O relógio mostrava as seis da manhã, hora em que habitualmente Isaura Quevedo entra pela casa dos portugueses, e o fundo era semelhante ao dos noticiários da CNN Portugal. Até aí, tudo parecia legítimo, e a seriedade com que a jornalista lia o teleponto quase fazia crer que o que dizia era real. No entanto, bastava estar atento às palavras escritas no oráculo e à maneira como a boca mexia para se perceber — ou, pelo menos, suspeitar — que aquele era um vídeo adulterado.

Ao mesmo tempo que Isaura Quevedo falava, as palavras “nova aplicação móvel exclusivamente para o Portugal” e “Ronaldo ajuda as pessoas a ficarem ricas” apareciam no ecrã. Contudo, não era apenas aí que os erros linguísticos se faziam notar.

A falsa reprodução de um noticiário da CNN Portugal, que se tornou viral nas redes sociais, começava com a jornalista a dizer que “o famoso jogador de futebol português Cristiano Ronaldo” tinha dito, “numa entrevista recente, que está a patrocinar um fundo de prémios numa nova aplicação móvel, onde todos podem ganhar“. “O jackpot cresce a cada semana e já atingiu os mais de 100 milhões de euros“, continuava.

O discurso era acompanhado por imagens de alguém a instalar a aplicação “Royal Road Rush” no telemóvel e de números de uma conta bancária a dispararem, enquanto o jogo funcionava. Além disso, também aparecia uma suposta entrevista ao jogador português Cristiano Ronaldo.

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“Com o aplicativo ‘Royal Road Rush’, todos podem ganhar”, ouvia-se o internacional português a dizer. “Eu sempre tento ajudar as pessoas e este aplicativo permite que as pessoas aumentem a renda. Por isso, decidi patrocinar um fundo de prémios que será dividido pelos jogadores dos jogos mais populares.”

O vídeo que andou a circular continha ainda o depoimento de um suposto vencedor, Manuel Martínez, que, com um sotaque brasileiro, dizia estar “agradecido ao aplicativo móvel por ajudar a mudar” a sua vida. “Agora, já posso comprar uma casa.

No final, aparecia novamente a imagem de Isaura Quevedo, a apelar aos telespectadores para instalarem “o aplicativo através da loja de aplicativos, enquanto é gratuito”, se quisessem “experimentar novas emoções e ter a chance de ganhar o jackpot“.

O vídeo tornou-se viral em várias redes sociais e acabou por chegar à caixa de mensagens da jornalista que o protagoniza. E, como não era a primeira vez que tal acontecia, Isaura Quevedo já sabia o que fazer.

“Na mesma altura em que este apareceu, havia outro a circular, em que fazia referência a um jogo do youtuber Wuant”, conta ao Observador. “Fui sempre pedindo às pessoas conhecidas que me enviavam para os denunciarem por fraude.”

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Esse pedido acabou por ter resultados práticos, levando a que o primeiro vídeo deixasse de circular. No entanto, o mesmo não aconteceu com o segundo. “O Instagram enviou-me uma notificação a dizer que a publicação não ia ser eliminada, mas que estava a rever o assunto. Aí, percebi que não tinha qualquer poder sobre a minha imagem nas redes sociais“, revela Isaura Quevedo.

Como a jornalista aparecia nos vídeos em contexto de trabalho, decidiu encaminhar a situação para os serviços jurídicos da CNN Portugal, que, no momento em que este artigo foi publicado, ainda estavam a lidar com a situação.

Ao aperceber-se da proporção que a tentativa de burla estava a tomar, e depois de receber várias mensagens nas redes sociais de pessoas a acreditarem na veracidade daquele conteúdo — e até um telefonema da avó a questioná-la sobre a autenticidade do vídeo —, Isaura Quevedo decidiu deixar um apelo.

“Venho mais uma vez esclarecer que estas publicidades são falsas. Nunca gravei nada deste género. Isto é naturalmente manipulado com Inteligência Artificial. Tão assustador que a ‘minha’ voz está absolutamente idêntica…“, apontou na rede social X (antigo Twitter), tendo evidenciado ao Observador que há inclusivamente uma parte em que esta se engana e autocorrige-se no vídeo, para parecer mais humano.

“Além do roubo de identidade, o que me assusta é a velocidade a que esta praga prolifera. Este meu clone digital falso está constantemente a ser publicado em perfis diferentes e a publicitar diferentes jogos“, continuou a jornalista.

Bruno Castro, CEO da VisionWare, empresa portuguesa especializada em segurança de informação, explica ao Observador que, “neste tipo de esquemas fraudulentos, a ideia é atingir o maior número de pessoas possível, porque já se sabe que a percentagem de sucesso é de 1% a 4%“. “Quando se trata de um ataque massivo, essa percentagem representa muitas pessoas, mais do que antes da pandemia”, acrescenta.

Com a pandemia, todos nós tivemos de saltar para a internet instantaneamente. Estivéssemos preparados, mal preparados ou não preparados”, recorda. “De repente, vimos crianças, idosos, empresas, organizações, Estados a saltarem para o ciberespaço sem estarem preparados para tal.”

O aumento do número de utilizadores, suscetíveis a tornarem-se vítimas destes esquemas, não é, no entanto, o único fator que preocupa o especialista em cibersegurança e até a própria jornalista visada no vídeo. “O mais perigoso é que eles podem colocar-me a dizer o que quer que seja. Sei lá se algum dia não estou a promover algo mais perigoso do que um jogo”, confessa Isaura Quevedo.

Fácil, barato e com uma “probabilidade imensa de sucesso”: esquemas de burla tendem a ficar cada vez mais “perfeitos”

“O pior é que a criação destes esquemas é de baixo custo e também muito fácil. Atualmente, por pouco mais de 100 euros faz-se um vídeo com uma probabilidade imensa de sucesso“, aponta Bruno Castro, dizendo ainda que os vídeos têm vindo a ficar cada vez mais “perfeitos e humanizados”.

Exemplo disso é a comparação entre o esquema que visou Isaura Quevedo e o que protagonizou outra jornalista da CNN. “No meu vídeo, que já foi feito há alguns anos, eu aparecia a lançar um direto e do outro lado estava uma pessoa a falar sobre negócios de trading. A minha voz também tinha sido alterada, com recurso a Inteligência Artificial, mas parecia a do GPS, muito robótica“, explica Cátia Nobre ao Observador.

A pivô fez o mesmo que a colega, denunciou o vídeo nas redes sociais em que conseguia – visto que foi bloqueada pelo suposto criador no Instagram – e deixou a “coisa passar” sem fazer qualquer tipo de queixa.

Este tipo de vídeos, por norma, não tem uma vida muito longa. Circulam durante alguns dias e a coisa acaba por acalmar-se, porque a adesão da parte do público não é muito grande”, aponta. “Na esmagadora maioria dos casos, as pessoas conseguem perceber que o que estão a ver não é real.”

Apesar de isso ter acontecido no vídeo em que Cátia Nobre surgia em destaque, há muitos casos em que a burla perdura durante meses ou anos. O especialista em cibersegurança Bruno Castro relembra o caso de um vídeo que visou um médico português, em que este alegadamente promovia um medicamento “milagroso” para a diabetes.

“O vídeo estava muito mal feito, mas para se perceber como isto pode ter tanto sucesso, o médico ainda recebe chamadas na clínica a pedir o dito medicamento“, revela. “Mesmo tendo o site ficado indisponível, o vídeo continua ativo nas redes sociais, levando a que as pessoas vão à procura da pessoa que promove o fármaco.”

A propagação dos vídeos surge, segundo Cátia Nobre, também pelo facto de não estarem necessariamente associados a alguma conta nas redes sociais. “Aparecem como anúncios a rodar. Aqui surge outra questão: como é que a Meta, neste caso, aceita estes anúncios sem verificar a sua origem?

A esta pergunta, Bruno Castro também não sabe responder. Apesar de considerar que devia haver uma maior literacia digital da parte dos consumidores – que foi dificultada com a pandemia e o aumento do “gap geracional” – sublinha que parte da responsabilidade devia vir das empresas que “promovem estes produtos”.

“Devia haver um maior controlo sobre o que põem à venda e a circular, para também serem mais premiáveis a denúncias”, evidencia o especialista, referindo-se ao facto de os vídeos e de as aplicações demorarem a ser retirados das plataformas.

“No caso do jogo alegadamente promovido pela jornalista CNN Portugal, de certeza que eles [App Store e Play Store, por exemplo] já receberam denúncias e queixas, mas estão a demorar demasiado tempo a agir“, sublinha.

O Observador tentou entrar em contacto com a App Store para perceber o motivo de o jogo associado a um esquema de burla continuar disponível na plataforma, mas não obteve resposta.

Além disso, o Observador tentou contactar o criador do jogo, Male Solohan, que aparece associado apenas a esta aplicação, mas este ainda não respondeu às perguntas.

Como se combate a iliteracia digital? “Essa é a pergunta para um milhão de euros”

Ninguém sabe a resposta e as sugestões parecem não levar a lado nenhum. Muitos acham que a população já está suficientemente informada quanto aos riscos da Inteligência Artificial e das tentativas de burlas digitais para cair nos vídeos “assumidamente falsos”. No entanto, há ainda quem instale as aplicações, ligue para os médicos à procura de medicamentos milagrosos e acredite que são mesmo jornalistas a ‘noticiar’ tudo isto.

“Antes, tínhamos só ataques de phishing, em que recebíamos e-mails ou mensagens fraudulentas, que até vinham mal escritas”, explica Bruno Castro. “Agora, temos de começar a educar as pessoas e a dizer-lhes que aquilo que veem e ouvem pode ser falso.”

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O especialista considera que é necessário apelar a “quem instala a aplicação, para ter alguns passos antes de o fazer”. “Não aceitar a aplicação como segura só porque está na Apple Store ou na Play Store. Fazer uma espécie de pesquisa rápida, tentar perceber quem é o fabricante e perceber o que mais produziu” são alguns dos exemplos de perguntas a fazer.

À questão sobre como e onde esta educação deve ser feita, o especialista responde que “essa é a pergunta para um milhão de euros”. “Se já havia um gap geracional enorme entre pais e filhos, com esta explosão da necessidade de emprestar a Internet a todos, esse gap triplicou”, diz Bruno Castro.

“Diria que a literacia deveria começar nas escolas, mas sei que tenho lá crianças que são muito evoluídas tecnologicamente, que aprendem mais e mais rápido do que os adultos”, considera.

Se a literacia não deve começar nas escolas, pois as crianças já estão mais avançadas tecnologicamente que os professores, então deveria começar em casa. Mas, antes disso, há algumas questões a colocar: “Será que estamos a deixar as crianças na internet com mais conhecimento de causa e isso dá-lhes mais poder ainda do que já têm sobre os adultos? Será que os adultos estão preparados para ter os filhos na internet livremente?”, questiona Bruno Castro.

Mesmo sem respostas, o especialista sugere que a literacia digital comece pelos pais, “para proteger as crianças na ótica do controlo do que se faz na internet“. “Tal como as controlam na vida real, quando passeiam sozinhos na rua, quando saem à noite.”

No entanto, Bruno Castro, aponta que estas sugestões não passam disso: sugestões. E que este “é um tema claramente interessante para se estudar” e que só depois disso se poderá chegar a uma conclusão sobre como deve ser feita a literacia digital.

Até lá, o especialista considera que a melhor forma de combater estas tentativas de fraude é através da denúncia. “Junto das autoridades, do fornecedor, do fabricante, o mais importante é denunciar.”