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Como está a obra de José Saramago e que lugar ocupa hoje? Duas perguntas possíveis na semana em que se assinala uma década sobre a morte do Nobel português, a 18 de junho de 2010. Por aí andou uma entrevista com Pilar del Río e por aí também seguiram depoimentos recolhidos nos últimos dias junto de sete autores portugueses — qual o melhor livro de Saramago e porquê, perguntou-lhes o Observador.
A presidente da Fundação José Saramago preferiu não eleger um título. “Conforme o estado de espírito, escolho e leio este ou aquele”, disse. Já os escritores contactados, concentraram uma maioria de respostas em O Ano da Morte de Ricardo Reis, de 1984, romance com o salazarismo em pano de fundo onde o heterónimo de Fernando Pessoa chega a Portugal já depois da morte do criador.
Seguem dentro de momentos as opiniões de Dulce Maria Cardoso, Nuno Júdice, Mário de Carvalho, Clara Ferreira Alves, José Luís Peixoto, Alice Vieira e Mário Zambujal. Por enquanto, a troca com Pilar del Río, numa entrevista por escrito realizada esta semana. Pergunta: que obra de Saramago ajuda a ler os tempos de incerteza que vivemos, no contexto da pandemia do novo coronavírus e da crise por ela provocada? Pilar enuncia títulos.
“Parece evidente que a distopia do Ensaio sobre a Cegueira foi considerada em todo o mundo uma metáfora do que estamos a viver. Pessoalmente assinalaria o Ensaio Sobre a Lucidez, a capacidade dos cidadãos de organizarem o seu futuro com base na ética e na responsabilidade. A estes títulos acrescentaria Intermitências da Morte. Parece-me que esta trilogia distópica reflete os nossos medos, contradições e anseios.”
A jornalista espanhola, de 70 anos, conheceu Saramago em 1986 e com ele se casou em 1988, até ao fim companheira numa vida íntima e literária que ganhou dimensão mundial. Assinala que a imagem de Saramago-marido e a de Saramago-escritor “não se contradizem” e ambas sobrevivem nela. Como disse há poucos anos numa entrevista ao Expresso, considera-se “parte ativa” no projeto de vida do escritor a que se dedicou “de corpo e alma”. E assume influência na obra. “Fomos companheiros e trabalhámos no mesmo projeto, cada um no seu lugar, e agora, dez anos depois, cada um está no seu lugar”, afirma, logo se rementendo para um papel definido: “O meu lugar é trabalhar na Fundação José Saramago.”
A notícia tem dez anos e chegou a meio da tarde de uma sexta-feira. Aos 87 anos, o Nobel português da literatura (e o único até hoje depois do Nobel da Medicina para Egas Moniz, em 1949), tinha morrido na casa que então partilhava com Pilar, na ilha espanhola de Lanzarote. Desde 2007 que estava fragilizado por uma doença oncológica e em 2009 publicara Caim, o derradeiro livro em vida.
“As suas declarações, tal como os livros, levantavam, não raras vezes, ferozes polémicas do lado daqueles que não apreciavam quer o seu estilo, quer as suas posições políticas e religiosas”, anotou o jornalista Adelino Gomes em obituário no jornal Público. Comunista filiado desde 1969 e intelectual ativista, colheu antipatias de muitos quadrantes. “Não escrevia para distrair ou alienar, escreveu e interveio no seu tempo contra a indiferença anunciada, contra a resignação e o medo”, descreve Pilar del Río.
A mais célebre disputa passou-se no início da década de 90, após a publicação do romance O Evangelho Segundo Jesus Cristo, pelo qual receberia o Grande Prémio de Romance e Novela da Associação Portuguesa de Escritores. A hierarquia católica não gostou do livro e fez saber que teria excomungado Saramago caso ele fosse um fiel. Em 1992 o então subsecretário de Estado da Cultura, António de Sousa Lara, vetou o romance de uma lista de candidatos que o Instituto Português do Livro lhe tinha sugerido para o Prémio Literário Europeu, alegando que a obra “ataca o património religioso dos portugueses”. Foi na sequência deste episódio que Saramago decidiu trocar Portugal por Espanha.
“Ato de censura de um Governo democrático”, considera hoje a presidente da Fundação José Saramago. “O veto não o afetou como autor, mas as consequências dessa censura, sim: ter ido viver para uma ilha e ver o mundo a partir da paisagem vulcânica e solitária de Lanzarote foi importante na sua obra e evidentemente no Ensaio Sobre a Cegueira. No entanto, o mais importante foi ter escrito O Evangelho Segundo Jesus Cristo, confrontar-se com o momento fundador da nossa civilização, a cristã, e refletir sobre isso, com tanta seriedade e rigor, o que não é fácil para ninguém, nem para o leitor nem para o escritor. Se Jesus Cristo não é filho de Deus, se Deus não existe, está a nossa civilização baseada na mentira?” É nisto que se pensa depois de ler o romance, acredita Pilar.
Nascido numa família de camponeses da Golegã, a 16 de novembro de 1922, cresceu em Lisboa mas nunca perdeu uma forte ligação à terra e aos avós maternos que lá deixou. “O homem mais sábio que conheci em toda a minha vida não sabia ler nem escrever”, afirmaria Saramago sobre o avô, quando em 1998 recebeu o Nobel da Literatura. Fez estudos secundários, começou por trabalhar como serralheiro mecânico e à noite frequentava a biblioteca municipal do Palácio Galveias. Publicou em 1947 o primeiro livro, Terra do Pecado. A partir dos anos 50, dedicou-se ao trabalho intelectual a tempo inteiro, como tradutor, publicista e jornalista.
“Como tantas outras pessoas que nascem em ambientes pobres e sem horizontes, tinha um destino que à partida não era o de escritor universal. Acabou por sê-lo porque tinha condições, porque trabalhou, estudou e era dono de um estilo literário que o singularizava”, salienta Pilar.
José Saramago. Como o ano da morte do meu pai me mostrou o Evangelho de um Nobel
Uma década passada, os livros de Saramago ocupam “um lugar nas bibliotecas e nos corações dos leitores, que são muitos e felizmente cada vez mais em todo o mundo”, segundo a presidente da fundação com sede na Casa dos Bicos, em Lisboa. Pergunta-se se Saramago partilhou com ela a visão que teria do percurso da obra em período póstumo? Pilar desvia-se: “Os escritores escrevem os seus livros, entregam-nos e a partir desse momento — é o que todos dizem e a experiência confirma — os livros deixam de lhes pertencer. Os escritores não controlam as preferências dos leitores ou a capacidade de expansão editorial. Podem desejar conquistar mais leitores no futuro, mas não há estratégias científicas. As obras literárias, ou ‘a obra’, dependem daquilo que veiculam e da vontade dos leitores.”
[cartaz partilhado no Instagram da Fundação José Saramago alusivo ao lançamento de A Jangada de Pedra no Rio de Janeiro em 1986:]
https://www.instagram.com/p/B08dTnhF_3e/
E por fim os escritores portugueses cujos depoimentos foram recolhidos por telefone e por e-mail. Perante o desafio do Observador para que escolhessem o melhor livro de Saramago, responderam como se segue.
Dulce Maria Cardoso
“São três os que prefiro, por razões emocionais, o que não quer dizer que sejam melhores do que os outros: Todos os Nomes [1997], Memorial do Convento [1982] e O Ano da Morte de Ricardo Reis [1984]. O primeiro porque lida com a banalidade, que é um assunto que me interessa muito. Aquele homem vulgar e aquela vida mais ou menos banal surgem num livro muito bem resolvido e parco na matéria literária que usa. O segundo interessa-me pela razões opostas, por ser tão exuberante. Li-o muito cedo, quando foi publicado, e lembro-me de ter ficado avassalada. Não é só o convento de que fala, é o romance que é monumental. O terceiro, pela ideia. Saramago tem sempre ideias boas e parte de perguntas. Neste caso: ‘E se um heterónimo de Pessoa voltasse?’. Li vários outros livros de Saramago, é um autor que se lê com prazer.”
Nuno Júdice
“Escolho As Intermitências da Morte [2005], um livro em que Saramago pega no mito do desejo de imortalidade e o subverte. Mostra que a imortalidade pode ter feitos muito negativos. Toda a primeira parte do livro anda à volta das consequências que uma sociedade sofreria se ninguém morresse. Passa dessa dimensão coletiva para uma narrativa fantástica em que há um músico, a morte e um cão. É a vontade de seduzir a morte que leva esse músico a evitar que ela exerça o seu poder. A morte apaixona-se por ele. E há a salvação do personagem. Julgo que é um livro com essa dupla dimensão, que se encontra em muitas outras obras de Saramago: pegar num tema relacionado com a humanidade, com os grandes problemas que percorrem o ser humano, e passar para o plano de uma narrativa mais tradicional.”
Mário de Carvalho
“A leitura de Levantado do Chão [1980] foi para mim um choque e uma surpresa. Um choque porque me fascinou a prosa magnífica, renovada, pessoalíssima, diferente da do Saramago que eu conhecia até então. Uma surpresa porque Saramago era já um autor com alguma idade, numa carreira que parecia estar nos seus últimos termos, e que nos surgiu, de repente, com um romance sentido, original, como se fosse — e veio de facto a ser — o fulgurante início de uma carreira. Raramente a gente do Alentejo e a sua luta pela dignidade e pelo pão foi retratada tão de dentro, com tanta empatia e verdade que o apuro artístico excelentemente reforçou.”
Clara Ferreira Alves
“Considero o Memorial do Convento um dos mais importantes, mas aquele de que gosto mais é O Ano da Morte de Ricardo Reis. É um romance circular, muito bem construído, marca o momento em que Saramago passa para os grandes temas. Todos os escritores começam por personagens em particular e depois passam para a humanidade. Os pequenos escritores não conseguem essa transição, só está ao alcance dos grandes. Neste livro, Ricardo Reis é observador do espetáculo do mundo, mas não é passivo intelectualmente, e isso define o Saramago. Vem-lhe do passado como militante comunista, mas não só daí. Saramago era um ativista mental e vai dotar Ricardo Reis dessas mesmas características, aliás muito bem. A retórica e as efebulações do heterónimo funcionam muito bem, o tecnicismo desta escrita é extraordinariamente difícil, mas a narrativa está muito bem montada. Este Ricardo Reis preocupa-se com o estado do mundo e quer contribuir para o emendar. Claro que por detrás daquilo há o povo e a atitude não de reforma mas de revolução. Como sempre, há um traço autobiográfico.”
José Luís Peixoto
“Há várias escolhas possíveis e se falássemos noutro momento provavelmente faria outra. Ao longo do tempo, tem mudado muito a relação que tenho com a obra do Saramago. Neste momento, falo de um livro que me tocou muito num certo momento: Levantado do Chão. Extremamente bem escrito, apresenta uma riqueza no trabalho da língua e ao mesmo tempo descreve um mundo muito português que deve ser conhecido e é importante que fique fixado pela literatura. É um mundo que me diz muito, relacionado com as minhas origens. Independentemente da época a que o livro se reporta, podemos encontrar ali paralelismos com o que é hoje a realidade do Alentejo. Não tenho a ousadia de dizer que é o livro mais importante do Saramago, mas foi aquele que anunciou o autor em potência que ali estava.”
Alice Vieira
“O grande livro do Saramago, para mim, é O Ano da Morte de Ricardo Reis. Conheci bem o Bairro Alto e posso dizer que o livro dele, na descrição das deambulações da personagem, cheira às ruas do Bairro Alto. Adorei o livro, foi o melhor que ele escreveu e se só tivesse escrito este merecia o Nobel por isso. Escolho um outro título, da fase final, em que o Saramago consegue um tom alegre, coisa que ele não era: Todos os Nomes. Um livro pequenino, que se lê muito bem, bastante diferente do estilo habitual dele. Escrever numa idade avançada um livro com aquela alegria e suavidade é de facto fora do comum.”
Mário Zambujal
“Gostei muito de A Jangada de Pedra [1986]. Penso que é um livro de que pouco se fala. Parte de uma ideia importante, alimenta a imaginação, torna visível o que descreve. No Saramago o que há de invulgar e inédito é a forma de escrever e o pensamento. A Jangada de Pedra é um bom exemplo disso. Já agora: também gostei muito do Memorial do Convento e do Ensaio sobre a Cegueira [1995]. Normalmente usa-se o termo ‘o conjunto da obra’ para falar de um autor que não tem nenhum livro que se destaque, mas neste caso uso o lugar-comum de outra forma: se há autor em que podemos dizer que o conjunto da obra é grandioso, é o do Saramago.”