar uma vantagem militar para as forças de defesa.”
“As temperaturas durante o dia aumentarão e estarão graus positivos”, indica o Ministério da Defesa, que antevê que essa tendência deverá continuar durante as próximas semanas. Nos próximos dias, por exemplo, Bakhmut pode chegar aos 7 graus positivos, com as mínimas a ficarem-se nos -1º.
As condições meteorológicas “no final de março” serão ainda menos favoráveis para as movimentações transfronteiriças, sublinha o relatório, acrescentando que isso “dificultará” o movimento de veículos blindados mais pesados, especialmente em terrenos mais complexos como Bakhmut. No final, isso acabará por ajudar a Ucrânia.
Latest Defence Intelligence update on the situation in Ukraine – 2 March 2023
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— Ministry of Defence ???????? (@DefenceHQ) March 2, 2023
A possível retirada da Ucrânia em Bakhmut. Como está o ponto mais quente da guerra?
Atualmente, Bakhmut continua a ser palco de intensos combates. E a Ucrânia já admite um cenário de retirada, apesar de continuar a resistir. O deputado ucraniano Serhiy Rakhmanin acredita que, “mais cedo ou mais tarde”, as tropas de Kiev “terão de sair” da localidade. “Não faz sentido resistir a qualquer custo”, disse o parlamentar, citado pelo Guardian, destacando contudo que Bakhmut continuará a ser “defendida” por “vários motivos”. “O primeiro [consiste em] infligir o máximo de perdas possíveis à Rússia e fazer com que a Rússia gaste munições e recursos.”
O Presidente da Ucrânia já tinha concedido que a situação em Bakhmut está a agravar-se para as tropas ucranianas. “A situação está a tornar-se cada vez mais difícil”, indicou no discurso diário da passada quarta-feira, apontando para o facto de o “inimigo” continuar a destruir “sistematicamente tudo o que pode ser usado para proteger” as posições de Kiev.
Ainda assim, o líder do grupo Wagner, Yevgeny Prigozhin, sublinhou que as “tropas ucranianas” estão a tentar defender Bakhmut “ferozmente” e “com toda a sua força”. “Dez mil soldados ucranianos estão ferozmente a repelir ataques. O derrame de sangue aumenta todos os dias.”
A confirmar-se a tomada de Bakhmut pela Rússia, esta seria a maior vitória do país em território ucraniano nos últimos tempos. No entanto, a Ucrânia pode estar a tentar desviar as atenções das tropas russas — e, talvez, a preparar uma nova contraofensiva, como já aconteceu em setembro. Nessa altura, Kiev montou uma campanha de informação que levou a que todos os olhares se centrassem em Kherson. E acabou a desencadear uma operação de larga escala em Kharkiv, que apanhou as forças russas de surpresa e permitiu recuperar o controlo de uma importante fatia de território, 500km a norte.
Já se começam a notar alguns prenúncios de que o modelo possa ser repetido. Os próximos dias e semanas deixarão mais claro se Kiev repete a estratégia — e de que forma a Rússia consegue responder a essa contraofensiva primaveril.
Especial atualizado às 11h19 de dia 3 de março com a informação de que o ataque possa ter sido organiado por um grupo resistência anti-Putin