O candidato à liderança do PS Pedro Nuno Santos desfez-se da participação que detinha na empresa de calçado do pai, a Tecmacal — como comprova o registo de interesses divulgado nas últimas horas pela Assembleia da República. O facto de a empresa ser detida pelo ministro em conjunto com o pai e outros familiares e ter realizado contratos públicos quando este estava no Governo levou a que a oposição exigisse a demissão do ministro, que este respondesse perante o Parlamento numa audição e que o Ministério Público junto do Tribunal Constitucional investigasse a ligação — tendo dado razão ao ministro.

A candidatura de Pedro Nuno Santos confirmou ao Observador que o candidato à liderança do PS “desde fevereiro deste ano que não tem qualquer participação na Tecmacal”. O antigo ministro, recorde-se, detinha 1000 ações no valor de 5 euros cada, correspondentes a 0,5% da empresa. O então governante não se desfez logo das quota para não dar força à tese de que era ilegal deter essa participação, mas decidiu fazê-lo quando a poeira assentou dois meses depois de sair do Governo. A participação — que o próprio definiu como “simbólica” — podia dar problemas desnecessários a um candidato à liderança do partido e do país. Pedro Nuno Santos, diz fonte da candidatura, fez questão de “doar ao pai” a sua participação (ao invés de cobrar o valor das ações) para não ter mais-valias da operação.

Sobre o facto de a informação só ter ficado disponível nas últimas horas, a história é outra. Pedro Nuno Santos regressou no dia 4 de julho deste ano ao Parlamento e, nos cinco meses seguintes, não foi publicado qualquer registo de interesses. Na terça-feira, um dia depois do lançamento da candidatura no Largo do Rato, o Observador questionou a secretaria-geral da Assembleia da República sobre o porquê de estar publicado o registo de todos os restantes 229 deputados, mas não de Pedro Nuno Santos. Poucas horas depois do email, o registo de interesses do antigo ministro das Infraestruturas foi publicado no site do Parlamento.

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O Estatuto dos Deputados diz que os deputados estão “obrigados à entrega da declaração única de rendimentos, património e interesses, nos termos previstos no regime do exercício de funções por titulares de cargos políticos e altos cargos públicos”. E que a “Assembleia da República assegura obrigatoriamente a publicidade no respetivo sítio da Internet dos elementos da declaração única relativos ao registo de interesses dos deputados”. Como os deputados têm de apresentar a declaração única em 60 dias, pressupõe-se que esse prazo é transposto para a publicação do registo de interesses. Ora, Pedro Nuno Santos entrou a 4 de julho e teria, na regra dos 60 dias aplicada pelo TC, até 2 de setembro para entregar o documento ao Parlamento.

Pedro Nuno Santos: “Questão processual” atrasou publicação do registo de interesses

A candidatura do deputado e candidato à liderança do PS garante que este entregou a declaração a tempo, mas admite que a demora nas respostas à Assembleia da República pode ter atrasado a publicação, como diz a lei, no “sítio da Internet”.

A candidatura de Pedro Nuno Santos explica assim que “houve uma questão processual no registo de interesses”, em que o ex-ministro “entregou [a declaração] quando voltou (há 4 meses), mas os serviços da Assembleia da República agora fazem a revisão dos documentos antes de seguirem para o Tribunal Constitucional”. Assim, explica a candidatura, os serviços colocaram a Pedro Nuno Santos “algumas questões por email, que ele só agora respondeu, daí o atraso na publicação.”

Assim, terá sido o email do Observador que levou os serviços do Parlamento a pressionarem Pedro Nuno Santos a responder — o que este fez. Os serviços parlamentares, que até aqui não tinham publicado esse registo de interesses, fizeram-no em poucas horas. Esse mesmo registo de interesses, agora publicado, já dá conta de que o deputado não estava em exclusividade e que, em outubro, recebeu pelo programa de comentário que tinha às segundas-feiras na SIC Notícias.

O Observador questionou o Parlamento sobre a responsabilidade dos serviços no atraso e as respostas vieram da presidente da Comissão de Transparência, Alexandra Leitão (que é também a coordenadora de moção de Pedro Nuno Santos ao Congresso), que garantiu que “Pedro Nuno Santos submeteu o seu registo de interesses à Assembleia da República no dia 19 de setembro de 2023”.

Alexandra Leitão explica ainda que, “de acordo com a metodologia adotada na Comissão de Transparência, o mesmo foi distribuído para apreciação pelo Grupo de Trabalho do Registo de Interesses e, no dia 4 de outubro, “verificou-se que Pedro Nuno Santos não indicara no campo relativo às atividades exercidas nos últimos 3 anos as funções de Ministro das Infraestruturas, solicitando-se o preenchimento destas funções ministeriais que se encontravam em falta.” Depois disso, reconhece a AR, só “a 8 de novembro foi enviado email ao senhor deputado para que procedesse a essa inclusão.”

Após esse passo, garante a presidente da Comissão da Transparência, o deputado “cumpriu o solicitado pelo Grupo de Trabalho, e verificou-se a inclusão do elemento em falta (membro do Governo), tendo este processo ficado concluído ontem, dia 14 de novembro, na sequência do que se procedeu à  imediata publicitação do registo de interesses do senhor deputado Pedro Nuno Santos”.

O caso Tecmacal: o desgaste e a salvação à boleia de Abrunhosa

Mesmo que não tenham existido consequências, há quem no círculo de Pedro Nuno Santos tenha admitido que o caso da participação na empresa Tecmacal o deixou mais agastado do que o próprio caso da indemnização a Alexandra Reis — que conduziu à sua demissão.

O caso começou quando o Observador noticiou que a Tecmacal — empresa detida, em conjunto, pelo ministro das Infraestruturas e da Habitação, Pedro Nuno Santos, pelo pai e por outros familiares — beneficiou de um contrato público por ajuste direto, o que constituiria uma incompatibilidade de acordo com a lei que estabelece o regime do exercício de funções por titulares de cargos políticos e altos cargos públicos. De acordo com a lei, a sanção prevista na lei para os casos em que um titular de cargo político detém mais de 10% de uma empresa em conjunto com um “ascendente” e faz um contrato público seria a demissão.

Na altura, o ministério de Pedro Nuno Santos defendia-se, em resposta ao Observador, a dizer que que não existia nenhuma incompatibilidade, escudando-se num parecer da Procuradoria-Geral da República. O parecer em causa tinha, no entanto, sido feito em relação à anterior lei de incompatibilidades e impedimentos (de 1993). Mais: distinguia os casos em que as empresas são dos titulares dos cargos e aquelas em que as sociedades são apenas propriedade de familiares.

O parecer em causa não abordava a situação verificada no caso em que o titular do cargo e o familiar têm ambos participações: Pedro Nuno Santos só tinha 0,5% da empresa, mas, em conjunto com o pai — que tem 44% — e outros familiares ultrapassava em muito os 10% de limite apontados na lei.

Três meses antes desse momento, no dia 27 de junho de 2022, o Centro de Formação Profissional da Indústria de Calçado — uma entidade pública reclassificada com sede em São João da Madeira, concelho de origem de Pedro Nuno Santos e de onde a família é originária — fez um ajuste direto com a Tecmacal no valor de 19.110,00 euros para compra de equipamentos no setor da marroquinaria. Era nesse contrato que residia todo o problema.

Ouvido dias depois no Parlamento sobre o assunto, Pedro Nuno Santos mantinha a tese de que a situação não constituía uma ilegalidade e assumia que as dúvidas sobre a interpretação da lei eram “legítimas” e que acataria o que o Tribunal Constitucional decidisse — mesmo que a sanção fosse a sua saída.

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Já em março deste ano uma primeira posição do Ministério Público junto do Tribunal Constitucional foi favorável ao ministro, mas sem recorrer ao parecer invocado pelo ministro. Essa promoção do Ministério Público optou por utilizar como argumento um parecer que a PGR tinha emitido após um pedido de Ana Abrunhosa para que esclarecesse se o marido podia ou não concorrer a fundos comunitários. António Costa admitiria que foi ele próprio a sugerir à ministra que pedisse esse parecer à PGR.

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Voltando a Pedro Nuno Santos: o Ministério Público junto do Tribunal Constitucional considerou que o ministro não incorreu em nenhuma situação de “impedimento legal” quando a empresa que detinha conjuntamente com o pai fez contratos públicos. Na promoção enviada ao juiz-presidente, o procurador-geral adjunto João Possante dava como provado que o ex-ministro era dono de 0,5% da empresa, que houve os contratos públicos noticiados, mas utilizava o parecer realizado pela PGR a pedido de Ana Abrunhosa — que diz que a incompatibilidade só se verificaria se a entidade adjudicante fosse tutelada por Pedro Nuno Santos. E não era.

O argumento é o mesmo utilizado por Pedro Nuno Santos na altura — de que a incompatibilidade só se verificaria se a adjudicação fosse na área que tutela –, mas o documento em que se baseia é diferente. O então ministro da Habitação e das Infraestruturas citava o parecer nº25/2019, de setembro de 2019, enquanto o Ministério Público junto do Tribunal Constitucional teve como suporte um parecer pedido especificamente pela ministra da Coesão para uma situação diferente: o marido poder concorrer a fundos comunitários. Esse parecer é de maio de 2021, mas só foi divulgado publicamente pela PGR a 4 de outubro de 2022, poucos dias depois de o Observador ter noticiado o caso que envolvia Ana Abrunhosa e o marido.

Mesmo que o Tribunal Constitucional venha a decidir, em acórdão, por uma decisão diferente, não haverá consequências para Pedro Nuno Santos. Como a consequência era a perda de mandato à altura dos factos e esse mandato (de ministro das Infraestruturas já não existe), nada acontecerá. Foi isso que aconteceu, por exemplo, com Pedro Siza Vieira (com o caso da imobiliária) e João Paulo Rebelo (no caso dos mirtilos). Além disso, neste momento, a posição do Ministério Público que existe é favorável à versão do agora candidato à liderança do PS.

Artigo atualizado às 23h38 com a informação, disponibilizada após a saída do artigo pela candidatura, de que Pedro Nuno Santos doou a participação que tinha na empresa Tecmacal ao pai