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JOÃO PORFÍRIO/OBSERVADOR

JOÃO PORFÍRIO/OBSERVADOR

Isolados, milhares de idosos continuam a precisar de apoio. E continua a haver quem não os abandone

Augusto, Clotilde, Emília e José já precisavam de apoio social antes da pandemia devido a doenças, reformas baixas e solidão. Estas são as suas histórias — e as histórias de quem os ajuda.

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Têm problemas de saúde, reformas baixas e solidão. Têm saudades da família que já não podem ver, quando ainda a têm. Têm saudades do convívio, de andar na rua. Os casos são todos diferentes, mas Augusto, Clotilde, Emília ou José já precisavam de apoio social antes da pandemia e continuam a precisar agora que parte do país parou.

Em Matosinhos e em Lisboa, Edna, Susana, Filipa, Deolinda, Alzira e Cristina saem de casa para garantir que os mais necessitados continuam a ter os cuidados de que precisam para sobreviver. O vírus é uma preocupação, tão grande que o equipamento de trabalho de todas elas é hoje outro, mas o medo não as paralisou. Mesmo com meio país parado, poucas pessoas na rua e as regras de distanciamento social.

Nem sempre isso acontecerá nos dias negros da pandemia, mas estas são as histórias dos mais carenciados e daqueles que os ajudam todos dias.

Augusto chegou a estar “vários dias sozinho e sem comida”

O programa “Idosos em Segurança” existe desde 2013 e dedica-se a prestar apoio domiciliário diário a idosos que vivam sozinhos e com dificuldades económicas no concelho de Matosinhos, tanto presencialmente como por telefone. Por estes dias, o número cresceu e a iniciativa “é ainda mais necessária.”

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“Os mais velhos são sinalizados pelos centros de dia, pela nossa assistente social e, por vezes, pelos próprios vizinhos que nos ajudam a identificar quem precisa de ajuda. Dos 55 que tínhamos, 15 foram para casa de familiares e conseguiram uma retaguarda. Neste momento estamos a acompanhar 40 idosos, mas surgem sempre pessoas novas”, explica ao Observador Paula Bandeiras, diretora de departamento da Polícia Municipal e Fiscalização.

No dia em que o Observador assistiu à ação solidária, a ronda começou pelas 9h30 na sede da Polícia Municipal de Matosinhos, onde as agentes Patrícia Pereira e Dina Ribeiro começam por calçar as luvas, colocar a máscara facial e desinfetar a carrinha. O material de proteção individual não abunda por ali, por isso uma máscara é usada durante dois a três dias.

A primeira paragem foi uma estreia. O GPS aponta para São Mamede de Infesta, mais precisamente para a casa de Augusto Ferreira. “Neste caso foi uma vizinha que trabalha no INEM que nos pediu ajuda. Sabemos que o senhor está sozinho e sem comida há vários dias”, conta Patrícia Pereira ao Observador.

Augusto tem 86 anos, é diabético e vive sozinho há pelo menos cinco anos. Cortou relações com a família, à exceção da mulher, que está no Lar dos Pescadores de Matosinhos. "Costumava ir visitá-la todas as semanas, mas agora não me deixam", queixa-se.

Atrás do portão azul espreitava Augusto, ao seu lado estava Joca, o seu cão e “único companheiro”. Tem 86 anos e vive sozinho há pelo menos cinco anos, altura em que a sua mulher foi para o Lar dos Pescadores de Matosinhos. Costumava ir visitá-la todas as semanas, mas agora não me deixam”, lamentou o idoso com problemas de visão, na anca e numa perna e que também é diabético, o que faz dele um caso de risco para a Covid-19. “Fui operado a uma catarata no Hospital de São João e o médico deixou-me cego de um olho. Depois tive que ser operado a uma perna, a minha família passou a chamar-me manco e cortei relações com eles.”

O antigo serralheiro, que esteve emigrado em França e também trabalhou como motorista de pesados e vendedor ambulante de vestuário, vive rodeado de roupa pendurada, ratoeiras, botijas de gás, guarda-sóis, uma viola e um pai natal.

Augusto não vê de um olho, manca de uma perna e tem dores na anca

Rui Oliveira/Observador

Quando podia sair de casa, Augusto costumava almoçar fora todos os dias, a sua reforma de 400 euros assim o permitia, mas atualmente só a comida do cão está assegurada. “Antes comia fora, tinha o passe geral de autocarro e podia ir até Valongo. Agora é tudo mais difícil”, reconhece.

Orgulhoso e bem disposto, mostra os cantos da casa, onde saltam à vista as caixas dos medicamentos, a garrafa de azeite, o garrafão de vinho e uma lata azul de creme Nivea espalhados na mesma mesa. Patrícia Pereira contacta a assistente social para providenciar pelo menos uma refeição quente diária a Augusto, que não sabe cozinhar nem pode ir às compras. “Se lhe dermos um prato, sopa e pão ao almoço, pode guardar a sopa para comer à noite?”, questionam. “Sim, tenho frigorífico, micro-ondas e até máquina de lavar”, responde assertivamente o idoso natural de Famalicão.

Enquanto davam indicações a Augusto para não abrir a porta a estranhos, de forma a evitar as burlas, e aguardavam pela confirmação da refeição, eis um telefonema inesperado. “A dona Clotilde caiu, temos de ir lá ver o que se passa”, atira a agente Dina Ribeiro. “Já voltamos sr. Augusto, fique atento ao telefone, por favor.”

Augusto Ferreira vive sozinho com o seu cão. Tem 86 anos e é diabético, por isso faz parte de um grupo de risco

Rui Oliveira/Observador

Clotilde vive sozinha, é bipolar e cai várias vezes

Estamos em Leça da Palmeira e à porta de casa de Clotilde Pinheiro está já parada uma ambulância do INEM pronta para transportá-la para o Hospital Pedro Hispano, em Matosinhos. “Já não é a primeira vez que ela cai da cama e se magoa”, conta Patrícia Pereira. Clotilde tem 64 anos, é bipolar e vive sozinha desde que o marido foi internado com cancro nos pulmões. Sofria de violência doméstica e desde aí a sua saúde deteriorou-se.

“Não devia estar sozinha, mas infelizmente já não temos capacidade para a institucionalizar”, lamenta Dina Ribeiro, que a visita há um mês e vê os lares do concelho a abarrotar. Na sala de estar, a árvore de Natal ainda permanece montada e na mesa há uma panela de sopa e algumas peças de fruta, provas do apoio dado pelo centro de dia local que a visita todos os dias e garante a sua alimentação e higiene. “Ela agora vai para o hospital para ser analisada, mas provavelmente voltará para a casa e terá que continuar sozinha.”

Clotilde Pinheiro costuma cair várias vezes. Uma vizinha alertou a polícia municipal para a ir socorrer

Rui Oliveira/Observador

De Leça da Palmeira, a Polícia Municipal parte para a Avenida Menéres, no sul do concelho, onde uma idosa, confinada ao isolamento por ordens médicas, deixou na receção do seu prédio receitas para serem levantadas na farmácia e um cartão crédito para ser levantado dinheiro. “Às vezes deixam a lista de compras ou as receitas na caixa do correio e nós tratamos do assunto para eles não terem que sair de casa.”

Os medicamentos e o dinheiro são entregues num saco sem que haja qualquer contacto com a idosa. No caminho até à farmácia, as duas agentes vão abordando quem passa na rua, perguntam o que estão a fazer e para onde vão. “Os mais velhos são os mais difíceis de convencer a ficar em casa. Uns dizem que isto não é vírus, é uma ditadura, porque têm os filhos a mandar neles e não gostam disso. Outros garantem que tomaram a vacina da gripe e por isso não se preocupam tanto. É muito complicado”, desabafa Patrícia Pereira, polícia há mais de uma década.

Receitas médicas para levantar na farmácia ou listas de compras para o supermercado são alguns dos apoios que as agentes da Polícia Municipal de Matosinhos estão habituadas a dar

Rui Oliveira/Observador

Chega finalmente a indicação de que a cantina do Centro Cultural e Desportivo do Pessoal do Município de Matosinhos assegura refeições quentes a Augusto Ferreira a um preço acessível, de cinco euros. De regresso a São Mamede de Infesta, o idoso recebe sorridente um saco com um prato de comida, uma tigela de sopa e dois pães. A partir desta terça-feira irá receber todos os dias um saco igual. “Amanhã pago com dinheiro outra vez, não se preocupe. Obrigado”, diz no momento da despedida.

“A solidão é o que me mata”

“Tenho falta de companhia, de expandir a minha dor. A solidão é o que me mata, a mim e a toda gente”, queixa-se Emília Henriques. Emília tem 88 ou 89 anos, não sabe precisar — acamada, sem visão, diz-nos por telefone que nasceu “em 1931”, portanto “façam as contas”, concluindo a graça com um riso. O filho, que “fez 60 anos”, é “muito querido” mas “trabalha em Madrid” e mesmo agora, que está em Portugal, deixa as compras à porta e não se aproxima para não deixar entrar o “vírus que aí anda”.

À noite, a partir das 20h, Emília tem uma auxiliar em casa para a apoiar, mas durante o dia depende do apoio da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa (SCML), que em tempos de coronavírus continua a prestar ajuda domiciliária àqueles que, por doença (como é o caso de Emília) ou dificuldades financeiras, não vivem sem ela. Também na capital a Covid-19 paralisou boa parte da cidade, mas há apoios, indispensáveis, que se mantêm.

O cenário é agora bem diferente do costume, não nos horários nem nas pessoas que visitam Emília Henriques mas nas práticas. De máscara colocada na cara, com Equipamento de Proteção Individual, Edna Vitorino, assistente social e diretora do Serviço de Apoio Domiciliário Tejo, e Susana Pinto, auxiliar de geriatria e apoio à comunidade, entram com os cuidados que há alguns meses ninguém imaginava necessários.

Susana Pinto tem 43 anos e trabalha como auxiliar de geriatria e apoio à comunidade para a Santa Casa da Misericórdia de Lisboa

JOÃO PORFÍRIO/OBSERVADOR

São 9h45 e esta é a primeira fase do apoio domiciliário da Santa Casa, a de “toma do pequeno-almoço”, a que seguem outras: higiene pessoal, almoço, “lanche e companhia” e o jantar de que dona Emília já não precisa, dado que o apoio noturno é garantido por funcionária privada. No exterior da habitação, ouvimos os primeiros cumprimentos:

— “Bom dia dona Emília. Já vou ter consigo, dê-me só um segundinho.”

— “É a doutora Edna? Ó, minha querida!”

— “Temos de manter a distância de segurança, estou de máscara.”

— “Ai é? Ah…”

O rádio está ligado e sintonizado, sempre na Antena 1. “É a minha companhia. Já conheço os locutores, essa gente toda, há muitos anos. Também tenho o meu querido filho e a minha querida netinha — a minha família é pequenina mas muito querida… Mas o rádio está sempre ligado e a estação é esta, não posso mudar para aqui nem para ali porque não vejo”, diz-nos por telefone desde o interior da habitação, através de chamada em alta voz efetuada com o apoio da equipa que lhe presta auxílio domiciliário.

Durante muito tempo, Francisco e Emília estiveram os dois acamados, cada um no seu quarto, a comunicar por "pombo correio" — eram as auxiliares que iam ao quarto do "senhor Francisco" perceber como estava, para contar depois "à dona Emília".

Em frente à cama, em cima de um móvel, Emília Henriques tem um busto com uma representação do marido, que morreu há um ano. “Precisou de apoio antes de mim, teve uma trombose e ficou 20 e tal anos a precisar de apoio”, conta. Em 2001, a Santa Casa começou a prestar cuidados ao “senhor Francisco”, mas com a deterioração da saúde de Emília o apoio acabou por se estender ao casal. “De início não precisava ainda disto, depois é que tive de ser internada…”. Durante muito tempo, contam as funcionárias que já ali vão há anos, Francisco e Emília estiveram os dois acamados, cada um no seu quarto, a comunicar por “pombo correio” — eram as auxiliares que iam ao quarto do “senhor Francisco” perceber como estava, para contar depois “à dona Emília”.

Emília Henriques não contava, claro, ver-se assim, acamada e a precisar de apoio, mas a leveza com que conta como tudo aconteceu é desconcertante. Começa por recuar aos tempos de infância: “Nasci no concelho de Sintra. Depois, já eu crescidinha, o meu pai estabeleceu-se noutro lado com uma padaria. Comecei a trabalhar, a ser empregada da padaria do meu pai, tinha 16, 17 ou 18 anos, já nem sei. Estive lá até me casar, com 25 anos”. O marido, “ao princípio trabalhava e estudava”, mas “depois o pai morreu e a mãe não lhe podia pagar os estudos. Foi para uma oficina de automóveis, entrou com 15 anos e saiu com 65. Passou 50 anos no mesmo trabalho, era muito zeloso… Faleceu há um ano, a 11 de abril”.

Por precaução, as fotografias no interior da casa de Emília foram tiradas pela equipa da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa que presta cuidados domiciliários à moradora

OBSERVADOR

Os seus problemas de saúde começaram pelo coração. “A primeira coisa que tive nem sabia o que era. Cansava-me, tinha uma dor no peito. Detetou-se que estava com um problema de coração”, recorda Emília. Seguiram-se os problemas de visão, que se acentuaram em 2015. “Parecia que tinha umas areias na vista. Fui ao hospital de São José e disseram-me que as consultas levavam muito tempo, que podia marcar mas só chamavam dali a um ano. Esperei e quando chegou a altura um especialista viu-me e disse: o que a senhora tem é um glaucoma”.

O nome da doença era coisa para assustar, mais ainda quando lhe disseram que o endurecimento do globo ocular “não tem cura” e “dá cegueira”. Ainda foi operada “uma vez num ano, outra vez no outro”, mas já sabia que o desfecho seria a perda de visão e nem sequer foi apanhada desprevenida: “Não me assustou muito porque o meu avô quando morreu já estava ceguinho há dez anos. É de família“.

Emília Henriques diz que, feitas as contas, não se pode queixar. “Tive muita sorte com o meu filho, com a minha neta, com a minha sogra, com tudo.” Fica “triste” com a distância e com a solidão, “mas a vida é mesmo assim” e “as pessoas precisam de trabalhar”. O isolamento, no seu caso, não é muito maior agora do que era antes. Para não ficar num lar, coisa que não quis — tal como o marido antes não o quisera — a vida ficou assim. “Fico aqui sozinha quando elas vão embora”, diz, referindo-se às técnicas da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa que já conhece bem. Sim, à noite tem outra pessoa a acompanhá-la até de manhã (das 20h às 8h), porque o filho “não quer que fique sozinha”, mas a intimidade não é tanta, “não é tão faladora.”

"Estas senhoras são as minhas borboletas. Pousam aqui, vão pousar ali a seguir… A minha família, não falando do filho e neta, é estas borboletas. Vêm aqui, dão-me uma conversazinha, tratam-me muito bem. Eu já só quero é conversa."
Emília Henriques, 89 anos

Sobre as auxiliares que lhe prestam apoio, diz o seguinte: “Estas senhoras são as minhas borboletas. Pousam aqui, vão pousar ali a seguir… Não falando do filho e neta, estas borboletas são a minha família. Vêm aqui, ‘dão-me’ uma conversazinha, tratam-me muito bem. Olhe, estou rodeada de gente boa, tratam-me com muito carinho. Às vezes não mereço tanto…”. A lista de desejos que ainda tem não é longa e é simples — “eu já só quero é conversa.” Quanto ao vírus, “aquele que anda aí”, não pode fazer grande coisa. “É ver o que isto dá e esperar que não chegue cá”.

Sair à rua porque é mesmo preciso. “Muitas pessoas só nos têm a nós”

Edna, Susana, Filipa, Deolinda, Alzira, Cristina. Para garantir que a assistência a quem mais precisa em Lisboa continua, elas e muitos outros são fundamentais. Num momento em que boa parte quer do país quer da capital está remetida a casa — ou a centros de acolhimento, para quem não a tem —, há quem continue a sair à rua todos os dias. Não o fazem, garantem, apenas porque é trabalho. Fazem-no também porque é mesmo preciso.

As “borboletas” Edna Vitorino e Susana Pinto disso exemplo. Edna tem 48 anos e dirige um dos serviços de apoio domiciliário da SCML que opera nas freguesias de Santo António, Estrela e Misericórdia. É também nessas freguesias que Susana, auxiliar de Geriatria e Apoio à Comunidade, trabalha entre as 8h30 e as 17h ou 17h30.

"Independentemente de ter a minha família em casa, muitas destas pessoas só podem contar connosco. É por isso que estamos cá. Todas aqui temos noção que esta é a nossa missão. Sabemos que temos de vir e que temos de vir cuidar. É o nosso contributo e para eles [que beneficiam dele] é muito importante."
Susana Pinto, 43 anos, Auxiliar de Geriatria e Apoio à Comunidade

Ao todo, nestas três freguesias lisboetas são apoiados “cerca de 200 utentes”, habitualmente por 64 auxiliares. Há 14 que de momento não estão a trabalhar, mas os apoios continuam a prestar-se, garante Edna Vitorino. Até porque houve casos de pessoas que “prescindiram dos serviços” por receio do novo coronavírus, tendo encontrado “alternativas familiares” de apoio.

“Muitas destas pessoas só nos têm a nós. Para algumas, somos família”, diz Susana Pinto, que admite com um sorriso que nem toda a gente tem a simpatia natural de Emília. “Há pessoas mais difíceis, que já eram difíceis em novas e continuam a sê-lo”, diz. A auxiliar de geriatria e apoio à comunidade explica ainda como tem sido lidar com os mais necessitados nestes tempos de pandemia: “Há pessoas que desvalorizam. Dizem que morrer agora ou morrer daqui a pouco não é muito diferente, que já passaram por muito e não têm medo, e algumas são difíceis de manter em casa. Há pessoas que mesmo com muita idade ainda saem à rua”.

Por precaução, a conversa com Emília aconteceu com recurso a chamada telefónica, a partir do exterior da habitação

OBSERVADOR

Sair à rua nesta altura para trabalhar é um esforço, mas Susana considera-o imprescindível. “Independentemente de ter a minha família em casa, muitas destas pessoas só nos têm a nós, só podem contar connosco. É por isso que estamos cá. Todas aqui temos noção de que esta é a nossa missão. Sabemos que temos de vir e que temos de vir cuidar. Alguém tem de vir. É o nosso contributo e para eles [que beneficiam dele] é muito importante”.

Quem tem filhos, como Susana, não consegue deixar de se preocupar com a pandemia, mas a estratégia passa “por nunca mostrarmos os nossos receios” e uma das recompensas do esforço é o reconhecimento. “Os nossos filhos sentem-se orgulhosos. Percebem que estamos a prestar um serviço importante”, conta, satisfeita.

Na retaguarda, na sede da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa, há quem tenha como trabalho assegurar as refeições destinadas a apoio social. Dali saem “236 almoços e jantares para apoios comunitários” diariamente e “aos fins de semana à volta de 940, para almoços e jantares de pessoas sem-abrigo”. Estes últimos são entregues, por exemplo, em postos instalados nas ruas da capital, como acontece “na Praça Paiva Couceiro” e “junto à discoteca Lux Frágil”, explica Fátima Antunes, gerente da empresa privada de alimentação que trabalha em parceria com a Santa Casa e que explora o refeitório da instituição.

São funcionárias como Alzira Pinto e Cristina Varandas que asseguram as refeições. De máscara e luvas, a retirar das panelas o menu do almoço desse dia (frango com arroz e couve flor), Alzira e Cristina contam que o trabalho em dias de semana manteve-se, agora “há mais é aos fins de semana”, por haver mais gente a quem é preciso acudir. Queixam-se que às vezes “falta o descanso”, que “há sempre receios” ao sair de casa. Os maridos, que vão rodando entre 15 dias de trabalho e 15 dias em casa, “também não andam muito tranquilos” e que “quem está em casa acaba por ter receio dos que andam na rua.”

Porém, “as pessoas precisam e isto também é trabalhar por uma boa causa — já o fazíamos, agora ainda o fazemos mais”, conta Alzira, antes de se rir com Cristina dos novos procedimentos na sede da SCML, onde agora é medida a temperatura de manhã à entrada. “É à pistola, apontam-nos logo o laser de manhã”.

Da cozinha da sede da Santa Casa Misericórdia de Lisboa saem refeições diariamente quer para o refeitório da instituição — agora menos concorrido — quer para apoio social

JOÃO PORFÍRIO/OBSERVADOR

Outra funcionária da instituição de solidariedade social que continua a sair à rua para trabalhar é Filipa Domingues, que encontramos na Rua Cecílio de Sousa ao final de uma manhã onde só se vê mais uma pessoa na rua a passear o cão de máscara facial. Filipa tem 35 anos, é enfermeira e assegura a prestação de cuidados de saúde ao domicílio. Há 14 anos que trabalha na Santa Casa e já fez assistência social “em vários momentos”, mas fazê-lo “exclusivamente” tem acontecido “mais agora devido à Covid-19”.

Os horários dos enfermeiros que asseguram os mesmos serviços de Filipa Domingues tendem a ser “das 9h às 16h”, com rotação semanal e equipas. Internamente, faz-se permanentemente uma atualização das pessoas a quem a prestação de cuidados de saúde ao domicílio é indispensável e dos que podem dispensar esse serviço. Sabe-se que entrar em casa de alguém é arriscar a exposição ao vírus e há que tentar minimizar o risco.

"Há pessoas que trato que me estarão a ver pela primeira vez e que se calhar nunca saberão quem sou, não conseguem ver a minha cara. Isto é tudo inesperado"
Filipa Domingues, 35 anos, enfermeira

Vestida com equipamento de proteção integral, Filipa Domingues sai de uma carrinha parada no meio da rua com o material habitualmente usado em cuidados de saúde. Já não leva as antigas mochilas para o interior das habitações, mas antes pequenos sacos. Todo o cuidado é pouco. “Admito que há alguma tensão no sentido de cumprir todas as normas. Temos essa preocupação, a de evitar a responsabilidade que seria colocar alguém em risco, daí esta parafernália de material”, começa por explicar. “Há pessoas que trato pela primeira vez e que se calhar nunca saberão quem sou porque não conseguem ver a minha cara. Isto é tudo inesperado”.

No caso de Filipa, continuar a sair de casa e trabalhar nunca foi dúvida — “tenho este dever, faz parte da minha profissão” —, mas os receios existem. “Mal chego a casa, tiro a roupa e vou logo tomar banho. Vivo com um companheiro e assumimos que se acontecer alguma coisa acaba por ser aos dois. Há momentos de maior otimismo, de maior medo, de exteriorizar“, reconhece.

Já para as pessoas a quem tem prestado cuidados de saúde domiciliário, a realidade não se alterou assim tanto com a pandemia. “Estão um bocadinho preocupadas mas a situação atual é um bocadinho semelhante à que viviam habitualmente — muitas destas pessoas já só recebiam visitas de técnicos, auxiliares e enfermeiros. Muitos que precisam de cuidados de saúde ao domicílio já não saíam de casa. E neste momento só visitamos mesmo quem é imprescindível visitar”.

Filipa Domingues tem 35 anos, é enfermeira e assegura prestação de cuidados de saúde ao domicílio

JOÃO PORFÍRIO/OBSERVADOR

O senhor José que gosta de “esticar os tendões”

Para garantir que o apoio social continua a chegar a quem dele precisa, algumas instituições tiveram de se readaptar e reformular. No Bairro Alto, o Centro Social São Boaventura deixou de receber os mais necessitados no interior — que ali se deslocavam para tomar banho nos balneários, lavar a roupa, comer e conviver. Mas as refeições continuam a ser entregues “aos utentes do centro de dia que não têm suporte”, a roupa suja continua a ser recolhida e a roupa lavada continua a ser entregue ao domicílio. Também os lençóis das camaratas dos Bombeiros Voluntários de Lisboa são ali lavados.

Seja devido à redução de apoios na rua, seja porque boa parte do comércio (incluindo restauração) parou, há já mais gente a recorrer ao centro social. A diretora Ana Clara Henriques diz que nota “mais frequência” de utentes: “Há pessoas que vinham um dia e noutro não vinham, agora vêm todos os dias. Tinham outras alternativas, restaurantes que garantiam apoio, a Refood. Agora não têm e têm mesmo de vir”.

No postigo do Centro Social São Boaventura, em Lisboa, continuam a ser entregues refeições aos membros da comunidade que mais necessitam. Deolinda Pinto é uma das funcionárias que continua a trabalhar

JOÃO PORFÍRIO/OBSERVADOR

Deolinda Pinto, 48 anos, é uma das pessoas que continua a trabalhar no Centro Social São Boaventura. Vai palmilhando os corredores, recolhendo refeições para entregá-las ao postigo, de máscara facial na cara. “A nossa função é dar assistência a estas pessoas. Se não fosse, ficávamos resguardados em casa como outros ficam. Há muita gente com mais idade que costumava vir aqui e que nos diz que se sente sozinha, vulnerável. O que pudermos ajudar, ajudamos”.

Os filhos são sempre uma preocupação e Deolinda Pinto, que tem uma filha, diz que não é exceção. “Tentamos que não saiam de casa, tentamos manter alguma distância, mas é difícil”. No centro social, os relatos que chegam são de gente que “sente saudades dos filhos, quando os tem” e que se sente mais solitária e frágil.

O “senhor José” é um dos idosos que continua a ir buscar refeições ao postigo diariamente, mas não sai à rua só por isso. “Gosto de sair uma hora para ir esticar os tendões, depois vou para casa”, diz, já de saco com as refeições na mão e sorriso traquina na cara que não denuncia os mais de 80 anos. “Gosto de ir passear as pernas. A polícia às vezes não me diz nada, outras vezes lá diz. Ainda hoje apareceu-me um e lá lhe tive de dizer: ‘vou ali acima e já venho para baixo, não se preocupe'”.

Um antigo eletricista fazia a higiene pessoal no Centro Social São Boaventura, em Lisboa, mas não comia. Uma das poucas alegrias que tinha era "comer na tasca". Agora, é ali que vai buscar todas as refeições mas "detesta." Só pede uma coisa: que alguém vá a sua casa fazer-lhe uma sopa de feijão igual à que a mãe fazia.

Há casos mais complicados, em que a saúde mental ressente-se do isolamento: um dos utentes do Centro Social São Boaventura, antigo eletricista hoje reformado e com uma reforma baixa, fazia a higiene pessoal no centro de dia, mas uma das poucas alegrias que tinha, diz-nos a diretora do centro, era “andar na rua, comer no cafézinho, na tasca”. Enfim, gostava “do petisco”. Agora, é ali que vai buscar todas as refeições mas “detesta”. Só o faz “porque não tem alternativa” e está “muito deprimido”. A higiene já não é a melhor, mas quando lhe apontam isso, explica “às vezes muito irritado” que não quer saber disso, a preocupação que tem é outra. Todos os dias liga para o centro de dia com um pedido “uma coisa muito simples, não leva mais de uma hora”. “Quer que lhe arranjemos uma funcionário que vá a casa dele fazer uma sopa de feijão igual à que a mãe fazia”, conta Ana Clara Henriques

Bolsa de reforço solidário criada em Matosinhos

Segundo o boletim da Direção Geral de Saúde divulgado este sábado, dia 18 de abril, há pelo menos 860 pessoas infetadas pelo novo coronavírus em Matosinhos – um dos concelhos com mais infetados do país. De acordo com as duas agentes da Polícia Municipal, até agora não tiveram ainda qualquer contacto com idosos infetados, mas admitem que pode vir a acontecer. Recorde-se que Luísa Salgueiro, presidente da Câmara Municipal de Matosinhos, esteve em isolamento infetada com a Covid-19, tal como António Correia Pinto, vereador da Educação e da Qualificação Ambiental da mesma autarquia, ainda internado com o mesmo diagnóstico.

A partir desta terça-feira, Augusto Ferreira irá receber em casa uma refeição quente por 5€

Rui Oliveira/Observador

No passado dia 28 de março, a Câmara de Municipal de Matosinhos, em articulação com o Instituto Padre António Vieira, uma associação cívica sem fins lucrativos, lançou uma bolsa de reforço solidário para aumentar a capacidade de respostas às Instituições Particulares de Solidariedade Social (IPSS) do concelho que necessitem de recursos humanos nesta fase da pandemia.

“As IPSS que gerem Estruturas Residenciais para Idosos estão a lidar com o grande desafio de terem, de um momento para o outro, o seu quadro de pessoal diminuído por via da infeção por Covid-19, ou por se encontrarem a cumprir quarentena”, revela a autarquia em comunicado.

A iniciativa destina-se a todos os que tenham formação ou experiência nas áreas da saúde, geriatria, ação social ou assistência operacional e a seleção dos candidatos está já a decorrer. Os interessados podem inscrever-se através do e-mail voluntariadoemmatosinhos@cm- matosinhos.pt, ou pela linha 800 210 095.

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