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Há 170 anos, Maria matou a mãe por amor a um namorado que nunca ninguém viu

AVISO

Este artigo contém linguagem e descrições que podem ferir a sensibilidade dos leitores

Em 1848, Maria José matou a mãe, despedaçou o seu corpo e espalhou-o pela zona da Graça a mando de José Maria. A polícia nunca encontrou provas da existência do namorado e Maria foi condenada à forca.

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Eram nove da noite quando, de regresso do trabalho, João Ferreira da Cruz encontrou, perto da Igreja de Santa Engrácia, encostado ao Recolhimento do Convento do Desagravo, o tronco de uma mulher. O guarda-barreira das Portas de Santa Apolónia, responsável pela entrada e saída de mercadorias da cidade de Lisboa, correu a chamar alguém, voltando pouco tempo depois, acompanhado por soldados da Fundição de Cima, a fábrica de armamento do Exército que havia ali perto (no atual Largo do Outeirinho da Amendoeira). Foi então que João Ferreira olhou para o cadáver com mais atenção: os braços estavam atados com uma “fita de linha”, as mãos tinham sido cortadas e a “magreza” era “extrema”, denotando “falta natural de saúde ou prisão forçada e continuada de privação de alimentos”. No peito havia 19 punhaladas, distribuídas por duas filas paralelas, sete do lado esquerdo e 12 do lado direito. “As feridas já fechadas provavam que houvera tempo e coragem para lhes lavar o sangue”, escreveu a Revista Universal Lisbonense. Faltavam as pernas, cortadas pelas virilhas. Da cabeça, nem sinal. Os homens, em choque, foram chamar o Regedor da Paróquia de Santa Engrácia, que colocou a polícia a guardar o corpo.

Entretanto, na Travessa das Mónicas, um patrulha fazia a ronda da noite. Ao passar pelas ruínas do palácio dos Condes de Loulé, que tinha ardido em 1820, apanhado pelas chamas que devoraram o Convento das Mónicas, mesmo ali ao lado, deparou-se com duas mãos, duas pernas e uma língua atiradas para o meio da rua, pouco antes do Largo da Graça. Concluiu-se que pertenciam ao torso de Santa Engrácia e que tinham sido separadas “do corpo, cortando primeiro a carne e depois os ossos”. Chamou-se mais uma vez o Regedor, António Ferreira do Sul, e deixaram-se as mãos e as pernas à guarda dos mesmos cabos da polícia que tinham sido colocados junto à igreja em construção. A pouco ou nenhum sangue nos dois locais indicava que o cadáver tinha sido “para ali conduzido para tornar difícil qualquer descoberta”, escreveu O Patriota.

O Juiz Criminal do 1.º Distrito foi informado do caso pelo Administrador do Bairro de Alfama e, na manhã do dia seguinte compareceu junto às obras de Santa Engrácia acompanhado por um escrivão. Foi só nessa altura, pelas sete da manhã de 13 de setembro de 1848, que o corpo foi levado para dentro da igreja e escondido dos olhos do povo que se tinha começado a juntar junto ao monumento. A autópsia foi feita ali mesmo, por “dois facultativos”, antes de ser levado para o Cemitério do Alto de S. João, também em Lisboa. No auto de delito, confirmou-se o que já se suspeitava: o cadáver, com 19 punhaladas “sobre ambos os peitos”, sete delas profundas, “atravessando o coração e os pulmões”, era de uma mulher que já tinha sido mãe e que parecia ter mais de 40 anos. As mãos e as pernas pertenciam-lhe, e “tinham sido separadas com tal arte pelas articulações das coxas e dos joelhos”, que parecia que “aquela operação” tinha sido feita “por um grande mestre”, descreveu o mesmo jornal. As “punhaladas” pareciam ter sido feitas por uma “agulha grande, ou outro ferro fino e agudo”.

O tronco foi encontrado encostado ao Recolhimento do Convento do Desagravo (à direita). Na altura, a Igreja de Santa Engrácia ainda estava em obras

DIOGO VENTURA/OBSERVADOR

Quando saíram as primeiras notícias do “crime horroroso” na imprensa lisboeta, no dia 14 de setembro, a cabeça ainda não tinha sido encontrada. Seriam precisos mais uns dias — mas poucos — até a investigação revelar a cara da vítima e os acontecimentos que tinham levado à sua trágica morte, há 170 anos. O homicídio, um dos mais chocantes a que a Lisboa do século XIX assistiu, alimentou os jornais da altura mas também a literatura de cordel, inspirando um jovem escritor, então desconhecido, que encheu os bolsos de moedas à custa do cadáver esquartejado de Santa Engrácia — Camilo Castelo Branco.

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Maria, onde está a tua mãe?

Era domingo. Mathilde do Rosário da Luz, uma mulher de cerca de 40 anos que vivia na Travessa das Freiras, perto do Campo de Santa Clara, deslocou-se à junta de paróquia para se queixar ao Regedor. Mathilde andava a ser roubada pela filha, que já lhe tinha levado um cordão de ouro e três moedas, todo o dinheiro que tinha amealhado ao longo de duros anos de trabalho. Como estava doente e não tinha meios de pagar o tratamento, Mathilde do Rosário pediu a António Ferreira do Sul que a internasse no hospital. Temia que algo de mal lhe acontecesse se permanecesse em casa.

O Regedor da Paróquia de Santa Engrácia ficou “de se informar” e mandou chamar a filha, que acusou a mãe de estar doida. Se assim era, então António mandaria Mathilde para o hospital e a filha ao Administrador do bairro, que “provavelmente a mandaria para o Limoeiro”, a cadeia da cidade. “Minha filha para o Limoeiro! Isso não!”, exclamou Mathilde do Rosário, declarando de seguida que, afinal, a filha não lhe tinha roubado nada e tudo não passava de um mal entendido. António Ferreira mandou-as embora mas pediu à mulher voltasse à junta no dia seguinte, 11 de setembro de 1848, para lhe dar “um bilhete para entrar no hospital”. Na segunda-feira, quem apareceu não foi Mathilde, mas a filha. A mãe sentia-se muito melhor e já não precisava de ser vista por um médico.

O corpo esquartejado foi encontrado na noite do dia seguinte junto à Igreja de Santa Engrácia. Na manhã do dia 13, quando estava ao pé do monumento em obras, iniciadas em 1684, António Ferreira do Sul reparou que, entre a multidão que olhava horrorizada “aquele quadro de dor”, nas palavras de O Patriota, estava a filha que a mãe tinha acusado de a ter roubado. Atacado “por uma repentina inspiração”, o Regedor lembrou-se de lhe perguntar por Mathilde, que estranhou não ver ali:

— Onde está a tua mãe? — questionou o Regedor da Paróquia.
— Saiu de casa pela manhã.
— Para onde?
— Não sei.

Foi na Travessa das Mónicas, que vai dar à Igreja da Graça, que foram encontradas as pernas e os braços de Mathilde Rosário da Luz na noite de 12 de setembro de 1848

DIOGO VENTURA/OBSERVADOR

António achou o caso estranho. E quanto mais pensava nele, mais estranho o achava. Mais tarde, já depois de feita a autópsia do cadáver, decidiu que o melhor era mandar chamar a alegada ladra e interrogá-la. A polícia foi encontrá-la sozinha em casa, no n.º 16, loja, da Travessa das Freiras, onde vivia com a mãe. As suspeitas eram muitas, mas nada indicava que a mulher pudesse ser capaz de tamanha monstruosidade: baixa, de tez pálida, tinha o rosto comprido e os olhos castanhos, da mesma cor do cabelo crespo, pequenos e vivos. “Altiva e muito senhora de si”, usava um vestido de chita, um capote e um lenço colorido na cabeça. Parecia “estar grávida de quatro meses”, uma informação avançada pela Revista Universal Lisbonense que não se veio, contudo, a confirmar. Não mostrou qualquer resistência quando um cabo da polícia lhe pediu que o acompanhasse ao quartel da Guarda Municipal, que ficava no antigo convento dos Lóios (no atual Largo dos Lóios), perto do Castelo de São Jorge.

As suspeitas eram muitas, mas nada indicava que a mulher pudesse ser capaz de tamanha monstruosidade: baixa, de tez pálida, tinha o rosto comprido e os olhos castanhos, da mesma cor do cabelo crespo, pequenos e vivos.

Questionada pelo Administrador do Bairro, a mulher disse chamar-se Maria José e ser filha de Agostinho José, que tinha sido grumete na fragata Pérola, e de Mathilde do Rosário da Luz. “Debruadeira de sapatos”, de acordo com a União, tinha 30 anos e o pai tinha morrido há muito. A mãe tinha, segundo ela, saído de madrugada como era seu costume. Não sabia a que horas voltava. O Administrador não ficou convencido com as respostas da mulher e tentou intimidá-la: ou lhe dizia onde estava a sua mãe ou ordenava a sua detenção. A ameaça valeu de pouco — Maria José manteve-se calma e serena, continuando a responder a todas as perguntas sem qualquer hesitação. Desafiou até o Administrador, dizendo-lhe que, se tinha assim tantas dúvidas, o melhor era ir a sua casa. Tinha ali a chave e tudo.

Não teve pena da mãe, mas quase chorou pelas galinhas e pelo coelho

Eram três da tarde quando Maria José foi conduzida de volta a casa. O Administrador do Bairro estava praticamente convencido da inocência da “debruadeira de sapatos”, mas alguém lhe fez notar que Maria tinha “uma esfoladela numa das mãos”. “Aquilo podia ser alguma coisa”, relatou O Patriota na edição de 15 de setembro de 1848. Decidiu-se então enviar um oficial de diligência ao n.º 16, loja, da Travessa das Freiras para ver se havia algo de suspeito do lado de fora da moradia. Espreitando por cima do muro do quintal, Joaquim José Gomes, cabo de segurança, viu quatro lençóis ainda húmidos a enxugar. Estavam cheios de manchas amareladas que pareciam ser de sangue recentemente lavado. Havia ainda “duas saias, um pano e um saco, da mesma sorte”, descreveu a Revista Universal Lisbonense, num artigo intitulado “Narração fiel do assassínio de Mathilde do Rosário da Luz”, publicado no dia 21.

Deslocou-se então o Administrador, o escrivão e os oficiais de diligência a casa de Maria José. Mais uma vez, a mulher não mostrou resistência — disse que podiam ver tudo à vontade, não tinha nada a esconder. Os responsáveis depararam-se com uma única cama, o sobrado cheio de sangue, um capote rasgado e roupa espalhada por todo o lado. Havia pingos de sangue no chão da entrada e da cozinha, onde alguns tijolos tinham sido levantados. Debaixo da chaminé, estava um balde com água tingida de vermelho, duas facas “do ofício de sapateiro”, muito gastas, e um pequeno machado, também com vestígios de sangue. Uma das facas tinha “carne seca na extremidade junto ao cabo”, ainda segundo a Revista Universal Lisbonense.

Maria José não se mostrou intimidada. Muito calmamente, explicou às autoridades que o sangue que havia em casa se devia à sua menstruação, que a obrigava a mudar de roupa várias vezes. Já as facas eram as que usava no seu “ofício de sapateira”. Insistiu que não sabia da mãe, embora os “vestígios” a indicassem “morta e naquele local”, como escreveu o jornal O Patriota. Havia roupa “entrouxada, dando indícios de se querer em breve mudar”, acrescentou a União.

O nariz estava fraturado e cortado dos dois lados, e os lábios também. A face tinha sido golpeada e o cabelo queimado. Quando mostraram o achado a Maria José e lhe perguntaram se conhecia aquele rosto, respondeu, “muito fresca”, comendo melancia com pão: “Conheço, é de minha mãe!”

Inicialmente, parecia que as buscas não iam dar em nada. A polícia revistou o quintal, mas não encontrou qualquer sinal de Mathilde do Rosário. Até que Joaquim José Gomes se lembrou de levantar os tijolos do chão da cozinha, assentes sobre a terra. Debaixo de dois deles, encontrou a terra mexida e, sob um palmo de terra, uma orelha. Continuou a escavar com as próprias mãos, até que encontrou a cabeça de uma mulher. A cara estava desfigurada, “talvez de ser calcada quando fora enterrada”. O nariz estava fraturado e cortado dos dois lados, e os lábios também. A face tinha sido golpeada e o cabelo queimado. Quando mostraram o achado a Maria José e lhe perguntaram se conhecia aquele rosto, respondeu, “muito fresca”, comendo melancia com pão: “Conheço, é de minha mãe!”. O resto da história não foi difícil de arrancar: Mathilde do Rosário da Luz tinha sido assassinada na manhã do dia 11 de setembro de 1848, depois de voltar de comprar pão. Segundo um documento da Torre do Tombo, consultado pelo Observador, tudo aconteceu pelas 8h00 da manhã. Depois de o seu corpo ter sido esquartejado, as diferentes partes foram espalhadas por várias ruas da antiga freguesia de Santa Engrácia.

Não havia muitas dúvidas de que a autora do crime tinha sido Maria José. Contudo, ao Administrador do Bairro, a mulher garantiu precisamente o contrário: não tinha sido ela, tinha sido um tal José Maria. Mas quem era esse tal José Maria? José Maria “havia muitos”, e Maria José afirmou categoricamente que era “mais fácil morrer que dizer quem” ele era. A única coisa que confessou à polícia foi que o tinha deixado entrar na habitação quando a mãe tinha saído para ir buscar pão e que, depois de matar Mathilde, José Maria tinha levado quase todo o dinheiro que havia em casa, deixando-lhe apenas cerca de 27 mil réis em moedas de prata, um cordão e um anel de ouro e “um papel com uma cabeça de cobra”, que estava sujo de sangue. Depois disso, garantiu que nunca mais lhe tinha posto os olhos em cima.

Maria José vivia com a mãe no n.º 17 da Travessa das Freiras, perto da Igreja de Santa Engrácia. A numeração mudou depois disso, e hoje não existe nenhum 17

DIOGO VENTURA/OBSERVADOR

O relato não convenceu ninguém, e o Administrador ordenou a sua detenção. Maria José não mostrou “sentimento algum de comoção”. Pediu apenas para levar consigo duas galinhas que tinha no quintal. À vizinhança que se tinha reunido à sua porta, que a União estimou serem mais de duas mil pessoas, disse apenas: “Então que é? É uma mulher de menos, é uma mulher que se matou”. E riu-se, enquanto era levada a braços pela polícia.

Maria José passou a noite no quartel da Guarda Municipal. Foi transferida no dia seguinte, por ordem do juiz. Chegou à prisão do Limoeiro acompanhada por Victorino António de Mattos, oficial de diligência do 1.º Distrito Criminal, vestida com a mesma roupa que tinha quando foi visitada pela polícia no dia 13 — o vestido de chita, o lenço de cor e o “capote cor de pinhão” onde, mais tarde, viria a admitir ter escondido o corpo esquartejado da mãe. Levava consigo os 27 mil réis que José Maria alegadamente lhe tinha deixado, o cordão e o anel de ouro, “duas facas com sangue, uma grande agulha de colchoeiro com sangue” e “uma machadinha”, como ficou registado no assento da sua entrada no Aljube, onde ficava na altura a secção feminina da prisão. Datado de 14 de setembro de 1848, o registo, a que o Observador teve acesso, refere que a arguida tinha 27 anos na altura da sua detenção, menos três do que alegadamente teria dito ao Administrador do Bairro durante o seu primeiro interrogatório.

Nas declarações que prestou nesse dia ao Administrador voltou a acusar o mesmo homem da morte da sua mãe e a garantir que não diria quem ele era, mesmo que lhe fizessem o mesmo que tinham feito a Mathilde do Rosário. Quando lhe perguntaram onde estava a cabeça de Mathilde, respondeu, a sorrir, que estava “em casa”. Sem mostrar qualquer tristeza pelo que tinha acontecido, lamentou apenas ter deixado para trás um galo e um coelho, que temia que morressem à fome. Tinha “mais pena dos animais que da mãe”, comentou a Revista Universal Lisbonense.

À vizinhança que se tinha reunido à sua porta, que a "União" estimou serem mais de duas mil pessoas, disse apenas: “Então que é? É uma mulher de menos, é uma mulher que se matou”. E riu-se, enquanto era levada a braços pela polícia.

Maria José permaneceu “incomunicável” na prisão enquanto as autoridades procediam às “diligências para descobrir” se havia ou não cúmplice. Apesar das notícias que deram conta da detenção de 27 pessoas (uma “quadrilha de ladrões”), alegadamente envolvidas no homicídio, a polícia não levou mais ninguém para a prisão. Também a informação avançada pelo O Patriota de que Matilde Faustina, irmã de Maria José, tinha sido detida se revelou falsa, sendo desmentida pelo jornal um dia depois, a 16 de setembro: “Dissemos que tinha sido presa uma irmã da desgraçada criatura a quem nos referimos ontem, por ocasião do assassínio em que Lisboa inteira fala. Mas a prisão da irmã que mora no Bairro Alto não se fez. Houve ordem para a prender, mas quando a procuraram soube-se que há dias tinha ido para Setúbal. Por isso acabaram as suspeitas a seu respeito”. Segundo a mesma publicação, as forças policiais já tinham identificado e interrogado vários homens de nome José Maria mas sem qualquer sucesso. “Este indício não pode julgar-se de importância alguma”, escreveu O Patriota, acrescentando: “Nós estamos persuadidos que o nome de José Maria dado pela presa ao assassino de sua mãe é um mero disfarce”.

Só que a dúvida permanecia: teria Maria José sido capaz de matar a própria mãe, de esquartejar o seu corpo e de transportá-lo pelas ruas íngremes de Santa Engrácia ao longo de mais de um quilómetro? E sem a ajuda de ninguém? A imprensa lisboeta parecia ter dificuldades em acreditar. “É claro que ela não poderia perpetrar o crime sem auxílio”, comentou O Patriota. Mas o que mais impressionava era o facto de o crime ter sido cometido sem que tivesse havido uma única testemunha: “É pasmoso como numa noite de bom tempo (…) e num sítio como aquele onde se achou [o corpo] acontecesse ou o crime ou o depósito do cadáver sem ninguém ver nem dar notícia de semelhante horror”, escreveu a mesma publicação, apontando o dedo às autoridades. “Um facto assim é bastante para mostrar como se exerce a vigilância na nossa polícia! Podem os assassinos fazer o que quiserem sem que ninguém os interrompa.”

Acusando “toda essa máquina administrativa e policial”, que tinha “por único ofício sustentar certos centros — manter o povo bem sujeito à gente dos tais centros — prender para linha — recrutar para os batalhões”, O Patriota afirmava que “a administração e a polícia, ocupadas com objetos tão laboriosos e importantes”, não podiam “ter nem força nem espaço para estorvar que se mate gente, que se deite um corpo numa parte, as pernas e as mãos em outra, e a cabeça sabe Deus onde!!! Quanto mais se cisma neste horrível assunto, mais se vê que para tudo aquilo era preciso muito tempo”. Interrogando como é que não havia “um patrulha que ali circulava” e como é que “ninguém viu” nada “numa noite como a de anteontem para ontem”, o jornal lisboeta concluía, num artigo publicado no dia 14 de setembro, que “um tal desastre, acontecido assim”, provava “em que mão Lisboa” estava entregue.

Um panfleto famoso que um mendigo mandou imprimir

Pouco depois da detenção de Maria José, surgiu, no Porto, um folheto intitulado Maria! Não me mates que sou tua mãe!, publicado na Typografia do Ecco, que na altura ficava no n.º 649 da Rua do Bonjardim. O seu autor, “um mendigo que foi lançado fora do seu convento” e que andava “pedindo esmola pelas ruas”, era Camilo Castelo Branco, que tinha chegado há pouco à cidade sem um tostão no bolso. É em parte por causa do texto de Camilo, constantemente reeditado desde a sua publicação, que o caso de Maria José é ainda conhecida do público, passados 170 anos.

A história de Camilo, ficcionada mas baseada nas descobertas feitas pela polícia e relatadas nos jornais, conta como o pai de Maria José, farto de tanto trabalhar, se deixou morrer, como a sua filha mais velha foi posta “a servir em casa de honrados amos” e a outra, deixada “em casa” para ajudar a mãe “a viver”, se deixou convencer pelas palavras mal intencionadas de um tal José Maria que, no início, nem parecia mau rapaz. De “mediana estatura”, o José Maria do escritor nascido em Lisboa “parecia de 24 anos. Tinha os olhos negros, e quase negras as faces. Os cabelos compridos, com a barba cerrada pouco lhe deixavam ver as feições. Tinha a testa franzida continuamente como o matador que sente um cancro de remorso a tragar-lhe as entranhas”. Costumava frequentar uma “taverna” na Rua da Rosa, no Bairro Alto. Foi ele que deu à namorada as facas de sapateiro com que esfaqueou a mãe.

Segundo Henrique Marques, autor de uma Bibliographia Camiliana, a história da “filha que mata e despedaça a sua mãe”, o “maior crime que viu o mundo”, foi escrita numa só noite. O sucesso do panfleto foi tal que o “mendigo” ficou com os bolsos cheios. Alberto Pimentel, amigo de Camilo e autor da sua primeira biografia, relatou que o autor recebeu “em cobre o preço deste opúsculo e que grande foi a sua satisfação, quando, em casa, começou a despejar as algibeiras atulhadas de patacos”, citou Marques.

O assento da entrada no Aljube. Este é um dos poucos documentos oficiais que se conhecem sobre o homicídio de Mathilde do Rosário (Fonte: Arquivo Histórico da Direção-Geral de Reinserção e Serviços Prisionais)

A popularidade que Maria! Não me mates que sou tua mãe! teve junto dos leitores, e que se explica pelas características que o tornam um exemplo típico da literatura de cordel, isto é, de género popular, fez com que o panfleto fosse reeditado várias vezes ao longo dos anos e fosse até alvo de imitações. Isso levou a que Camilo, escrevendo sob o pseudónimo de Saragoçano, afirmasse no jornal portuense O Ecco Popular: “A tal Maria José que matou a mãe tem dado bem bom dinheiro”. A segunda edição do texto, também de 1848, é, segundo o bibliógrafo camilianista Manuel dos Santos, a mais rara de todas, uma vez que apenas se conhece um exemplar, guardado na Biblioteca Municipal do Porto. A terceira edição é, segundo a informação recolhida por José Viale Coutinho para o primeiro volume da sua Camiliana, de 1850 e inclui, ao contrário das duas primeiras, a descrição do julgamento de Maria José. Em 1852, saiu uma quarta edição, já devidamente assinada.

Quem és tu José Maria? Ninguém!

Durante os cerca de dois meses que passou na cadeia do Aljube até ser presente a julgamento, Maria José não mostrou vontade de colaborar com a polícia. Muito pelo contrário — sempre que as autoridades a interrogavam sobre o suposto namorado, quem era e onde vivia, Maria fazia-se de desentendida ou não simplesmente respondia. Só mais tarde é que admitiu ter sido a única responsável pelo “mais triste e espantoso acontecimento que viu o mundo”, nas palavras do “mendigo” Camilo Castelo Branco.

O julgamento foi marcado rapidamente — para o dia 6 de novembro de 1848, no Tribunal da Boa Hora, na Baixa lisboeta. A sessão, conduzida pelo juiz Manoel Joaquim de Almeida, do Tribunal Criminal da 1.ª Vara, durou todo o dia e toda a noite — começou de manhã e só terminou já perto da meia-noite de 7 de novembro. Durante esse tempo, a sala de audiências esteve sempre cheia, com “espectadores de todas as classes e hierarquias”, descreveu o jornal O Patriota.

Manoel Joaquim de Almeida abriu a sessão às 10h em ponto. Depois de o júri — composto por Victorino José das Neves, António Marcellino Lourenço, João António de Sousa, Francisco de Paula S. Thiago, Manoel Rodrigues, José Cláudio Vellez, Joaquim Pedro Celestino, Joaquim António Pereira, Henrique Gregório Maia, André João Avellino, Joaquim José Fernandes e José António Machado — ter prestado o juramento, procedeu-se à leitura dos factos. Maria José era acusada do homicídio da mãe, “com as circunstâncias agravantes” de esquartejamento e exposição do seu cadáver. A pena provável era a morte. As testemunhas, chamadas de seguida, garantiram nunca ter visto homem algum entrar na casa de Mathilde na Travessa das Freiras que, segundo o assento do Aljube, ficaria afinal no n.º 17, apesar de a acusada continuar a insistir que tinha tido um cúmplice.

A matricida Maria José, como ficou conhecida, numa litografia de Manuel Luís da Costa, realizada provavelmente entre 1848 e 1876 (Fonte: Biblioteca Nacional de Portugal)

Foi isso que declarou Maria José da Conceição, uma vizinha que, segundo os jornais da altura, morava no n.º 16 da Travessa do Conde de Avintes, junto à das Freiras, e também Joana Maria. Maria Chrispina Matto, mestra de meninas, que morava mesmo ao lado da vítima, adiantou que nem o aguadeiro lá entrava porque era sempre Maria José que ia “buscar água ao chafariz”. As únicas testemunhas reunidas pela defesa, Maria Gertrudes e Fortunato Honorato (carpinteiro e vizinho), juraram que, até à data do crime, Maria José tinha tido um comportamento exemplar. Mas pressionados pela acusação acabaram também por admitir que nunca tinham visto o tal José Maria.

Por fim, chegou a vez de ouvir Maria José. A arguida levantou-se e o juiz Manoel Joaquim de Almeida perguntou-lhe se sabia por que é que estava ali. “Imputa-se-lhe a morte de sua mãe. Que responde a isto?”, questionou. “Que fui eu só que a matei”, respondeu a ré sem sequer pestanejar, para grande horror da audiência. Explicando que tudo tinha acontecido por causa de José Maria, Maria José relatou que o tinha conhecido “na rua” há 14 meses e que tinha falado com ele “duas vezes”. De resto, pouco ou nada sabia sobre ele. “Durante 14 meses de relações com o homem devia saber quem ele era e onde vivia. Que diz a isto?”, interrogou, incrédulo, o juiz do Tribunal Criminal da 1.ª Vara. “Nunca me disse onde morava”, respondeu por sua vez Maria. Também nunca lhe pediu em momento algum que matasse a mãe — foi a arguida que tomou a iniciativa de o fazer.

— Que motivo teve para matar sua mãe? — interrogou Manoel Joaquim de Almeida.
— Porque não gostava do José Maria e ralhava comigo todas as vezes que ele lá ia [a casa].
— Porque foi ao regedor na manhã do dia 12 [de setembro] quando a Justiça já tinha tomado conta do cadáver?
— Fui dizer-lhe que a minha mãe já estava boa para que ele ou algum cabo não fosse a minha casa.

Uma vez que parecia ser impossível arrancar a Maria José quaisquer informações sobre José Maria, o juiz decidiu questionar a suspeita sobre a arma do crime. Mostrando-lhe as facas, a machadinha, a “agulha de colchoeiro” e a roupa ensanguentada encontradas em sua casa, Manoel Joaquim de Almeida perguntou a Maria se conhecia aqueles objetos. “Conheço sim, senhor”, disse de imediato. ”Com quais instrumentos matou a sua mãe?”, perguntou-lhe então o juiz do Tribunal Criminal. “Com estas facas”, respondeu Maria José, apontando para os instrumentos. Não tinha sentido remorsos, apenas “medo”.

Manoel Joaquim de Almeida perguntou a Maria se conhecia aqueles objetos. “Conheço sim, senhor”, disse de imediato. ”Com quais instrumentos matou a sua mãe?”, perguntou-lhe então o juiz do Tribunal Criminal. “Com estas facas”, respondeu Maria José, apontando para os instrumentos. 

O interrogatório prosseguiu, com o juiz Manoel Joaquim de Almeida a tentar perceber porque é que Maria José fez o que fez:

— Quem esquartejou sua mãe? — continuou.
— Fui eu.
— Porque fez isso?
— Porque o corpo inteiro pesava muito e para mais facilmente o levar para fora de casa.
— Também foi quem mutilou o rosto de sua mãe?
— Sim, senhor!
— Para quê?
— Para a não conhecerem.
— Com que cortou a cabeça de sua mãe?
— Ao princípio foi com a faca e não podendo acabar por causa do osso, foi com essa machadinha.
— Mas se enterrou a cabeça em casa, para que a desfigurou?
— Tencionava levá-la depois para fora de casa.
— Porque perpetrou tal barbaridade?
— Não foi barbaridade!
— Onde efetuou o assassínio de sua mãe?
— Na casa de fora.
— Quem levou os pedaços de sua mãe para fora de casa?
— Eu mesma, por duas vezes, debaixo deste capote.
— Porque pôs o tronco numa parte e as pernas em outra?
— Não sei.

Durante a sessão, Manoel Joaquim de Almeida perguntou ainda a Maria José se mais alguém frequentava o n.º 17 da Travessa das Freiras. Esta respondeu que havia “uma criança de três anos” que costumava ir lá a casa. Questionada sobre quem era e de onde vinha o menor, Maria respondeu que não sabia, que “vinha de fora da terra”. “Uma criança de três anos ia e vinha só de fora da terra?”, indagou o juiz, citado pelo jornal O Patriota, que publicou no dia 8 de novembro uma notícia detalhada sobre o julgamento. A ré respondeu que “sim, senhor”, deixando a audiência de boca aberta. Maria foi ainda interrogada por alguns membros do júri, respondendo invariavelmente que sim, que tinha sido ela quem tinha matado a sua mãe. E sempre com uma “espantosa presença de espírito”, segundo a mesma publicação lisboeta.

Maria José da Conceição, uma vizinha que testemunhou em tribunal, morava no n.º 16 da Travessa do Conde de Avintes. O número, tal como acontece com o da casa de Maria José, já não existe

DIOGO VENTURA/OBSERVADOR

Chegados às alegações finais, na Boa Hora pouco havia a fazer por Maria José. O advogado de defesa tentou salvar a situação seguindo pela “única vereda que lhe restava em tal circunstância” — a da “comoção”. Tentando levar os jurados às lágrimas, José António Luiz Gallo, que tinha sido nomeado pelo juiz, procurou convencer a audiência de que não era possível que Maria José tivesse cometido o crime sozinha. Lamentando “a pouca vigilância e zelo da polícia num negócio tão grave”, o dr. Gallo tentou provar que a arguida era maluquinha e que, por essa razão, a sua confissão não podia ser tida em conta. “O sr. advogado foi ouvido com geral e profunda atenção” e no final até recebeu elogios. Mas, como referiu O Patriota, pouco havia a fazer. O crime era demasiado monstruoso — era “a vergonha do género humano”, como o descreveu o delegado do Ministério Público, José Gabriel Holbeche.

O juiz perguntou a Maria José se tinha alguma coisa a alegar a sua defesa. Para o espanto de todos, a arguida disse que tinha. “Quem matou minha mãe foi o José Maria”, afirmou a mulher de 27 anos, voltando mais uma vez à história, pouco coerente, de que o verdadeiro assassino era um homem que vendia fruta na Praça da Figueira. “Quem é esse José Maria?”, voltou a interrogar Manoel Joaquim de Almeida. “É um homem de outra banda, que vende na praça. Ia muitas vezes a minha casa e tinha questões com minha mãe porque lhe tinha pedido metade da herança. Como ela recusasse, na madrugada do dia 12, deu-lhe uma facada com que a matou. E safou-se.”

A história continuava a não fazer sentido, e o juiz do Tribunal Criminal fez questão de o dizer. Talvez percebendo finalmente que não havia como escapar, a ré voltou a insistir: “O José Maria foi quem a matou, e eu esquartejei-a”, disse, acrescentando que ele tinha levado “parte do dinheiro” que estava “num pé de meia, prometendo depois” dar-lho. “Se o José Maria foi quem matou sua mãe, contra sua vontade, porque não gritou vocemecê, pedindo socorro para manifestar o crime?”, perguntou mais uma vez o juiz. Maria não respondeu, limitando-se a repetir que não sabia quem era o assassino de Mathilde do Rosário.

Os jurados demoraram apenas uma hora a tomar uma decisão. Quando regressaram à sala de audiências do Tribunal da Boa-Hora, já perto da meia-noite de dia 7 de novembro de 1848, o presidente do júri, Francisco de Paula Santiago, declarou que, tendo em conta as provas apresentadas, a arguida devia ser condenada à Pena Última. Coube ao juiz proferir a sentença, em que condenou a ré, Maria José, solteira, “a sofrer a morte natural para sempre em forca”, que seria levantada “no Campo de Santa Clara”. A homicida devia ser levada para o local através da Travessa das Mónicas, passando pela das Freiras e pelas obras de Santa Engrácia, onde tinha abandonado o cadáver despedaçado da sua mãe. Maria José foi ainda condenada a pagar as custas do julgamento.

Coube ao juiz proferir a sentença, em que condenou a ré, Maria José, solteira, “a sofrer a morte natural para sempre em forca”, que seria levantada “no Campo de Santa Clara”. A homicida devia ser levada para o local através da Travessa das Mónicas, passando pela das Freiras e pelas obras de Santa Engrácia.

Os únicos quesitos que o júri não deu como provados foram os da existência do tal José Maria e da insanidade de Maria José. O que também não se chegou a perceber foi a razão do assassinato de Mathilde do Rosário da Luz. Por altura da detenção de Maria, a vizinha Maria José da Conceição, que testemunhou em tribunal, entregou à polícia uns papéis que Mathilde lhe tinha pedido que guardasse com medo que a filha lhos roubasse. De acordo com a Revista Universal Lisbonense”, tratavam-se do testamento do padre Manoel Alves, capelão-cantor da real casa de Santo António que tinha deixado a Mathilde umas fazendas em Rio de Moinhos, no concelho de Abrantes, que estavam arrendadas por 15 mil réis. Com a morte da mulher, estas passariam para Maria José e para a sua irmã, Matilde Faustina, que há muito não vivia em Santa Engrácia e que seria prostituta, segundo informações recolhidas pela mesma publicação. Tornou-se óbvio para as autoridades que os terrenos e algum dinheiro que a vítima tinha amealhado teriam sido a causa da sua morte. No entanto, durante o julgamento, nada foi referido a esse respeito.

Maria escapou, mas por pouco

Menos de um mês depois de Maria José ter sido condenada a “sofrer morte natural” pelo juiz Almeida, começaram a surgir nos jornais lisboetas notícias de que tinha sido detido o alegado cúmplice de assassina. A Revolução de Septembro foi um dos primeiros a dar conta do sucedido, anunciado a 6 de dezembro de 1848 que tinha sido “preso” no dia anterior “um indivíduo” que se dizia “cúmplice de Maria José no horroroso assassinato de sua mãe”. Uma semana depois, O Patriota repetiu os mesmos dados, mas concluiu tratar-se de uma informação errada: “Não se fez tal descoberta, nem há motivos para supor que aquela desgraçada tivesse cúmplice algum no seu crime”, referiu o periódico.

Segundo relatou O Patriota, o rumor de que a polícia tinha apanhado José Maria tinha tido origem numa detenção feita por “um soldado do batalhão da carta” que se tinha julgado “autorizado para prender aí um dia um homem a título de cúmplice de Maria José”. O jornal admitiu não saber “que caminho levou o preso”, mas garantiu que o caso não chegou sequer aos ouvidos do Ministério Público. “Aquele soldado devia ser punido por fazer uma semelhante prisão”, comentou o diário da capital. “Em lugar de castigo, porém, é natural que lhe dessem algum doce porque é preciso alimentar o espírito violento de certa gente.”

Maria José foi julgada no antigo Tribunal da Boa Hora, localizado no largo com o mesmo nome, que já não se encontra em funcionamento

DIOGO VENTURA/OBSERVADOR

Sem novos dados, Maria José voltou à barra do tribunal a 11 de janeiro de 1849. A assassina tinha apelado da sentença de 6 de novembro. De pouco lhe valeu — a pena de “morte natural” foi confirmada na 2.ª instância pelo juiz do 1.º Distrito Criminal Albano Caldeira, e a ré condenada a pagar as custas do novo julgamento. Na opinião do júri, formado para a sessão de 11 de janeiro, o caso tinha sido “bem julgado” pelo “juiz do primeiro Distrito Criminal” e nada havia a alterar. Descontente, Maria José voltou a apelar. Um terceiro julgamento foi marcado para 9 de junho de 1851, quase dois anos depois do segundo “por falta de juiz que o julgasse”, explicou A Revolução de Septembro, concluindo: “Desta miséria cabe a honra ao sr. Felix”.

Tal como tinha acontecido nas duas primeiras sessões, a sentença de pena de morte voltou a ser confirmada. No Livro de registo de setenças dos réus condenados a pena última da Procuradoria Régia de Lisboa, que se encontra na Torre do Tombo, ficou escrito que, em 1851, Maria José continuava a defender-se com “o seu bom comportamento e a boa harmonia em que sempre viveu com a sua mãe”, uma alegação com pouco ou nenhum valor tendo em conta as circunstâncias em que o crime tinha sido cometido e as suas “agravantes de horror”. Estas eram, segundo o acórdão de 9 de junho, “uma prova bem convincente da crueldade e malevolência de espírito” da reclusa, que não podia ser deixada de ser tomada “em consideração pelo julgamento na aplicação da pena”. Não restavam também dúvidas de que Maria José tinha sido “a única autora daquele horroroso crime de matricídio”. Para A Revolução de Septembro, o júri foi, desta vez, “mais avante [do] que os [seus] precedentes; e isto apesar do julgamento se ter alongado quase três anos”. Numa das sessões anteriores tinha havido “excessivo escrúpulo”, considerou o jornal, concluindo: “Isto honra a Instituição.”

Maria José ainda voltou a ser julgada uma quarta vez, quando o processo chegou ao Supremo Tribunal de Justiça. A assassina, que estava presa no Aljube desde 14 de setembro de 1848, apresentou-se a julgamento no dia 30 de abril de 1852. Sem grandes surpresas, a sentença voltou a ser confirmada pelo “excelentíssimo conselheiro Ferrão”, segundo A Revolução de Septembro. Na decisão que consta do Livro de registo de sentenças dos réus condenados a pena última, na Torre do Tombo, voltaram a ser frisadas as agravantes que levaram a que Maria fosse condenada de todas as vezes que foi levada a tribunal. A “delinquente”, a “filha desnaturada”, tinha praticado “atos sucessivos que revelaram uma crueza feroz e a maior perversidade do coração humano em desprezo dos vínculos de sangue e das Leis”. Não havia volta a dar.

A nota à margem do registo da Procuradoria Régia de Lisboa, na Torre do Tombo, que refere que a pena de Maria José foi comutada para degredo no dia 9 de maio de 1855

Depois de 30 de abril de 1852 é difícil perceber o que aconteceu a Maria José. Os dados escasseiam e, apesar dos esforços levados a cabo pelo Observador, não foi possível descobrir onde se encontra o processo original. O seu paradeiro não é conhecido. Sílvia Alves, professora na Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, afasta, no entanto, a hipótese de este se ter extraviado. A especialista em História do Direito Penal acredita que ele existe porque, em Portugal, “houve uma redução ao escrito muito cedo”, explicou. Ainda que os processos fossem muito diferentes dos de agora, havia uma “determinação legal” que obrigava a que se documentasse o material que viria a servir de fundamentação à sentença, uma garantia de que o Direito erudito estava a ser aplicado.

O que é curioso é que a falta de informação relativamente ao destino de Maria José não é de agora — já era lamentada em 1932. Nesse ano, no Tomo IV da revista ilustrada Feira da Ladra, dedicada ao “viver doutras eras”, Pedro Vitorino escreveu um artigo em que, a propósito de uma “litografia de feição popular” feita por altura da confirmação da sentença de Maria José na 2.ª instância, narrou os eventos que levaram à prisão e condenação da criminosa. Mas a história teve de ficar “incompleta” porque o autor do artigo desconhecia a data que tinha sido “executada a matricida”.

Vitorino não conseguiu encontrar informação sobre a morte de Maria José porque a assassina não chegou a ser executada. No registo da Procuradoria Régia de Lisboa, numa nota à margem, é referido que a pena foi “comutada para degredo a 9 de maio de 1855”, sete anos depois do primeiro julgamento. O degredo, uma forma de expulsão penal, consistia no envio dos condenados para os limites do território português. Começou por ser cumprido apenas em Portugal, em locais que precisavam de ser povoados ou que precisavam de funcionar como uma “espécie de tampão” (as zonas fronteiriças eram as escolhas mais habituais), mas mais tarde passou a incluir as colónias ultramarinas. Nestas desempenhou um papel particularmente importante, uma vez que uma parte do povoamento foi feito com o envio de condenados. Os destinos “iam mudando consoante as necessidades e consoante as fronteiras”, afirmou a professora da Faculdade de Direito de Lisboa ao Observador. “As fronteiras do degredo mudam consoante as fronteiras do país.”

O documento da Torre do Tombo não refere para onde Maria terá ido e por quanto tempo. No catálogo da exposição “Cadeia do Limoeiro — Da Punição dos Delinquentes à Formação dos Magistrados”, organizada em outubro de 2013 pelo Centro de Estudos Judiciários, é adiantada uma outra pista: a assassina teria cumprido pena em Angola. Apesar de ter havido um tempo em que o degredo era sempre em Portugal, em meados do século XIX isso já não acontecia. Maria José, que noutra época teria sido enviada para Castro Marim (era para aí que as degredadas costumavam ir), acabou em África. Curiosamente, achou-se em tempos que as colónias africanas não eram indicadas para mulheres “porque se considerava um destino muito perigoso”, explicou Sílvia Alves.

Resta saber quando é que Maria José partiu para terras africanas. Terá certamente sido depois de 9 de maio de 1855 porque, como lembrou a a especialista em História do Direito Penal, era preciso que estivessem reunidas as condições para que a assassina fosse transferida. O transporte dos degredados era feito em navio próprio, e a rede marítima não funcionava com a regularidade dos dias de hoje. Poderão ter passados vários anos até que Maria tenha colocado finalmente um pé em Angola, onde, consta, “terá morrido pouco tempo depois” da sua chegada. Parece não existir, no entanto, “documentação que o comprove”. Segundo Maria de Fátima Franco, autora do texto que acompanha o catálogo, a pena teria sido de “degredo perpétuo”.

Maria José esteve detida no Aljube, na altura a secção feminina do Limoeiro, até ser enviada para Angola, onde cumpriu a pena de degredo. Terá morrido por lá

DIOGO VENTURA/OBSERVADOR

A última mulher condenada à pena e morte em Portugal

Tendo em conta a gravidade do crime, como é que Maria José escapou à forca? Pode parecer estranho, mas a explicação é simples — tem a ver com a altura em que o crime se deu, quando havia já um desgaste da pena de morte e se começava a preparar o terreno para a abolição que viria a acontecer algumas décadas mais tarde. E o clima abolicionista já se fazia sentir, não só do lado da Justiça (a última execução aconteceu provavelmente em 1847) mas também do lado dos civis. Enquanto a polícia investigava o caso do corpo de Santa Engrácia, começou a circular em Lisboa um panfleto que pedia que Maria, já detida no Limoeiro, não fosse condenada à Pena Última e sofresse antes “outro castigo ainda ainda mais cruel, à vista do seu crime”. O texto, referido num artigo da revista Feira da Ladra, dizia representar a opinião de “várias pessoas” e defendia que a pena de morte era um “espetáculo que desmoraliza, não serve de exemplo, não serve de lição, serve unicamente de satisfazer o gosto daqueles que são ávidos de espetáculos de sangue, endurece o coração, fecha as portas ao sentimento, e mata tudo quanto há de doce na alma”, e pedia que a “reclusa” passasse “toda a vida, no hospital dos alienados, fechada nas grades, entre as palhas”.

“Na falta de uma razão que conduzisse a cometer tão grande crime, não acho outro motivo senão aquele que se poderia atribuir à hidrofobia. Talvez que um dia lhe chegasse o arrependimento… E que este lhe trouxesse o remorso. O remorso, Senhora, é o mais severo castigo dos réus. É isto que nós diríamos à soberana [D. Maria II], e talvez conseguíssemos resolver um grande problema: Se é mais vantajoso matar o criminoso, ou deixai-o viver de modo que o remorso o emende e possa servir de salutar exemplo para prevenir novos crimes. Deus permita que vejamos um dia discutir esta grande questão e que acabem por uma vez as mortes legais, em praça pública, que fazem grande mal sem conseguir fins proveitosos”, terminava o panfleto, impresso na tipografia da Viúva Rebello e Filhos, situada na Calçada do Sacramento, n.º 7, em Lisboa.

O apelo das “várias pessoas” fazia sentido, mas surgia numa altura em que já ninguém era executado em Portugal. A pena de morte era ainda prevista por Lei, mas esta era sempre comutada, principalmente depois de ter surgido uma disposição legal que obrigava à consulta do rei. Maria José terá sido, muito provavelmente, a última mulher a ser condenada em Portugal, sendo que a última a ser executada, a coimbrã Luísa de Jesus, viveu no século XVIII. Existem algumas dúvidas quanto à última execução, mas é geralmente apontado o crime de Lagos, em 1846. A pena de morte era, assim, uma forma de ameaça, que pretendia dissuadir os criminosos “através do medo”. “Esta era altura em que já não se executava a pena de morte, ainda menos numa mulher”, afirmou Sílvia Alves. Maria José terá sido, aliás, a última a ser condenada à morte, pena suprimida para os crimes políticos no ano em que o caso chegou ao Supremo Tribunal de Justiça e para crimes civis (exceto traição em tempo de guerra) em 1867. As mulheres eram vistas como o “sexo frágil”, e isso tinha impacto no Direito Penal e também no Civil — significava certas “incapacidades jurídicas”

A pena de morte era, assim, uma forma de ameaça, que pretendia dissuadir os criminosos “através do medo”. “Esta era altura em que já não se executava a pena de morte, ainda menos numa mulher”, afirmou Sílvia Alves. Maria José terá sido, aliás, a última a ser condenada à morte.

Era este pressuposto que fazia com que as mulheres não fossem condenadas a penas de “maior sofrimento físico” e, em séculos anteriores, a “certas formas de pena de morte”. “Não quer dizer que não existissem outros mecanismos de punição, mas a tradição é esta — é a do favorecimento na aplicação das penas e na avaliação da responsabilidade criminal”, disse a especialista. Uma mulher grávida nunca podia ser executada — esperava-se sempre que o bebé nascesse e que deixasse de mamar — e o degredo era muitas vezes evitado para que a mãe de família pudesse permanecer junto dos seus. Mas havia o outro lado da moeda, o da diminuição clara do valor da mulher. A fragilidade do sexo feminino não dizia apenas respeito ao lado físico mas também ao psicológico — as mulheres podiam “cair mais facilmente em erro”, ser enganadas mais facilmente e ser levadas a cometer um crime. É precisamente essa a versão explorada por Camilo Castelo Branco em Maria! Não me mates que sou tua mãe!, onde Maria, uma jovem boazinha e ingénua, é transformada em assassina sanguinária por um homem perverso, sem escrúpulos e mal encarado. Ao optar por esta versão, Camilo acaba por em parte desculpabilizar os atos de Maria José. No fundo, a única culpa de que Maria teve foi de ser mulher.

No entanto, isso não parece ter pesado em nenhuma das decisões dos juízes. Pelo menos no que diz respeito à eventual diminuição da pena. Em todos os acórdãos consultados pelo Observador, é referida a brutalidade do crime cometido, que é ainda mais chocante por ter sido cometido por uma mulher, supostamente incapaz de tamanha crueldade. “Isto sai do imaginário do que é uma mulher, do que é um crime praticado por uma mulher. Para mim, é a peça que menos faz sentido”, admitiu a professora da Faculdade de Direito de Lisboa.

Não é a única. Mas talvez nunca se possam a vir a juntar todas as peças do puzzle e a história de Maria José e do seu José Maria tenha de ficar incompleta, como lamentava Pedro Vitorino em 1932. O namorado existia mesmo? Foi mesmo dinheiro a motivação do crime? E como foram os últimos dias da matricida, desterrada em Angola e salva pela mesma Lei que teimou em condená-la? Estas são algumas das perguntas que ficaram por responder em 1848 e que, 170 anos depois, permanecem sem resposta.

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