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Os democratas conseguiram um resultado melhor do que esperavam nas eleições intercalar norte-americanas e já garantiram que vão continuar a controlar o Senado, mesmo que tangencialmente. Porque é que isto aconteceu quando muitos esperavam o contrário? Por causa do homem que mais eleições terá perdido para o partido, Donald Trump, cada vez mais um activo tóxico de que o velho GOP parece não ser capaz de se libertar. |
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Habitualmente, nas chamadas “midterms”, as eleições intercalares a meio de um mandato de um Presidente, o partido que está na Casa Branca perde eleitores e lugares no Senado e na Câmara dos Representantes. Nos Estados Unidos esse é um processo histórico bem documentado, como recordou a Mafalda Pratas: nos últimos 150 anos isso só não aconteceu quatro vezes e em média o partido do Presidente perde nestas eleições cerca de 28 lugares. Pela última contabilidade que consultei, este sábado à noite, os democratas, o partido do Presidente Biden, ainda só tinham perdido 10 lugares na Câmara dos Representantes e até estavam a ganhar um no Senado. Ou seja, os democratas já tinham garantido que mantinham a sua maioria na câmara alta do Congresso mesmo devendo perde-la por uma margem muito apertada na câmara baixa. Longe pois do que muitos esperavam, sobretudo sabendo-se que o Presidente tem baixos níveis de popularidade e que a principal preocupação dos eleitores é a inflação e a economia. |
O que é que explica estes resultados? No essencial dois factores: os eleitores de cada um dos dois grandes partidos estão cada vez mais entrincheirados, e mais distantes, nas suas opções políticas, e aquilo que os republicanos podiam ganhar numa eleição que até lhes parecia favorável perderam por causa da influência que Trump ainda tem sobre o partido. Isto sem esquecer que o sistema eleitoral americano tem disfuncionalidades que fazem com que não exista muita competitividade na maioria dos lugares em disputa. |
Se há muitos factores que ajudam a perceber o que se passou, há dois que me interessam especialmente: primeiro, os democratas conseguiram mobilizar mais a sua base eleitoral do que se esperava; depois, os eleitores independentes, aqueles que não se assumem nem como democratas nem como republicanos, caíram sobretudo para o lado dos democratas. É um balanço que o Wall Street Journal fez com cristalina clareza. É isso que explica que mesmo tendo os republicanos progredido em alguns sectores cruciais do eleitorado (no voto dos hispânicos, no voto dos negros e no voto das mulheres brancas que vivem nos subúrbios, como se depreende das sondagens pós-eleitorais), acabaram por não alcançar a “red wave” por que esperavam. |
A principal explicação para isso ter acontecido chama-se Donald Trump. Trump e as suas políticas divisivas, Trump e a sua linguagem grosseira, Trump e a memória do 6 de Janeiro (o dia do assalto ao Capitólio), Trump e a ameaça de que pode regressar, Trump e os seus candidatos, tudo isso convergiu para mobilizar o eleitorado democrata ao mesmo tempo que afastava eleitores moderados. |
Este último aspecto é especialmente importante no tal país onde são poucas as eleições realmente competitivas e onde essas eleições competitivas se podem decidir por margens apertadas. Ora aquilo que Trump, o seu dinheiro e a sua influência conseguiram durante as primárias que escolheram muitos dos candidatos democratas foi colocar nos boletins de voto candidatos inelegíveis pelo seu radicalismo, pelo seu sectarismo ou mesmo simplesmente por estarem directamente ligados ao assalto ao Capitólio e à negação dos resultados eleitorais de 2020, assim desperdiçando oportunidades para vencerem eleições que se sabia antecipadamente serem apertadas. Neste podcast da revista judaico-conservadora Commentary podemos, por exemplo, ouvir Meghan McCain, filha do antigo senador pelo Arizona, herói da guerra do Vietname e candidato presidencial republicano, contar como naquele estado se chegou a pedir, em sessões eleitorais republicanas, que os apoiantes de McCain saíssem da sala. Sem surpresa os republicanos perderam a eleição para o Senado e podem também perder a eleição para Governador. |
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Aqui há uns meses, num jantar na Fundação Luso-Americana com congressistas dos Estados Unidos, a maior parte de distritos democratas, pude conversar longamente com alguns deles sobre o efeito que a decisão do Supremo Tribunal sobre o aborto (a revogação da famosa deliberação Roe vs Wade que liberalizara a interrupção da gravidez até à viabilidade do feto, cerca de 22 semanas). Alguns deles esfregavam literalmente as mãos – essa deliberação devolvia-lhes a oportunidade de voltarem a ser competitivos nas “midterms”, garantiram-me. Olhando agora para as sondagens pós-eleitorais percebe-se que essa deliberação teve influência em alguns resultados, mobilizando um eleitorado que vota sobretudo democrata, mas não superou o efeito “medo de Trump” como factor mobilizador desse mesmo eleitorado, assim como de muitos independentes. |
Não surpreende por isso que muitos analistas conservadores sejam hoje mais claros do que nunca: se os republicanos querem voltar a ganhar uma eleição, o que nem será muito difícil depois do progresso que registaram em alguns sectores do eleitorado, então têm de se afastar de Trump e das políticas sectárias dos trumpistas. Vale a pena ler, por exemplo, uma das mais influentes colunistas conservadores, Peggy Noonan, no Wall Street Journal, que escreve sobre uma inevitável derrota republicana se Trump voltar a ser candidato em 2024, ou o antigo candidato presidencial Mitt Roomey, no mesmo jornal, sobre o que deve mudar na forma como os republicanos se comportam no Congresso. |
Isto é tanto ou mais relevante quanto do lado mais democrata se reconhece que estes resultados podem não ter sido os melhores para uma recandidatura de Joe Biden, como se assinala no podcast de Ezra Klein no New York Times. |
Defendi, logo no dia seguinte às eleições, que Donald Trump fora o principal derrotado das “midterms”, mas constatar esse facto não chega. Nos Estados Unidos, como em muitas outras democracias, políticos populistas como o antigo presidente dos Estados Unidos estão a ser os principais protagonistas de uma polarização eleitoral que tem, no polo oposto, a radicalização woke. Em alguns casos, como em Portugal, esse populismo (no nosso caso, o do Chega), até já contribuiu para a consolidação eleitoral de quem não o merecia, como sucedeu com o PS nas últimas eleições, ao concentrar o voto dos que tinham medo de um governo com o apoio de André Ventura. |
Para sair deste ciclo de polarização (e erosão do centro moderado) e para construir alternativas às derivas woke, mas não só, é preciso não ter ilusões sobre como políticos como Trump são sempre perigosos, começando por ser perigosos para o campo onde supostamente se situam. |
A meu ver esta é uma das principais lições a retirar destas “midterms” americanas. |
Miguel Alves e os pecados de uma maioria absoluta |
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Quem duvide da importância do que escrevi atrás deve pôr os olhos na mais recente “novela” desta maioria absoluta socialista. Refiro-me ao “caso Miguel Alves” e aos longos dias que este levou a demitir-se mesmo depois de se acumularem os casos. O Observador teve um papel central neste processo – agradeço a gentileza com que António Costa o reconheceu… –, nomeadamente ao não só revelar que Miguel Alves tinha sido acusado num dos processos em que era arguido, mas também ao detalhar os argumentos do Ministério Público, todo um trabalho do nosso Luís Rosa. |
Para quem quiser ler mais alguma coisa que valha a pena sobre este caso faço ainda três recomendações: o texto de Miguel Pinheiro aqui no Observador sobre os equívocos em torno do mantra “à política o que é da política, à justiça o que é da justiça”, a crónica de João Miguel Tavares no Público sobre a cultura do videirinho (“Pessoa pouco escrupulosa que, para atingir os seus fins, não olha a meios, nem hesita em humilhar-se ou cometer actos menos dignos” segundo o dicionário da Academia) e uma entrevista tão surreal que só lida, a que Ricardo Moutinho, o empresário que fez o negócio do pavilhão com Miguel Alves, deu ao Expresso. |
Não são textos que nos façam ficar mais optimistas sobre o nosso país, talvez nem sejam textos de fim-de-semana, mas ajudam-nos a perceber onde estamos e como estamos. E não estamos bem, como país. |
Acumulam-se livros na minha mesinha de cabeceira |
A edição tem destas coisas, aqui em Portugal mas não só: aproxima-se o Natal, o tempo para oferecer prendas, e os editores esmeram-se. Estou por isso a acumular livros na minha mesinha de cabeceira a que não consigo dar vazão – espero que uma pausa pelo Natal me permita recuperar algumas das leituras atrasadas. Deixem-me no entanto dar conta desses meus atrasos. |
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Sobre a Rússia, tema que não consigo abandonar, os editores portugueses conseguiram colocar nas livrarias a tempo e horas vários livros recentes (e muito aplaudidos) de que destaco mais dois. O primeiro é Rússia – Revolução e Guerra Civil, 1917-1921 (Bertrand), de Antony Beevor. Beevor é um dos meus historiadores preferidos desde a sua magnífica descrição da batalha de Estalinegrado, tem inúmeras obras sobre a II Guerra e também um belo livro sobre a guerra civil de Espanha, pelo que pegarei mal possa nesta nossa síntese sobre um período que mesmo conhecendo razoavelmente (a parte sobre a revolução russa), é um período decisivo da nossa contemporaneidade. Para além disso também já vi pelo índice que os capítulos sobre a guerra civil passam várias vezes pela Ucrânia e por Kiev. O outro é A História da Rússia (Dom Quixote), por um dos historiadores que melhor tem escrito sobre ela, Orlando Figes (de entre os livros dele que li destaco A Tragédia de Um Povo, sobre a revolução de 1917, e Sussuros, da Aletheia mas julgo que esgotado, sobre os horrores da vida quotidiana sob a ditadura comunista). |
Os outros dois livros que também aguardam por mim são duas obras “de combate”. A primeira é do editor da britânica Spectator, Douglas Murray, chama-se A Guerra ao Ocidente (Desassossego), e é uma denúncia implacável das novas modas woke, se preferirmos do politicamente correcto intrusivo e identitário que está asfixiar a liberdade nas nossas democracias liberais. A segunda é Em Defesa do Capitalismo – um antídoto para os mitos anticapitalistas (Aletheia e +Liberdade), do alemão Rainer Zitelman, uma obra que parte de inquéritos realizados um pouco por todo o mundo, incluindo Portugal. A partir das (falsas) ideias feitas que esses inquéritos revelaram, o autor trata de desconstruir as dez principais acusações feitas ao capitalismo, e à riqueza que ele gera para todos e não só para alguns. |
Voltarei provavelmente a estas obras depois de as ler. |
A construção de uma biografia |
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O PCP surpreendeu tudo e todos – surpreendeu-se a si próprio – ao anunciar a saída, já, de Jerónimo de Sousa, assim como ao escolher um desconhecido do grande público para lhe suceder. Como assinalei logo na passada segunda-feira no Contra-Corrente, é alguém que se distingue por ser um funcionário político praticamente desde sempre (ou seja, desde os 18 anos), mas mesmo assim o PCP tratou de lhe construir o mais depressa possível uma biografia “de operário”, um processo com os seus percalços pois o perfil de Paulo Raimundo até começou por ser recusado pela Wikipédia, tão desconhecido ele era. |
Mesmo assim os comunistas perseveraram e este sábado, ao ler o que dele diziam os que falaram a Mariana Lima Cunha para ela construir o perfil editado pelo Observador, deparei-me com esta passagem extraordinária: |
“Ao Observador, Miguel Tiago, mas também nomes ligados aos protestos do movimento “Que se Lixe a Troika”, organizados em plena crise sem apoio formal do PCP, assumem que Paulo Raimundo “conhecia e conhece bem” muitos dos nomes ligados a esse movimento – vários dos quais não tinham qualquer associação ao PCP. O mesmo para movimentos de intelectuais, por exemplo – no interior do partido recordam-se, a este propósito, os encontros que Cunhal tinha com intelectuais de fora do PCP e a importância que isto tinha para a influência social e cultural do PCP no país.” |
Ligações intelectuais? Influência social e cultural do PCP? Comparações com Cunhal? Bem, nestes tempos de Instagram e smartphones fico então à espera de uma fotografia como a que mostro a seguir, tirada há uns 80 anos, na década de 1940, tempos de ditadura e repressão, num passeio de traineira no Tejo em que participavam Álvaro Cunhal e intelectuais como o escritor Soeiro Pereira Gomes, também ele comunista. Nada no cunhalismo me atrai, mas há biografias e há ficções – Cunhal tinha uma biografia e tinha mundo, Raimundo tem apenas o mundo da Rua Soeiro Pereira Gomes, mas não por ter conhecido o escritor neorealista que nos deixou “Esteiros”, apenas por ser lá que fica a sede do PCP. |
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Mais paisagens – de um velho país pobre |
Henrique Pereira dos Santos é autor de um dos ensaios da Fundação Francisco Manuel dos Santos com que mais aprendi nos últimos tempos, Portugal: Paisagem rural. Para além disso é uma das vozes mais lúcidas e desassombradas quando é necessário falar de incêndios e desmistificar mitos urbanos, como os que existem em torno dos eucaliptos. Aqui há uns meses soube que estava a promover um crowdfunding (bem sucedido) para publicar, com o fotógrafo Duarte Belo, um livro sobre as paisagens marginais deste nosso país. Das Pedras, Pão acaba de me chegar às mãos e é uma pequena jóia, pelas imagens, pelo texto e pela forma como umas se articulam com o outro. Desafiante logo no primeiro capítulo – “Nem Mediterrânico Nem Atlântico” – esta pequena obra leva-nos ao encontro de um Portugal pobre e que sempre foi pobre, o Portugal das terras esqueléticas e de uma agricultura, ou silvicultura, ou pastorícia, de difícil sobrevivência. Com observações que às vezes explicam o que os números não explicam, como esta: “O facto de ser a chanfana de cabra velha o prato tradicional dos casamentos das terras xistosas do centro não nos deixa porém esquecer a sua pobreza extrema, quando comparada como a pobreza remediada mais a norte, em que o prato de festa é o cabrito, ou mais a sul, no qual tem como base o borrego e o porco”. |
Sobre Duarte Belo e as suas imagens já uma vez escrevi nesta newsletter, mas neste livro há uma, de um daqueles cruzamentos que só em Portugal, que me evocou um fim-de-semana recente que passei precisamente para aqueles lados, bem no coração dessas “terras xistosas” onde se come chanfana, até porque foi com uma chanfana que abrimos esses dias. Dos passeios que então fiz, muito por entre terrenos arrumados em socalcos mas hoje abandonados pela agricultura, deixo a imagem abaixo (a segunda, a das tabuletas, é a que encontrei neste livro). |
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José Manuel Fernandes, publisher do do Observador, é jornalista desde 1976 [ver o perfil completo]. |