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Sem Luís Montenegro na assistência, Carlos Moedas quis assumir-se como um dos rostos da direita e voltou a aproveitar as cerimónias do 5 de Outubro para atacar António Costa como se fosse ele o líder da oposição. À boleia disso, ainda se tornou uma espécie de neo-diabo para a esquerda, prometendo agitar a bandeira do 25 de Novembro. Já Marcelo Rebelo de Sousa, ao contrário do que fez em 2022 (quando referiu a ‘bomba atómica’ da dissolução  ou o poder de veto), desta vez quis consolidar um novo clima de paz institucional com São Bento. Pediu “reformas a sério”, mas fez questão de as enquadrar num plano europeu, não fosse a referência ser vista como um ataque direto ao Governo de António Costa.

Eis os discursos nas entrelinhas do Presidente da República e do presidente da Câmara Municipal de Lisboa, nas cerimónias do 5 de Outubro na Praça do Município, em Lisboa.

Marcelo pede “reformas a sério”, mas tenta não ‘beliscar’ o Governo

Estamos em 2023, no meio de uma guerra global feita de muitas outras guerras, mas mais evidente nas suas causas e consequências, e que tantos pensaram que com engenho, adiamento e sorte não ocorreria. Como tantos outros persistem em não ver que a balança de poderes do mundo está em mudança: uns a descerem, outros a subirem. E ou as instituições internacionais e domésticas mudam a bem ou mudarão a mal. E mal porque tarde e atabalhoadamente.”

Marcelo Rebelo de Sousa critica os que persistem em não reconhecer a nova relação de forças no mundo, explicando, sem especificar, que há forças que ganharam peso e outras que perderam. As reivindicações dos BRIC (Brasil, Rússia, Índia e China) e de outros países G-20 é que haja uma maior divisão do poder mundial. Ainda assim, naquele que é o lugar dos lugares no órgão dos órgãos (ser membro permanente do Conselho de Segurança das Nações Unidas), os P5 (EUA, Rússia, China, França e Reino Unido) continuam sem deixar entrar ninguém no restrito clube do direito de veto. Marcelo antevê que as pulsões imperialistas e dominadoras de alguns destes Estados possam acabar mal não só para esses próprios países, mas para a estabilidade mundial.

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Tudo isso poderá suceder com o clima, se nos atrasarmos, a energia, como tantos outros se atrasaram, a Inteligência Artificial, o peso das comunidades a que pertencemos— as Nações Unidas, a União Europeia, CPLP, NATO, mundo ibero-americano e parcerias que temos além dessas alianças. E tudo isso poderá suceder com a incapacidade e a lentidão do superar da pobreza e das desigualdades sociais. Ou no reconhecimento do papel da mulher ou no papel das minorias migrantes e em particular dos jovens que, por exemplo, eram uma vanguarda entre nós há 50 anos e hoje continuam mobilizados no País real, mas nem sempre se veem suficientemente representados no país oficial.”

O Presidente da República dá exemplos de áreas que podem levar a situações de rutura e de conflito, como o clima ou insuficiência energética. Ou ainda a falta de reforma de algumas das organizações internacionais mais relevantes. O chefe de Estado lembra também que há 50 anos, quando ele próprio estaria a poucos anos de entrar na política, eram os jovens que estavam nos cargos de decisão. Hoje isso não acontece, o que deve fazer soar uma sirene: quem está fora do sistema, mais depressa entra em rutura contra ele.

E tudo isso poderá suceder nos mais diversos temas políticos, partidários, económicos, sociais, mesmo os democráticos, se demorarem eternidades a compreender que devem evoluir e reformar-se. Reaproximar-se dos povos. E, desse modo, não deixarem espaço para que outros preencham o vazio que vão deixando atrás de si. Tudo isto poderá suceder e mais depressa do que se pensava. A mudança submergir pântanos, revolver águas paradas, abrir comportas demasiado tempo encerradas. (…) Temos lições desse passado para retirar. Vivemos em liberdade e não podemos deixar morrer essa liberdade, toda a ela. Incluindo a liberdade de pensamento e de expressão. Custe o que custar.”

Apesar de, desta vez, não se referir diretamente aos populismos e aos extremismos, “os outros” de que Marcelo fala são precisamente esses setores para aos quais a democracia não é indispensável. O Presidente vê ainda — como consequência do conformismo e inação — ameaças à liberdade de pensamento e de expressão que defende que têm de ser preservadas “custe o que custar”.

Sabemos mais do que os outros no passado sabiam. Podemos fazer democracias mais fortes se não nos contentarmos em esperar para ver. Podemos fazer Europas mais fortes se não formos egoístas ou retardatários. Podemos fazer organizações universais mais fortes, se não nos habituarmos a prometer ano após ano a sua reforma, sabendo que não vamos cumprir. Podemos reformar a sério, prosseguir o caminho das reformas para não termos de ver as contra-reformas fazerem ou pretenderem fazer aquilo que fizemos de conta que não importava assumir.”

Quando Marcelo Rebelo de Sousa alerta que não se pode ser egoísta na construção europeia, refere-se à adesão da Ucrânia à União Europeia (e também de outros países como a Moldávia), alertando que não se pode criar falsas expectativas (como foi acontecendo, por exemplo, com a Turquia). O Presidente da República defendeu ainda que haja “reformas a sério”, naquilo que foi lido pela oposição como uma crítica velada ao Governo. No entanto, o Presidente, ao enquadrar o apelo numa necessidade de reforma a nível europeu, permitiu uma leitura de que não se referia ao Executivo de Costa, mas aos governos europeus como um todo. E António Costa aproveitou a deixa, dizendo que o discurso presidencial era “oportuno” e uma “reflexão interessante”, uma vez que até está a caminho do Conselho Europeu.

Em 1923, muitos acreditavam que a mudança não seria para logo. Haveria de ser quando fosse. Em 2023, temos tempo, não é ilimitado, mas temos tempo e espaço para abrir aos mais jovens a liderança dos nossos futuros. Em liberdade e em democracia. Que cremos que triunfarão sempre. Que tantos republicanos tentaram afirmar e que tantos democratas tentaram resgatar mais de 60 anos depois a pensar nos portugueses e em Portugal.”

Marcelo fugiu à polémica 25 de Novembro/25 de Abril e nem sequer fez uma referência específica ao cinquentenário da Revolução, que é já em 2024. O Presidente preferiu dar um espaço temporal alargado (“mais de 60 anos depois” da decadência da I República), onde se podem enquadrar os dois eventos de consolidação da democracia.

Moedas, o líder da direita que a esquerda não gosta

Podemos fazer deste 5 de outubro mais uma data celebrada pelos políticos, mas de certa forma ignorada pelas pessoas. Ou podemos olhar para ela como um tiro de partida para algo melhor. Aproveito para anunciar que para além da data histórica do 25 de Abril festejaremos também com uma grande iniciativa o 25 de Novembro. Porque todas as datas contam.”

Carlos Moedas quis assumir-se como um dos líderes da direita com uma provocação à esquerda: anunciou no 5 de Outubro que ia celebrar com uma “grande iniciativa” o 25 de Novembro (cujos 50 anos só se comemoram em 2025, ano de autárquicas). Isto numa semana em que o presidente da Assembleia da República, Augusto Santos Silva, deixou a data de fora (pelo menos para já) das comemorações dos 50 anos do 25 de Abril de 1974 organizadas pelo Parlamento. Um dia depois de não ter ficado na reunião de câmara para ouvir o vereador do PCP João Ferreira (que motivou protestos do comunista), Moedas continua a afrontar a esquerda.

Enquanto atores sociais, temos uma responsabilidade ética, moral e social de não deixar que os portugueses se habituem a discursos políticos inconsequentes.  Discursos que por vezes parece que falam de um país imaginário onde não vivem as pessoas reais. Um país que as pessoas não veem, não sentem, não vivem.”

O presidente da câmara de Lisboa assume-se com um dos rostos da oposição ao Governo ao sugerir que o primeiro-ministro apresenta aos portugueses um país cor-de-rosa que, de facto, não existe. O alvo é, assim, António Costa, que mais tarde seria nomeado diretamente: “O senhor Primeiro-Ministro também o sabe: pode contar connosco para não deixar ninguém para trás.”

Há um vazio, capturado pelas minorias barulhentas e os ativismos radicais. À falta de um ativismo social moderado que dê respostas concretas, é a estes que as pessoas se agarram. E lembrem-se: a República de 1910 autodestruiu-se também por causa dessas minorias barulhentas e desses radicalismos. O 5 de Outubro é por isso também uma lição histórica: Quem fomenta esses radicalismos arrisca-se a colher, mais cedo ou mais tarde, a dissolução do regime.”

Carlos Moedas atira-se às “minorias barulhentas” e aos “ativismos radicais”, que são uma parte da oposição partidária e cívica à sua governação na autarquia. Numa altura em que a cidade é confrontada com protestos de jovens que cortaram a 2ª circular e outras estradas da capital, o autarca posiciona-se entre aqueles que pedem formas de luta mais “moderadas”. No rol dos “radicais” de Carlos Moedas cabem também aqueles que o atacam por causa da ciclovia da Almirante Reis e os partidos à esquerda que, nas palavras do autarca, tentam fazer dele um “diabo” que quer “o mal das pessoas”.

Ver-nos tal como somos é olhar também para aqueles que trabalham. Que fazem Portugal todos os dias com a sua dedicação, com o seu suor e com o brio que colocam em tudo o que fazem. É ver que muitos destes portugueses pensam, com razão, que vivem sobrecarregados de impostos. Que pagam demasiados impostos. A eles, quero dizer: sim, é possível baixar os impostos. (…) Em Lisboa estamos a baixar os impostos há dois anos. E para o ano baixaremos mais um ponto percentual devolvendo aos Lisboetas 4,5% do seu IRS.”

Numa parte mais programática, Carlos Moedas apresenta-se como um defensor da “descida de impostos”, procurando demonstrar que é esse o espírito na cidade — por oposição ao Governo central. Se António Costa não se comprometeu com uma nova descida do IRS, o presidente da câmara de Lisboa faz questão de dizer que vai devolver aos lisboetas 4,5% do seu IRS. Este é também o assumir de uma perspetiva mais liberal que pretende contrastar com a governação socialista.

Precisamos do pragmatismo para não nos deixarmos condicionar pelas subjetividades partidárias. Precisamos da coragem para fazer com que as pessoas voltem a acreditar que os discursos políticos têm consequências práticas no seu dia-a-dia. Muitas vezes diz-se que queremos e que estamos a virar a página. Mas vira-se a página e acaba-se a escrever o mesmo que já se tinha escrito na página anterior.”

Carlos Moedas não resiste a fazer mais um ataque a António Costa, atirando aos que dizem que viram a página e acabam por não o fazer. O “virar a página da austeridade” é uma expressão que ficou colada a António Costa e que era quase um princípio de governação quando chegou ao poder no final de 2015. A frase é tão atribuída ao primeiro-ministro que este voltou a utilizá-la para prometer um “virar de página da pandemia”. Na tomada de posse do atual mandato também prometeu “virar a página da guerra” e “escrever as páginas de um futuro radioso”. Ora, para Moedas, que aproveita para mais uma farpa a Costa, essa página não foi virada.