O preço da eletricidade pago pelas famílias subiu 28% entre fevereiro e agosto deste ano, de acordo com dados divulgados esta segunda-feira pelo Instituto Nacional de Estatísticas (INE). No destaque que analisa com mais detalhe a evolução dos preços, o INE isola o período que cobre desde o início da guerra na Ucrânia até ao final do mês passado e conclui que, nesse período, a eletricidade foi o segundo subgrupo que mais contribuiu para a variação dos preços verificada entre fevereiro e agosto, com um peso de 0,799.

Com maior impacto apenas surgem os serviços de alojamento, com uma subida de 61,8% nos preços, mas neste caso há um efeito da sazonalidade como destaca o próprio INE (no verão os preços são mais altos do que em fevereiro). Mas de acordo com associações do setor, há também culpas na subida da fatura da eletricidade, que se conjugam com os crescentes preços dos alimentos e pressões salariais para atrair trabalhadores a um setor com escassez. Além de a procura ter disparado num verão que conseguiu ser mais “normal” do que o anterior.

Em agosto, a inflação aliviou face a julho para 8,9%, um travão ligeiro atribuído sobretudo à classe dos transportes. Quando olhamos para as principais classes (que agrupam vários produtos) que compõem o índice, o principal culpado pelo agravamento dos preços desde o arranque da guerra foram os produtos alimentares e bebidas — mais 11,5% —, a habitação, água, eletricidade e gás — 11,3% —, os transportes — 6,3% — e os restaurantes e hotéis — mais 13,4%, embora neste caso os aumentos sejam a regra nos meses de verão.

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No entanto, e quando focamos a atenção nos produtos que mais contribuíram para a inflação de agosto, face ao mesmo mês de 2021, a eletricidade surge em primeiro lugar, seguida dos serviços de alojamento, da carne e dos combustíveis, que foram apontados como o motor inicial da subida dos preços.

O índice dos preços da eletricidade compilado pelo INE só abrange tarifários residenciais (famílias), mas o efeito das faturas mais caras para as empresas acaba por chegar aos consumidores através do aumento do custo dos serviços cobrados pelos prestadores de serviços, como é o caso do alojamento, mas também de outros produtos, como a carne. E, de acordo com a análise do INE, constata-se que a eletricidade é um dos fatores que está a puxar pelos preços, muito mais do que os combustíveis, cujos aumentos semanais (e descidas) são muito mais visíveis junto da opinião pública. Isto apesar de os combustíveis terem um peso maior no ponderador da qual resulta o cálculo do índice de preços ao consumidor.

Isso mesmo confirma fonte oficial do INE ao Observador: “O impacto no IPC (índice de preços ao consumidor) da evolução dos preços de cada produto depende da intensidade da sua variação e do respetivo ponderador. Assim, e apesar de eletricidade ter um peso inferior ao dos combustíveis — 5,4% face a 2,81% — , o facto de a sua variação face a fevereiro ser superior à dos combustíveis explica o seu maior contributo”. Ou seja, o preço da eletricidade subiu muito mais do que o dos combustíveis, que aumentaram “apenas” 5,4% (com o gasóleo a representar a quase totalidade dessa subida). E esta diferença, refere ainda o INE, “deve-se essencialmente ao facto de se ter verificado uma redução do preço dos combustíveis nos últimos dois meses“. O gasóleo e a gasolina tiveram os maiores contributos no travão à subida dos preços verificado em agosto com variações mensais de 7,96% no gasóleo e 9% na gasolina.

Já o gás natural, o combustível cujo preço internacional foi o mais afetado pela guerra e pelas sanções à Rússia, registou uma variação entre fevereiro e agosto de 35,5%, tendo atingido um máximo de 39,2% em maio e junho. Mas o INE destaca na sua análise que “o contributo deste item para a variação do IPC tem menor relevância do que os restantes produtos energéticos, dado o seu ponderador (0,5%) ser bastante inferior ao das restantes componentes deste agregado (7,7%)”.

Medidas para os combustíveis tiveram maior impacto do que na eletricidade

As diferentes trajetórias dos custos da energia nos preços pagos pelas famílias refletem também as medidas mais ou menos musculadas que têm sido adotadas pelo Governo (e pelo regulador no caso do gás e eletricidade) para responder à escalada de preços. E a eficácia das mesmas.

Nos combustíveis, foi aplicada desde maio uma descida agressiva do imposto sobre os produtos petrolíferos com um impacto direto e imediato nos preços. Ainda que os preços internacionais tenham caído muito, sobretudo na gasolina, o regresso aos valores praticados antes da guerra só foi possível também por causa da baixa do imposto. Na eletricidade, as medidas políticas e regulatórias adotadas até agora não estão a conseguir travar o aumento da fatura para as famílias.

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Em julho, a Entidade Reguladora dos Serviços Energéticos (ERSE) anunciou uma baixa de 2,6% da tarifa regulada (após uma subida em abril) e reduziu de forma significativa as tarifas de acesso às redes para compensar os aumentos na componente de energia. Mas já quando apresentou a inflação de julho, o INE referia que ao Observador que no mercado livre se tinham registado aumentos significativos. O que aliás explica porque foi a energia elétrica o fator que mais pesou na aceleração da inflação em julho — que atingiu os 9,1%, o valor mais alto desde novembro de 1992.

Por outro lado, o teto ibérico ao gás natural introduzido no mercado grossista da eletricidade só tem conseguido suavizar o que está a ser um brutal aumento de preços em toda a Europa por causa da interrupção do fornecimento do gás russo. Já no pacote anti-inflação anunciado na semana passada, o Governo dedica mais dinheiro (neste caso perda de receita) ao controlo do custo dos combustíveis — 537 milhões de euros de um bolo total de 1,487 milhões de euros. Na eletricidade foi anunciada uma redução da taxa de 13% do IVA para 6%, que terá um efeito muito limitado na conta final (entre um a dois euros por mês) e que custa 90 milhões de euros.

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O principal contributo para o aumento da inflação de fevereiro a agosto foram os preços do alojamento, que dispararam mais de 60% nesse período. Ou seja, tendo em conta o peso relativo do setor na fórmula de cálculo do IPC, o alojamento foi responsável por 0,821 pontos percentuais da subida dos preços registada desde o início da guerra na Ucrânia.

É certo que a sazonalidade tem uma quota-parte, como aliás alerta o INE no destaque divulgado esta segunda-feira. Mas mesmo comparando agosto deste ano com o mesmo período do ano anterior a subida é significativa: de acordo com os dados divulgados pelo instituto e cálculos do Observador, o índice de preços no consumidor disparou 39% no espaço de um ano.

Essa evolução não surpreende Cristina Siza Vieira, vice-presidente da Associação de Hotelaria de Portugal (AHP). Desde logo pela contaminação do aumento dos custos da energia e dos alimentos aos preços finais ao consumidor. Ao Observador, sublinha que os preços no setor já estavam a subir em março, logo após o início da guerra na Ucrânia. Já na altura, Cristina Siza Vieira assegurava que o setor “não podia internalizar custos” como aqueles que estava a suportar.

A AHRESP, que representa o setor do alojamento, mas também o da restauração, carateriza essa subida dos custos energéticos e das matérias-primas, sobretudo alimentares, como “preocupante“. E admite “ajustes” aos preços praticados, embora argumente que não foram suficientes para desafogar as margens de lucro — que estão “totalmente esmagadas”, diz.

“As empresas estão desde o final do ano 2021 a enfrentar um aumento muito significativo do preço dos custos operacionais e das matérias-primas (sobretudo alimentares), e apesar de os preços praticados aos consumidores terem sido alvo de pequenos ajustes, a realidade é que as margens de negócio estão totalmente esmagadas. A grande maioria das empresas optou por absorver uma parte desse aumento de custos para não lesar em demasia os seus clientes, pelo que as margens estão no seu limite”, refere fonte oficial, numa resposta por escrito ao Observador. O “pico” de atividade do verão ajuda, mas não resolve o problema.

No caso da restauração, cafés e estabelecimentos similares, os preços subiram menos do que na hotelaria e 8% de agosto deste ano e o mesmo mês do ano anterior, e 4,5% entre fevereiro e agosto. Um crescimento “manifestamente inferior aos aumentos verificados nos custos energéticos (+24%) e de produtos alimentares (+15,4%)”, salienta.

Os setores têm-se queixado de dificuldade na contratação de trabalhadores — estimativas do Governo apontam para uma falta de entre 45 mil a 50 mil trabalhadores em Portugal. Cristina Siza Vieira, da AHP, adianta que para ultrapassar esse impasse, o setor está a subir salários, o que, na argumentação da associação, aumenta os custos com pessoal e é mais uma pressão para as empresas.

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Além disso, a procura está a subir mais do que no ano passado. O verão de 2021 foi ainda marcado pela pandemia e este ano está a crescer a olhos vistos. Em julho, os últimos dados sobre dormidas revelaram que o mercado externo subiu 205%. E isso também contamina a inflação. “Estes custos não podiam ser internalizados, tinham de se refletir nos preços”, insiste.

Cristina Siza Vieira antecipa tempos difíceis e prevê que os preços se mantenham elevados, ainda que possam “estabilizar”. É que se na parte de variação do preço induzida pela procura haverá uma descida fruto da época baixa, na parte que reflete os custos operacionais isso não deverá acontecer. Aí “tenderá a estabilizar”, mas a responsável não arrisca dizer que venham mesmo a diminuir. Só se os custos operacionais descessem, o que é incerto. Para isso, há expectativa quanto às medidas que o Governo vai adotar de apoio às empresas — o Executivo aguarda que a Comissão Europeia adote medidas para definir um pacote de ajudas.

A procura [dos próximos meses] preocupa porque as pessoas gastaram bastante nas férias, ainda estavam com graus de poupança elevados, com uma grande vontade, e legitimamente, de viajar. Agora, com a época baixa e a preocupação com o aumento das taxas de juro, em termos de mercado interno, há uma preocupação muito grande”, antecipa.

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A AHRESP também vê nuvens negras no horizonte. “O fim da época alta trará fortes desafios às nossas empresas, que serão das primeiras a sofrer com a perda do poder de compra dos consumidores. Este ciclo inflacionista sem fim, agora agravado com o brutal aumento dos custos energéticos e que se agudizará com a subida das taxas de juro, irá retirar ainda mais poder de compra às famílias, com impactos diretos na retração do consumo” no setor, observa. Um eventual recuo da atividade turística nos últimos três meses “será desastroso” para as empresas do setor.

Indústria da carne também culpa a eletricidade e o gás

O top dos produtos com maiores subidas é liderado pelas viagens de avião, cujos preços praticamente duplicaram de preço (mais 101,4%) nos voos internacionais entre fevereiro e agosto. Para este salto há vários fatores a considerar. A começar pelo fim gradual das restrições de viagens e a retoma em força do setor e do turismo pós-pandemia, mas também o efeito sazonal que faz com que as viagens sejam mais caras na época alta de procura. A aviação é também um dos setores mais expostos à escalada do preço dos combustíveis, neste caso do jetfuel.

Produtos cujos preços mais pesaram para a inflação no período da guerra da Ucrânia

Outro dos protagonistas dos aumentos de preço nos seis meses de guerra são os óleos alimentares cujos preços subiram 36%. Este foi um dos produtos que mais disparou com o impacto da invasão na Ucrânia, que é um grande produtor de girassóis.

A carne também sofreu um dos maiores aumentos — 25% nas aves e 23,4% no porco. E neste caso também a eletricidade (e o gás natural) são apontados como responsáveis pelo agravamento dos custos de produção e dos preços cobrados. Em comunicado, a Associação Portuguesa dos Industriais de Carnes alertou para a “situação incomportável das indústrias de carne face ao aumento do preço de energia elétrica e do gás que se praticam atualmente em Portugal”.

A fatura da eletricidade destes industriais tem sofrido agravamentos entre 0s 150% e os 261% e no gás natural os custos chegam a ser quatro vezes maiores. “Este aumento de energia tem um enorme impacto na atividade dos nossos associados, indústrias de carne, e uma vez que a energia poderá ser o único fator de produção onde o Estado pode intervir diretamente” a associação diz que “é fundamental a promoção pelo Estado de medidas de apoio” tal como fez para outros setores e à semelhança do que sucedeu na vizinha Espanha.