António Costa foi questionado, no último debate quinzenal, pela coordenadora do Bloco de Esquerda sobre a distribuição de dividendos por parte de empresas no contexto do impacto económico do Covid-19 e no âmbito do programa de apoios dados pelo Estado. Catarina Martins quis saber qual era a posição do Estado sobre a proposta de pagamento de mais de 300 milhões de euros aos acionistas feita pela administração da Galp, uma empresa na qual o Estado tem 7,5% do capital.

O primeiro-ministro sublinhou que as linhas de crédito, até 6,2 mil milhões de euros, foram uma das medidas adotadas para assegurar melhores condições de liquidez às empresas para que possam subsistir, manter a sua atividade e manter os seus postos de trabalho. “E condicionamos as que acedem a essas linhas de crédito.  Precisamente, não podem despedir. E mais, não podem distribuir dividendos”.

Esta ideia foi reafirmada por António Costa quando justificou a razão pela qual o Estado não se opunha, e até agradecia, receber os dividendos da Galp.   “Não há razão para as empresas não distribuírem dividendos se não estiverem a beneficiar de nenhuma medida de auxílio de Estado”. Ora, como reconheceu o primeiro-ministro no mesmo debate, as linhas de crédito para as empresas com garantia pública são uma ajuda de Estado que foi aprovada pela Comissão Europeia.

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A proibição de distribuição de dividendos, e pagamento de prémios a gestores, está definida de forma expressa no quadro legal que regulamenta a aplicação do lay-off simplificado. Mas no que diz respeito à atribuição de crédito de apoio à tesouraria, em condições mais favoráveis e com garantia do Estado, a proibição de pagar dividendos não está estabelecida, referem ao Observador a bastonária da Ordem dos Contabilistas Certificados, Paula Franco, e Fernando Antas da Cunha, advogado e Managing Partner da Antas da Cunha ECIJA & Associados.

Paula Franco adianta que não tem conhecimento de que exista tal limitação para as empresas que acedam à chamada linha Covid. “Só no lay-off é que existem impedimentos à distribuição de dividendos, mas nas linhas de crédito não há nada que proíba essas situações”.

A bastonária acrescenta que não há nenhuma obrigação de aplicar o dinheiro recebido pela via destes créditos em nenhuma situação concreta. “Não me parece que seja possível de controlar a sua aplicação“, mas sublinha também que há uma consciência social nas empresas em relação à situação que se está a viver e sobre como deve ser gasto essas verbas que, na maioria dos casos, ainda não terão chegado às empresas.

Fernando Antas da Cunha é categórico: “As regras relativas às condições de elegibilidade da Linha de Crédito de Apoio à Economia, aquela que até agora teve a maior dotação e atualmente em vigor, tal como a Linha de Crédito Capitalizar COVID-19 (já esgotada), as quais mereceram o apoio do Estado através da concessão garantia mútua, não impedem a distribuição de dividendos por parte das empresas”.

O jurista recorda que os diplomas que regulam o estado de emergência, e em particular o decreto do Presidente da República publicado a 17 de abril, determinam que certos direitos relativos à propriedade e iniciava económica privada poderão ser suspensos, estabelecendo que “pode ser reduzida ou diferida, sem qualquer penalização, a perceção de dividendos e outros rendimentos prediais ou de capital”.

Mas acrescenta que o “Governo optou por não determinar qualquer redução ou diferimento do pagamento de dividendos por parte das empresas, nos termos do Decreto do Governo que regulamenta a segunda renovação do Estado de Emergência, (Decreto n.º 2-C/2020, de 17 de Abril, da Presidência do Conselho de Ministros), também publicado no dia 17 de Abril. E remete ainda para os documentos de divulgação elaborado pelas entidades de garantia mútua públicas que explica as condições de acesso a estes instrumentos.

“Concluindo, as condições de elegibilidade das linhas de crédito não proíbem a distribuição de dividendos por parte das empresas. Ao mesmo tempo, os diplomas que estabelecem e regulam o Estado de Emergência não contêm nenhuma imposição nesse sentido“.

O Observador questionou o Ministério da Economia e o gabinete do primeiro-ministro sobre este tema, mas não obteve resposta até agora.

Já no que diz respeito à proibição de despedimentos, Antas da Cunha confirma, em resposta ao Observador, que as empresas que contratualizem empréstimos ao abrigo da Linha de Crédito de Apoio à Economia, garantida através de garantia mútua, obrigam-se a não realizar qualquer despedimento coletivo ou por extinção de posto de trabalho relativamente a trabalhadores permanentes existentes na empresa à data de 1 de Fevereiro de 2020, sob pena de incumprimento contratual”.

O incumprimento de quaisquer condições do financiamento, incluindo o despedimento de trabalhadores, implicará penalizações como o agravamento do spread e das taxas de juro.

E faz sentido impedir o pagamento de dividendos a quem aceder ao crédito apoiado pelo Estado?

Para a bastonária da Ordem dos Contabilistas, a restrição aos dividendos não deve existir porque o que estão em causa são empréstimos. e não apoios a fundo perdido ou financiamentos diretos às empresas como no caso do lay-off. Sendo empréstimos, ainda que com uma garantia do Estado e condições mais vantajosas, terão de ser reembolsados pelas empresas.

Paula Franco sublinha ainda que mesmo nas empresas que estão fechadas ou com forte redução de atividade, há custos que não desaparecem e têm de continuar a ser suportados pela tesouraria, custos de contexto, mas também relativos a uma parte da remuneração, no caso do lay-off. Por outro lado, uma parte das empresas que está a recorrer às linhas de crédito também pediu o mecanismo do lay-off simplificado, e por essa via, está já impedida de pagar dividendos e prémios aos gestores.

Alguns países como a França e a Alemanha já sinalizaram a intenção de proibir o pagamento de dividendos e prémios a empresas que recebem ajudas do Estado, incluindo empréstimos com garantias públicas. E no mesmo debate no parlamento, António Costa assumiu o crédito concedido ao abrigo da Linha Covid é uma ajuda de Estado. “As novas linhas já beneficiaram de autorizações da Comissão Europeia em matéria de ajudas de estado”, que impôs condições em matéria de spreads e comissões a cobrar.

No entanto, e no caso de Portugal, o programa de apoio à tesouraria por via de créditos foi desenhado para empresas de pequena e média dimensão onde o pagamento de dividendos não será tão frequente como, por exemplo, uma sociedade com capital a negociar em bolsa. O teto máximo dos financiamentos a conceder por entidade oscila entre 1,5 milhões e dois milhões de euros.

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Ora a discussão política em torno dos dividendos, levantada sobretudo pelo Bloco de Esquerda e PCP, tem-se centrado na banca e nas grandes empresas, como a EDP ou a Galp.

Conclusão

Os diplomas e documentos legais e públicos que estabelecem as condições de atribuição das linhas de crédito para apoio à tesouraria das empresas, no âmbito do Covid-19, não impedem o pagamento de dividendos, ao contrário do que afirmou o primeiro-ministro no Parlamento. Essa interpretação é confirmada por um jurista e pela bastonária da Ordem dos Contabilistas Certificados. Pela informação pública e pelo quadro normativo publicado, e perante ausência de qualquer explicação por parte do Governo, a afirmação de António Costa está errada no que toca às condições impostas às empresas que acedam às linhas de crédito.

O primeiro-ministro tem razão quando refere a proibição de realizar despedimentos, aliás já amplamente anunciada pelo Governo e que não é o tema analisado neste fact-check.

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