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epa09865100 Candidate for Popular Party's President Alberto Nunez Feijoo (C) casts his ballot during a voting session held during the second day of 20th Popular Party's National Convention in Seville, Spain, 02 April 2022. Convention delegates are to elect Nunez Feijoo, current President of the region of Galicia, to replace Pablo Casado after Casado lost support from members of the party after a confrontation with Madrid's regional President Isabel Diaz Ayuso.  EPA/Julio Munoz
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"O desafio que se coloca a Alberto Núñez Feijóo é o de liderar o espaço da direita e a partir de aí conquistar o centro"

Julio Munoz/EPA

"O desafio que se coloca a Alberto Núñez Feijóo é o de liderar o espaço da direita e a partir de aí conquistar o centro"

Julio Munoz/EPA

Radicais, tradicionais e dilemas. A encruzilhada da direita espanhola

Neste ensaio sobre a direita espanhola, o primeiro de três sobre a vida política em Espanha, procuram-se os factos e as dinâmicas que definiram o estado actual da direita. Ensaio de Diogo Noivo.

Eleição após eleição, salvo raríssimas excepções, a esquerda espanhola recua nas urnas. No entanto, a crise vive-se à direita. O Partido Popular (PP) não encontrou ainda o seu espaço na Espanha pós-bipartidarismo. Enfrenta uma esquerda hegemónica à qual não consegue responder com eficácia. Pela direita, sofre o acosso do radicalismo populista do Vox. Os populares oscilam entre o centro e a direita, mostrando-se igualmente disponíveis para apoios pontuais ao centro-esquerda socialista. A recente demissão de Pablo Casado é fruto de vários erros autoinfligidos, entre os quais esta procura errática por um lugar próprio.

Neste ensaio sobre a direita espanhola, o primeiro de três sobre a vida política no país vizinho, procuram-se os factos e as dinâmicas que definiram o estado actual do lado direito do espectro partidário, em particular a ascensão do Vox, que o transformou por completo, e a forma como o PP tenta manter a custo a sua relevância. A alternância – e a alternativa – de poder em Espanha depende da capacidade da direita para se reconfigurar.

A ascensão do Vox

Durante anos, o Vox foi um partido sem futuro. Apresentou-se pela primeira vez ao eleitorado nas europeias de 2014, um ano após a sua fundação, obtendo 1,56% dos votos. Embora não ficasse longe de eleger um eurodeputado, foi um resultado bastante modesto, incapaz de perturbar o sistema partidário. Comparava mal com os 8% e 5 eurodeputados do Podemos, partido de esquerda radical populista criado nesse mesmo ano.

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As eleições seguintes indiciavam que o pico de crescimento fora já atingido: nas legislativas de 2015, conseguiu 0,23% dos votos, número raquítico que desceu ligeiramente para 0,20% no escrutínio nacional de 2016. Entretanto, aparecera mais um partido político com assinalável êxito eleitoral, o Ciudadanos, de centro-liberal. Estava passada a certidão de óbito do bipartidarismo espanhol com as assinaturas da esquerda radical e dos liberais, havia uma “nova política” no país, mas o Vox permanecia irrelevante.

Chegadas as eleições autonómicas andaluzas, celebradas em Dezembro de 2018, as expectativas eram baixas. Região maioritariamente de esquerda, governada pelos socialistas do PSOE há quase 40 anos, a Andaluzia era, em tese, terreno pouco propício à ascensão da nova direita radical. Porém, à medida que a data da eleição se aproximava, as sondagens mais favoráveis apontavam com reservas e cepticismo para 5 deputados no parlamento autonómico, havendo uns poucos estudos de opinião a arriscarem 6.

"As eleições andaluzas de 2018 espelharam o choque incitado pelo ambiente de discórdia e de exclusão nascido na Catalunha. A dinâmica mais simples resume-se a um movimento pendular: ao ímpeto separatista desenhado para polarizar a sociedade respondeu-se com um partido polarizador que faz da união de Espanha a sua principal bandeira."

Contados os votos, o Vox conseguiu 12 deputados numa câmara composta por 109. O dobro das melhores previsões. Apesar de mais votado, o PSOE perdeu o poder na região, pois a aliança entre PP e Ciudadanos, respaldada no parlamento regional pela nova direita radical, foi suficiente para formar uma maioria de governo. “Terremoto” foi a palavra mais usada na imprensa espanhola para descrever os resultados.

A esquerda radical explicou o desfecho eleitoral com o aparecimento de 400.000 fascistas na Andaluzia. Além de inverosímil, a tese não sossegou os ânimos — os eleitores andaluzes, como a maior parte dos eleitores em qualquer parte do mundo, não gostam de paternalismo e menos ainda de insultos. A explicação está, portanto, noutro lado.

A política não se presta a relações de causalidade simples, mas a evolução eleitoral da ultraderecha denota que algo de importante aconteceu entre 2016 e 2018. O facto de as autonómicas andaluzas serem as primeiras eleições celebradas após o golpe separatista na Catalunha esclarece muito do sucedido.

A 1 de Outubro de 2017, o nacionalismo independentista catalão promoveu um referendo soberanista ilegal, sem as mais elementares garantias de lisura processual. Foi o ponto alto de um processo em curso há anos, um desafio directo às instituições democráticas. Resumindo bastante, violou-se com dolo a Constituição espanhola, o Estatuto de Autonomia da Catalunha, decisões de vários tribunais, recomendações da assessoria jurídica do parlamento catalão, as normas desse mesmo parlamento, tudo isto com recurso indevido a fundos públicos e promovido a partir das instituições — importa lembrar que o nacionalismo autóctone governa a Catalunha de forma quase ininterrupta desde que há eleições livres em Espanha. Atropelaram-se de forma deliberada os direitos, liberdades e garantias dos catalães, em particular daqueles que não apoiam a independência, mais de metade da população.

Foi o maior ataque à ordem constitucional, pelo menos desde que, a 23 de Fevereiro de 1981, um grupo de Guardas Civis irrompeu aos tiros no Congresso dos Deputados para inverter o processo de transição democrática. Intelectuais como o escritor Javier Cercas e o ensaísta Daniel Gascón caracterizaram o sucedido como um “golpe” ou “autogolpe de Estado” assente em esquemas populistas, em tudo semelhantes ao Brexit ou à vitória de Donald Trump, com propaganda destinada a hiperinflacionar emoções para cavar um fosso maniqueísta que separasse bons e maus. Para Fernando Savater, tratou-se de “uma agressão deliberada, calculada e coordenada contra as instituições democraticamente vigentes” por parte de um nacionalismo apostado em “semear a discórdia” e alcançar a “exclusão prática de quem não comunga com o dogma sacrossanto do povo catalão”. Com bastante acerto, o politólogo David Jiménez Torres viu na intentona um ponto de inflexão na história recente de Espanha, equiparável ao trauma colectivo de 1898, data que marcou o fim do Império, cujos efeitos seriam profundos e duradouros.

As eleições andaluzas de 2018 espelharam o choque incitado pelo ambiente de discórdia e de exclusão nascido na Catalunha. A dinâmica mais simples resume-se a um movimento pendular: ao ímpeto separatista desenhado para polarizar a sociedade respondeu-se com um partido polarizador que faz da união de Espanha a sua principal bandeira. Afinal, como escreveu Mark Lilla, quando se apresenta um assunto em termos estritamente identitários convida-se o adversário a responder na mesma moeda. O ressentimento populista e nacionalista catalão acicatou o ressentimento populista e nacionalista espanhol.

Jordi Pujol, pai do nacionalismo catalão actual, liderou o governo regional entre 1980 e 2004

JOSE SENA GOULAO/LUSA

A análise à história social andaluza e catalã ajuda a compreender melhor esta dinâmica. Em vésperas do século XXI, eram quase 800.000 os andaluzes residentes na Catalunha. Durante décadas, à semelhança dos movimentos migratórios de zonas rurais para zonas urbanas verificados em toda a Europa, foram milhares os que abandonaram as suas casas com destino à Catalunha em busca de sustento, fugindo com frequência de vidas de penúria absoluta. Entre os anos 1950 e 1970, dedicaram-se sobretudo a trabalhos não-qualificados, a força braçal que edificou muito do que é hoje a economia catalã.

A recepção nem sempre foi a melhor: tratados como ‘colonos’ e ‘estrangeiros’, eram apelidados de charnegos, termo despectivo que tinha implícitas características nada abonatórias, como a falta de inteligência e a preguiça. Ainda que a xenofobia não fosse um traço dominante no catalanismo da época, Jordi Pujol, pai do nacionalismo catalão actual, que liderou o governo regional entre 1980 e 2004, escreveu em 1958 — e reeditou em 1976 — as seguintes palavras:

“O homem andaluz não é um homem coerente, é um homem anárquico. (…) É geralmente um homem pouco feito, um homem que passa fome há séculos e que vive num estado de ignorância e de miséria cultural, mental e espiritual. (…) Com frequência, dá provas de ser feito de excelente madeira humana, mas à primeira vista constitui a mostra do menor valor social e espiritual de Espanha. Já o disse antes: é um homem destruído e anárquico. Se pela força dos números chegasse a dominar, sem ter superado a perplexidade própria, destruiria a Catalunha. Introduziria nela a sua mentalidade anárquica e pobríssima; ou seja, a sua falta de mentalidade”.

O golpe ensaiado em 2017 fez-se de formas exacerbadas e virulentas deste discurso, não apenas contra os andaluzes, mas contra o conjunto de Espanha. A xenofobia, por vezes derivada em supremacia étnica, assumiu um papel preponderante no espaço público nacionalista. A título de exemplo, Inés Arrimadas, de origem andaluza, à época líder regional do partido de centro-liberal Ciudadanos, ouviu com cadência semanal variações da muleta proverbial de todas as xenofobias: “Vai para a tua terra.” Ouviu-a nas ruas, proferida por anónimos, mas também de membros da elite separatista, como Núria de Gispert, antiga presidente do parlamento autonómico catalão.

Aliado a mecanismos de acosso — vandalização de lojas, residências e viaturas de não-nacionalistas — e a políticas de exclusão implementadas há anos pelas instituições catalãs, este discurso criou uma onda intensa de estupor e repulsa que reverberou em todo o território espanhol de maneira transversal ao eixo esquerda-direita. De resto, na Catalunha como no conjunto de Espanha, a sociedade esqueceu por momentos as clivagens esquerda-direita, ou progressismo-conservadorismo, para se reconfigurar numa lógica de bandos contra e a favor da união de Espanha.

"O mote Espanya ens roba, ou "Espanha rouba-nos", agitou-se para legitimar as reivindicações separatistas. Argumentou-se que a Catalunha é espoliada da sua riqueza para pagar medidas de estímulo económico e prestações sociais nas zonas mais pobres do país."

Ao agravo suscitado pela narrativa étnica juntaram-se injurias de cariz económico. O mote Espanya ens roba, ou “Espanha rouba-nos”, agitou-se para legitimar as reivindicações separatistas. Argumentou-se que a Catalunha é espoliada da sua riqueza para pagar medidas de estímulo económico e prestações sociais nas zonas mais pobres do país. Dito de outro modo, Espanya ens roba equivale a Andaluzia ens roba. A causa do ultraje é simples: a Catalunha é uma das regiões mais prósperas de Espanha e das que mais investimento público recebe do Orçamento de Estado, enquanto a Andaluzia é das mais pobres e carentes de infraestruturas. Além do mais, muitos não esqueceram que parte do sucesso económico catalão se deve à força de trabalho andaluza.

A cabeça de lista socialista Suzana Díaz, que tentava a reeleição, percebeu tarde qual fora o tema de campanha, de tal forma que, conhecidos os resultados, se mostrou arrependida por não ter falado mais da Catalunha. Mesmo que o tivesse feito, o esforço seria provavelmente inglório: como quase sempre acontece em consulados longos, o PSOE local estava pejado de casos de corrupção e de tráfico de influências que retratavam bem o ambiente clientelar dominante, motivo de indignação adicional para os eleitores andaluzes.

O fim da imunidade

Com ânimo punitivo, a nova direita radical apresentou-se em 2018 com o propósito de acabar com a elevada descentralização territorial do país, retirando os poderes e as atribuições conferidos pela Constituição às comunidades autónomas para os dissolver no Estado central. Embora definida em termos gerais, esta política destinou-se — e destina-se — a castigar a Catalunha. Afinal, foram esses poderes e atribuições que ao longo de décadas permitiram ao nacionalismo catalão usar instituições públicas para ‘nacionalizar’ a sociedade – através do ensino, dos órgãos de comunicação social regionais, do acesso a postos de trabalho na administração regional, entre outros — e consolidar os alicerces da separação ensaiada em 2017.

Talvez seja este o aspecto mais trágico, porque mais profundo, da ascensão do Vox: aceita a premissa separatista segundo a qual a Catalunha é uma sociedade maioritariamente independentista. Ou, dito de forma mitigada, mas igualmente falsa, que a Catalunha se divide entre separatistas e espanhóis. Há décadas que as estirpes mais virulentas do nacionalismo catalão se esforçam por assumir o papel de vanguarda de um povo étnico unido em torno à independência, o que não é — nem nunca foi — verdade, e o Vox valida esta ambição ao recorrer a dicotomias simples e radicais para abordar uma sociedade com opiniões muito matizadas sobre o estatuto territorial. Como é óbvio, isto redunda em maior polarização política e emocional. Aprofundam-se trincheiras e, portanto, dilui-se o pluralismo que sempre caracterizou a sociedade catalã. Isto é, o Vox agrava o problema que se propõe resolver. A leitura cínica dos factos desfaz esta aparente incongruência: a nova direita radical deve grande parte da sua força eleitoral ao golpismo separatista, razão pela qual lhe convém que este se mantenha pelo menos latente.

Uma vez que a importância dada à unidade de Espanha é transversal ao eixo esquerda-direita, a passagem do contexto regional para o palco nacional fez-se com base na mesma lógica: a sobre-exploração do radicalismo incubado pelo separatismo catalão.

"Percebe-se que alguns eleitores, mesmo não subscrevendo o ideário nem o programa do Vox, vejam em Abascal alguém com coragem política e física para travar pulsões separatistas"

AFP via Getty Images

Para tal contribuíram as ideias e os programas políticos do Vox, mas também o passado do seu presidente, Santiago Abascal. Durante boa parte das décadas de 1980 e 1990, PP e PSOE não conseguiram candidatar militantes a vários círculos eleitorais no País Basco, pois aqueles que se candidatavam e as suas famílias eram ameaçados, ou mesmo assassinados, pela organização terrorista ETA. Sem surpresa, os dois principais partidos depararam-se com enormes dificuldades em encontrar gente disponível para representar as suas cores. Isto facilitou a chegada do Herri Batasuna, braço-partidário da ETA, aos municípios e até ao parlamento regional basco, dando-lhe acesso a instituições e verbas públicas para apoiar os movimentos políticos e sociais que sustentavam o terrorismo. É neste contexto adverso que, em 1999, um Santiago Abascal com 23 anos de idade se apresenta pelos populares ao município de Llodio, na província basca de Álava. Não se tratou de um gesto inconsciente, movido por repentismos juvenis, uma vez que pertence à terceira geração da família Abascal intimidada e agredida pela ETA. Cresceu com escolta armada permanente, viveu com o pai e o avô ameaçados, viu a loja de bairro da família vandalizada, habituou-se a ir aos funerais de amigos e de colegas de partido. Tinha uma noção real do perigo, que sentiu diariamente na pele após ter sido eleito vereador em Llodio e, mais tarde, líder da ‘jota’ do PP no País Basco. Regressando ao tempo presente, percebe-se que alguns eleitores, mesmo não subscrevendo o ideário nem o programa do Vox, vejam em Abascal alguém com coragem política e física para travar pulsões separatistas.

A par da oposição ao separatismo, o combate à esquerda mais extrema constitui a outra via preferencial de afirmação política e mobilização eleitoral. O aparecimento em 2014 do Podemos introduziu em Espanha um discurso novo, de matriz revolucionária, adverso ao quadro institucional vigente, com uma agenda pós-modernista de transformação da sociedade, muito acintosa com usos e costumes. Consciente disto, logo em 2018 o Vox aliou-se a caçadores, agricultores, aficionados e profissionais das corridas de touros na Andaluzia, segmentos sociais com peso eleitoral usualmente vilipendiados pelo Podemos. Fez o mesmo no conjunto do território espanhol: detectar, explorar e capitalizar sentimentos de alienação e injúria provocados pela esquerda radical. Apelou aos trabalhadores esquecidos pela globalização — ou aos que se sentem como tal —, aos pequenos empresários, à classe média estagnada, aos conservadores de esquerda e de direita, às classes endinheiradas receosas de um esbulho fiscal. Apanhou o que o Podemos cultivou e o PP e o PSOE não souberam proteger.

Também aqui o inimigo escolhido é um oposto simétrico. Vox e Podemos são consequência — e causa — da insatisfação com o funcionamento da democracia e da desconfiança face aos partidos tradicionais. Ambos falam em nome de um povo genuíno oprimido por elites pérfidas. Porventura apenas se distinguem nas estridências anti-sistema, muito mais salientes no Podemos, e na concepção étnica de nação, própria do Vox.

Onde o Podemos propõe revolução, o Vox defende quietismo refratário; quando o Podemos se bate por progressismo, o Vox vinca tradições nativistas; sempre que o Podemos ataca Espanha ecoando versões recauchutadas da Lenda Negra, o Vox levanta-se em prol de um orgulho nacional mitificado. São rostos diferentes do mesmo radicalismo cínico.

Assim, a nova direita radical espanhola constitui em grande medida uma reação. Primeiro na Andaluzia e depois no resto de Espanha, soube usar em benefício próprio a indignação gerada pelo golpismo catalão e pela esquerda radical populista. Insere-se numa tradição da direita conservadora espanhola que remonta pelo menos ao século XVII, tem uma estrutura doutrinária sólida, recrutou quadros capazes, mas o seu crescimento deve-se ao confronto directo mediante tácticas de antagonismo mimético, a um reportório discursivo e programático que quase se limita a propor o contrário do que é defendido pelos seus adversários.

A estratégia deu frutos: nas legislativas de Abril de 2019, o Vox ascendeu aos 10%, estreando-se no Congresso dos Deputados com 24 mandatos; os espanhóis foram novamente chamados às urnas e, em Novembro desse mesmo ano, o Vox sobe para os 15%, que lhe valeram 52 deputados. É hoje a terceira força política nacional.

"Esfumou-se a ideia segundo a qual Espanha, devido ao seu passado de autoritarismo, estava imune à irrupção da nova direita radical populista."

Tudo isto se tornou mais fácil a partir de 2020, quando o PSOE se coligou com o Podemos para formar um governo respaldado no parlamento por separatistas catalães e bascos. Este arranjo de poder rompeu os consensos estabelecidos durante a transição democrática espanhola, pois os socialistas rodearam-se de forças políticas que, com uma franqueza espantosa, pretendem acabar com a unidade de Espanha e com a Constituição. O temor pela desagregação do país, alerta difundido com manifesto exagero pelo Vox, tornou-se tangível para o cidadão comum. De repente, o que soava a delírio reacionário passou a ter sustentação.

Esfumou-se a ideia segundo a qual Espanha, devido ao seu passado de autoritarismo, estava imune à irrupção da nova direita radical populista. Contudo, visto de outro prisma, o aparecimento do Vox reveste-se de tonalidades mais normais: o bipartidarismo espanhol, cujo funcionamento assentava na alternância entre PSOE e PP, acabou graças ao nascimento do Podemos, à esquerda, e do Ciudadanos, no centro-liberal; para que a alteração da arena política ficasse completa, faltava preencher o espaço no extremo-direito.

Desde então, a esquerda radical e os separatismos têm usado o Vox como espantalho “fascista” para reter votos. Já a direita tradicional perdeu o norte.

Populares sem rumo

Dizia-se que Mariano Rajoy era o único animal no planeta capaz de avançar sem se mover. A piada radica em estereótipos que advêm da origem galega do antigo Presidente de Governo: os galegos nunca se comprometem, a resposta mais frequente que dão a qualquer pergunta é “depende”, e quando vão a meio de uma escada nunca sabemos se estão a subir ou a descer.

A serenidade pragmática de Rajoy revelou-se útil para a recuperação económica de Espanha no pós-crise financeira, para a união do partido e para ganhar eleições. Contudo, essa placidez gerou celeuma dentro e fora do PP, pois foi interpretada como letárgica no combate aos inúmeros casos de corrupção que fustigavam as fileiras populares e, sobretudo, na reacção à conjura separatista catalã. Aos olhos de muitos, apesar de o golpe independentista se desenhar à vista de todos pelo menos desde 2015, Rajoy esperou sempre para ver, reagindo tarde e tíbio. Embora possa ser injusta, a percepção de liderança apática e imobilista foi reforçada pelo próprio quando não compareceu no parlamento para discutir a moção de censura que derrubaria o seu governo e instalaria o PSOE no Palácio da Moncloa.

Pablo Casado surge como sucessor de terceira via, a solução de compromisso entre Soraya Sáenz de Santamaría e María Dolores de Cospedal, as duas candidatas à presidência cuja ferocidade ameaçava a paz popular. Representava também a renovação geracional que cortava amarras com os barões de outros tempos, muitos a braços com a justiça.

"A serenidade pragmática de Rajoy revelou-se útil para a recuperação económica de Espanha no pós-crise financeira, para a união do partido e para ganhar eleições. Contudo, essa placidez gerou celeuma"

MARISCAL/EPA

Historiador, professor universitário e colunista na imprensa espanhola, Joseba Louzao relembrou-me em conversa que nem tudo estava a favor do novo presidente, eleito num momento crítico para o PP: “O trauma provocado pela moção de censura contra Rajoy, a corrupção, o crescimento do Vox pela direita e a ameaça do Ciudadanos no flanco liberal moderado. Casado sabia que a sua liderança seria contestada e frágil.” Pior quando se está na oposição, sem poder para distribuir.

A par disto, entraram em jogo as manigâncias do aparelho partidário. Movidos por cálculos de poder local, vários barões alimentaram críticas. “A diversidade de tendências dentro do partido desempenha um papel essencial, onde o ideológico e o regional se misturam e se confundem”, diz-me Louzao. “Esse perfil regionalista pode ser atraente, ainda mais no contexto de crise económica que atravessamos, sobretudo naqueles locais onde o Partido Popular está há anos em coma induzido, como a Catalunha e o País Basco.” Casado tentou “afiançar a liderança fazendo uso de um poder sem muita autoridade”.

Talvez a autoridade não escasseasse tanto se se tivesse definido. A um só tempo, criticou o Ciudadanos enquanto se apoiava nos liberais para governar regiões autónomas. Deu também duras lições de democracia ao Vox, embora sem nunca traçar uma fronteira intransponível. Em 2020, ficou célebre em Portugal – sobretudo à direita – um discurso proferido por Casado no parlamento contra o Vox, uma intervenção aguerrida e bem pensada que salientava as diferenças profundas entre os dois partidos. Para muitos, este era o exemplo a seguir deste lado da fronteira. Acontece, porém, que aquele foi um discurso sintomático da fragilidade popular: o Vox apresentava uma moção de censura ao governo de esquerda, ocupando de maneira convincente o lugar de verdadeiro líder da oposição. Por outras palavras, a moção destinava-se ao Executivo, mas a censura acertava em cheio no PP. O discurso de Casado não foi um ataque valente. Foi uma defesa desesperada.

Mais do que decidir mal em temas essenciais para o partido, não decidiu. E foi incapaz de encontrar um registo claro e eficaz de oposição ao governo PSOE-Podemos, debilidade aproveitada com grande satisfação pela direita radical populista. A liderança errática de Casado permitiu ao Vox acusá-lo de derechita cobarde e afirmar-se como derecha sin complejos.

O contraste com a companheira de partido Isabel Díaz Ayuso foi absoluto. A presidente da comunidade de Madrid não perdeu tempo a debater as diferenças entre a nova direita e a direita tradicional. Mostrou-se ao eleitorado madrileno como candidata assumidamente de direita, firme nas suas convicções, a partir das quais se lançou à conquista do centro. Ofereceu soluções claras aos problemas da classe média e da economia local, combateu com veemência as derivas identitárias e autocráticas da esquerda radical e dos separatismos, falou para os eleitorados tradicionais da esquerda sem alienar os da direita, bateu-se pelo quadro constitucional desde uma perspectiva democrata liberal. Entendeu que a direita, como a esquerda, é um espaço plural, razão pela qual não enjeitou votos, viessem eles de onde viessem. Isso sim, sem abrir mão das traves-mestras do seu programa político. E ganhou as eleições. Não conseguiu uma maioria absoluta formal, mas teve-a na prática: 65 deputados na assembleia de Madrid, mais 7 do que os obtidos pelo conjunto da esquerda.

"O Vox sabe o que quer, a esquerda está no Executivo, mas os populares ainda não aprenderam a viver num cenário pós-bipartidarismo. A aplicação de um cordão sanitário ao Vox figura no topo da lista de dilemas."

É certo que na pugna eleitoral em Madrid se aplicou a lição de Ortega y Gasset sobre a importância das circunstâncias. Díaz Ayuso foi convertida em inimigo público número um pelo governo PSOE-Podemos, circunstância que usou com mestria, transformando o período de campanha num embate directo com o Executivo espanhol. Encontrou um discurso eficaz de oposição nacional, debilitou a coligação de esquerda — Pablo Iglesias, fundador e líder do Podemos, abandonou a política partidária na sequência da derrota sofrida nas eleições autonómicas de Madrid —, donde começou a fazer sombra ao presidente do PP.

Casado decidiu então enveredar por jogadas de alto risco. Antecipou a ida às urnas em Castela e Leão, convencido de que teria a maioria absoluta necessária para relançar a sua liderança. Mas não teve. Pior, enfraqueceu o Ciudadanos, o seu parceiro de governo na região, e ficou dependente do Vox, que rapidamente exigiu entrar pela primeira vez num governo local. Ao não obter a muito necessitada vitória no plano regional, procurou eliminar a potencial concorrência: a direcção nacional do PP divulgou à imprensa um caso de alegada corrupção e tráfico de influências que envolvia Isabel Díaz Ayuso. Mas também aqui a inabilidade se revelou nefasta. Casado acabou por se demitir da presidência do PP.

Alberto Núñez Feijóo, presidente da Galiza, é o senhor que se segue. Aclamado ainda antes da demissão formal de Casado, constitui um caso paradigmático da confusão entre o ideológico e o regional sinalizada por Joseba Louzao. De facto, neste momento de crise, o perfil regionalista seduz. Foi eleito no dia 1 de Abril, no centro de conferências de Sevilha, em congresso pejado de simbolismo: foi a 1 de Abril de 1990, em congresso celebrado no mesmo recinto, que o histórico Manuel Fraga passou o testemunho a um jovem José María Aznar. Ali nasceu na prática o PP e inaugurou-se um período de êxito político por ora sem paralelo. Os rituais e os símbolos são importantes e Feijóo parece querer refundar o partido. Falta um rumo claro.

O Vox sabe o que quer, a esquerda está no Executivo, mas os populares ainda não aprenderam a viver num cenário pós-bipartidarismo. A aplicação de um cordão sanitário ao Vox figura no topo da lista de dilemas. Pressionados pela esquerda, mas sabedores de que o regresso ao poder dificilmente se fará sem a direita radical, os populares terão de se definir.

A encruzilhada dos cordões sanitários

Louzao resumiu-me o assunto com uma clareza imbatível: “A principal dificuldade dos cordões sanitários é saber quais os valores que se querem defender. E aqui começam os problemas. Onde se traça a linha?” Podemos aplicar um cordão sanitário a todos os partidos que ambicionam romper os direitos, valores e liberdades constitucionais, mas Espanha não é uma democracia militante. Por outro lado, a vigorar este princípio, o actual arranjo governativo de esquerda fica completamente inviabilizado.

Primeiro, o Podemos, que privilegia as ruas em detrimento das instituições, e que se refere à democracia constitucional com o termo despectivo “regime de 78”, está no governo. Segundo, a Esquerda Republicana da Catalunha (ERC), partido separatista com evidentes laivos xenófobos e, portanto, contrário à Constituição, foi elevado à categoria de “direcção de Estado” dado o apoio parlamentar que presta à coligação PSOE-Podemos. Esta mesma ERC detém o poder na Catalunha, apesar de incumprir sentenças judiciais e de pôr em prática medidas de segregação social a partir das instituições. Por fim, o basco EH Bildu, outro partido separatista promovido a “direcção de Estado”, inscreve-se numa longa tradição política de xenofobia e, mais grave, continua a glorificar os atentados perpetrados pela ETA, organização terrorista responsável por mais de 845 homicídios, 95% dos quais cometidos em período democrático. Aos olhos do EH Bildu, os etarras condenados a pena de prisão — não poucas vezes por múltiplos homicídios — são “presos políticos”.

Dito de outro modo, não há nenhuma razão atendível para impor um cordão sanitário ao Vox. Ou, se se preferir, as razões que recomendam o confinamento da direita radical são as mesmas — as mesmíssimas — que aconselham manter Podemos, ERC e EH Bildu longe das instituições. Aberto o precedente à esquerda, será difícil evitá-lo à direita. “O PSOE não pode pedir ao PP que se afaste do Vox quando tem acordos políticos firmados com estes partidos”, acrescenta Joseba Louzao. “Julgo que neste jogo todos perdemos, especialmente a democracia espanhola. A polarização e a tensão ajudam as propostas iliberais, tanto à esquerda como à direita. E não devemos esquecer que o primeiro cordão sanitário em Espanha se estabeleceu contra o Partido Popular na Catalunha, com o Pacto de Tinell [acordo entre nacionalistas catalães e o socialismo regional], quando a direita tradicional era tratada como fascista ou extremista”.

"O desafio que se coloca a Alberto Núñez Feijóo é o de liderar o espaço da direita e a partir de aí conquistar o centro. Não poderá enredar-se nos debates estéreis sobre a direita dura e a direita branda, que apenas servem os seus adversários."

Na prática, a actual proposta de isolamento do Vox redunda também na exclusão do PP da arena política democrática. A queda a pique do Ciudadanos e o aparecimento de partidos locais pujantes, como o Teruel Existe e o Soria Ya, deixam a velha direita sem grandes alternativas. Ademais, se o centro-esquerda se pode aliar a partidos cuja essência e programas são frontalmente contrários à Constituição, mas essa mesma possibilidade está vedada aos populares, então a esquerda governará para sempre. O fim de alternância — e de alternativas — não será certamente positivo para a saúde democrática de Espanha.

O regresso do PSOE aos acordos e equilíbrios saídos da transição democrática resolveria o problema dos extremos à direita e à esquerda. Contudo, os socialistas estão confortáveis com o actual estado de coisas. Mostraram-no com nitidez aquando das recentes eleições em Castela e Leão. Sendo o PP o mais votado, poderia governar sem recorrer ao Vox com a abstenção do PSOE, mas os socialistas rejeitaram essa hipótese, manietando assim o conjunto da direita: se governar com o Vox, o PP será alvo de todos os opróbrios; se recusar o apoio de Abascal, fica na oposição. Isto enquanto o PSOE se encontra aliado a forças políticas tão ou mais censuráveis.

Assim, o desafio que se coloca a Alberto Núñez Feijóo é o de liderar o espaço da direita e a partir de aí conquistar o centro. Não poderá enredar-se nos debates estéreis sobre a direita dura e a direita branda, que apenas servem os seus adversários. E, dado o cenário político partidário do país, terá forçosamente de estabelecer os termos da sua relação com o Vox. É um caminho estreito e minado. Por muito paradoxal que possa soar, talvez seja a única maneira de recentrar a vida política espanhola. Como escreveu o colunista Santiago González, sem simetria não há centro.

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