Discurso de Marcelo Rebelo de Sousa

na Assembleia da República para assinalar o 25 de Abril

Há um ano falei-vos de um Portugal na sua caminhada do Império até ao 25 de abril, à descolonização e à democracia. Nunca é demais evocar e agradecer o gesto refundador dos capitães de abril. Ele foi único singular e decisivo. Sem ele não haveria hoje uma Assembleia da República livre com vozes livres. Não há como esquecê-lo na escrita ou na reescrita da história

Longe vai o ano de 2014, em que os capitães de abril se recusaram a comparecer na sessão solene que comemora o 25 de Abril de 1974 na Assembleia da República (organizando até uma contra-sessão, no Largo do Carmo). Do lado direito de uma das galerias estavam alguns e, entre eles, Vasco Lourenço, o presidente da Associação 25 de Abril, capitão de Abril que pertenceu ao Conselho de Revolução. Isto também não aconteceu nos dois últimos anos devido às restrições da pandemia. Agora, Marcelo aproveitou as presenças para apelar à memória do “gesto refundador” dos militares que desencadearam a operação há 48 anos, contestando que essa história possa ser escrita ou rescrita sem os referir. Curiosamente ninguém (da esquerda à direita e passando pelas figuras sentadas no topo da Assembleia da República) evocou Otelo Saraiva de Carvalho, um dos estrategas do 25 de abril de 74 que morreu em julho de 2021 — e outras figuras desaparecidas no último anos foram alvo de referência, como foi o caso do antigo Presidente da República Jorge Sampaio (lembrado por Marcelo e pelo deputado do PS Pedro Delgado Alves).

Falo do que vem de muito antes de abril, do começo de Portugal. Mesmo se se só tem 700 anos no mar, 400 dos quais como corpo permanente e organizado, muitos séculos em terra, e um século no ar. São as nossas Forças Armadas garantes da independência, da soberania, da integridade e da unidade da nossa pátria. E nestes tempos em que a guerra na Europa reentra nas nossas casas, toca as nossas vidas, muda o nosso dia a dia, falar em Forças Armadas é falar do que, sendo passado, é muito presente e mais ainda futuro

Aqui continuou a falar o Presidente mas também o Comandante Supremo das Forças Armadas, poder constitucionalmente atribuído a quem ocupa o mais alto cargo. Marcelo aproveitou o momento de tensão internacional, com a invasão russa da Ucrânia e a Guerra que permanece desde 24 de fevereiro deste ano, há mais de dos meses, para tocar no ponto militar. Com a sensibilidade para o tema bem presente — como não é hábito — o Presidente da República assinalou uma frente que “vem muito antes de abril”, sublinhando os séculos de história militar nacionalpara concluir que o papel das Forças Armadas é de garantir a “independência”, soberania”, “integridade” e “unidade da pátria” — todos valores que foram recentemente ameaçados na Europa. É por tudo isto que Marcelo diz agora que falar nas Forças Armadas é falar daquilo que, vindo do passado, é presente e futuro. As atenções nacionais estão talvez mais disponíveis para o apelo que o Presidente da República queria deixar do que alguma vez estiveram na história recente.

Mas não é da guerra que vos quero falar hoje, hoje o que importa é falar das nossas Forças Armadas, no Portugal que Abril permitiu que fosse democrático, das Forças Armadas em democracia. Há uma semana agradeci aos nosso militares — e eram 200 — que partiam para a Roménia, o seu serviço à pátria. Iam em missão de paz e não de guerra, para defender a paz e não para fazer a guerra. Para prevenir contra mais guerra e contribuir para criar mais paz, para a Europa, desde logo a Europa em conflito, paz para a pátria, a nossa pátria e segurança”

Dúvidas houvessem, a intenção de Marcelo era mesmo aproveitar o momento. O momento de uma guerra que, não sendo “a única  neste instante no mundo, é talvez a mais global de todas”, considerou o Presidente, e “pode vir a ser a mais brutal em refugiados” e “a mais universal no seus efeitos em quase meio século”. O momento de puxar pelas reivindicações das Forças Armadas que ainda esta semana foram e missão para a Roménia. E aqui Marcelo também fez questão de sublinhar que isso aconteceu mas “numa missão de paz e não de guerra”. O tema é de especial delicadeza, afinal Portugal faz parte da NATO e a interferência no palco de guerra tem sido feita com pinças. Aliás, quando esteve na despedida desses 222 militares, Marcelo lembrou que noutros momentos já partiram “inúmeros contingentes para missões em prol da segurança global” e que a intervenção da NATO é “defensiva e não ofensiva”. Este é mais uma missão como outras que fez questão de elencar: na Lituânia, na República Centro Africana, no Mali, no Mediterrâneo, no Golfo da Guiné e Moçambique.

O que é a pátria que elas [Forças Aramadas] existem para servir. É um Estado independente há quase 900 anos? É mas é mais do que isso. É uma comunidade de vida de cultura de língua, de identidades forjadas na diversidade, a que muitos chamam nação, mesmo quando o nosso Estado é há muito plurinacional

É ponto recorrente desde que a extrema-direita ganhou espaço no Parlamento e Marcelo Rebelo de Sousa não passa ao lado. A “pátria” representada pelas Forças Armadas não pretende ter conotação ideológica e Marcelo fez questão de retirar essa carga da palavra que faz mais parte, no atual quadro político, do vocabulário da ponta direita do hemiciclo da Assembleia da República. A “pátria” de que fala Marcelo é a que “une”, a da “diversidade”, a “universal”, a “plataforma de encontros”. Que inclui os que “vivem cá dentro das fronteiras físicas e os que vivem fora delas, no território espiritual que é onde estiver cada um de nós. Portugal são os portugueses”, conclui o Presidente recusando deixar alguém de fora e distanciando-se do uso da palavra “nação” que é feito por “muitos” quando o “Estado é há muito plurinacional”.

Como é que na Roménia ou nos céus da Europa báltica ou noutras Europas, Áfricas, Américas ou Ásias, se luta pela paz e segurança? Luta-se porque as nossas fronteiras já não são as que foram. Porque no báltico como no Leste europeu, as fronteiras da União Europeia são as nossas fronteiras, como noutros continentes as fronteiras da CPLP são as nossa fronteiras, tal como nalguns deles as fronteiras da NATO ou do mundo ibero-americano são as nossas fronteiras

Mais uma vez na pedagogia que escolheu fazer neste 25 de Abril sobre a importância das Forças Armadas, Marcelo mostrou que a proximidade dos conflitos não se mede apenas em quilómetros mas também em acordos estabelecidos, como o da NATO. As fronteiras nacionais não são apenas as fixadas há 900 anos, mas também aquelas que são as fronteiras dos aliados da NATO ou dos países de língua portuguesa. E para o cravar ainda mais, Marcelo deu o exemplo do que se está a passar também no país quando a guerra não é nas suas próprias fronteiras, apontando as consequências para a “segurança” mas também para a “a nossa economia, os preços da nossa energia, os nosso alimentos, os nosso bens básico e tantos projetos de vida”.

As Forças Armadas desinfetam lares e escolas, organizam vacinação na pandemia, apoiam nos incêndios florestais, cheias e catástrofes naturais. Não são os únicos, mas sempre fundamentais. Por que razão falo nas nossas Forças Armadas? Porque sem Forças Armadas fortes, unidas e motivadas, a nossa paz, segurança, liberdade e democracia, sonhos do 25 de Abril, ficarão mais fracas”

Aqui Marcelo Rebelo de Sousa lembra que a vocação das Forças Armadas é muito maior do que a intervenção em cenários de conflito e que também elas estão intimamente ligadas à construção do regime democrático. O Presidente da República começava assim sua defesa de mais meios e recursos para as Forças Armadas.

Reconhecer como são importantes as Forças Armadas na nossa vida como pátria exige mais do recordarmos por palavras a sua importância. Se queremos Forças Armadas fortes, unidas e motivadas, temos de querer que tenham condições para serem ainda mais fortes, unidas e motivadas. Se não quisermos criar essas condições, não nos poderemos queixar de que um dia descubramos que estamos a exigir às nossas Forças Armadas missões difíceis de cumprir por falta de recursos. Se não o fizermos a tempo, outros o exigirão por nós. Depois, não nos queixemos de frustrações, desilusões, contestações ou afastamentos”

O Presidente da República a alertar, em parte, para duas realidades diferentes: a primeira, a falta de recursos das Forças Armadas para cumprirem com as missões que lhe são destinadas, em particular no quadro da NATO; a segunda realidade, o surgimento de movimentos inorgânicos de contestação, que grassam no interior das Forças Armadas e que têm igualmente reflexo na sociedade civil. Para Marcelo, sem um verdadeiro investimento na Defesa, o país não conseguirá estar à altura das suas responsabilidades e, internamente, ganhará ainda maior dimensão a contestação interna.

Fazer isto [dar mais meios às Forças Armadas] não é ser-se de direita ou de esquerda, conservador ou progressista, moderado ou radical. É ser-se patriota em liberdade e democracia. Requer um consenso nacional continuado e efetivo. Não podemos aplaudir, ou clamar mesmo, por maior envolvimento em ações externas ou querê-las ainda mais presentes nos apoios internos. Não nos habituemos ao simplismo de converter milagres em quotidiano modo de vida. Ajudemos a esses milagres”

A terminar, Marcelo a defender claramente que o investimento nas Forças Armadas era e é um imperativo nacional e que, como tal, deve ser um esforço coletivo de todos. O Presidente da República tentou também pressionar o Governo socialista a fazer mais do que esperar por milagres — para Marcelo, não basta “aplaudir” e torcer para que tudo corra bem; é preciso mais investimento e maior reconhecimento do papel das Forças Armadas, insistiu Marcelo. De resto, a frase-chave — “não nos habituemos ao simplismo de converter milagres em quotidiano modo de vida” — pode ser interpretada como um crítica não exclusiva à relação do país com as Forças Armadas mas também como uma crítica à fraca cultura de planeamento e de preparação do país.