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A diabetes é um epidemia. Mas é evitável |
Todos conhecemos algum caso de diabetes, seja de um familiar, um amigo ou um familiar de um amigo. É uma doença prevalente em Portugal e considerada uma epidemia mundial, com mais de 500 milhões de pessoas afetadas, sem esquecer que haverá muitos por diagnosticar. Em Portugal, os dados mais recentes são do relatório anual do Observatório Nacional de Diabetes (2019) que fala em mais de um milhão de pessoas, entre os 20 e os 79 anos. |
A 14 de novembro, próxima segunda-feira, celebra-se o Dia Mundial da Diabetes. A propósito da data, vale a pena perceber qual a variante mais comum da doença em Portugal e como evitá-la. |
A que corresponde à maioria dos casos (90-95%) é a diabetes tipo 2, uma triste consequência das nossas escolhas alimentares. É quase sempre evitável e muitas vezes tratável, sendo em alguns casos até possível a remissão. O problema está, em muitos casos, em dar por garantido que a diabetes “vem com a idade”, ou com a “herança genética” e que por isso será “inevitável”. Nenhuma destas suposições está correta e há muito que se pode fazer para prevenir a diabetes mesmo que tenhamos familiares diretos com esta doença. |
Quatro passos para prevenir a diabetes tipo 2: |
1. Manter um peso corporal saudável |
Este é um critério clínico que qualquer um de nós pode avaliar com a ajuda do Índice de Massa Corporal (IMC) que facilmente encontra na internet. Basta dividir o peso (em quilos) pela altura (em metros) ao quadrado. Para uma adulto, deve estar entre 18,5 e 24,9. Se estiver entre 25 e 29,9, significa que tem excesso de peso. Superior a 30 será obesidade — ou seja (salvo os desportistas) com gordura corporal em excesso, o principal fator de risco para a diabetes tipo 2. |
Cerca de 90% das pessoas que desenvolvem a doença têm excesso de peso . Qual será a ligação? Pensa-se que seja pelo efeito derrame das células que acumulam gordura (adipócitos). Quando aumentamos de peso, em regra o número de adipócitos mantém-se mas estes ficam mais cheios e inchados (o inverso também acontece quando emagrecemos). Na obesidade os adipócitos ficam tão cheios de gordura que chegam a derramá-la na corrente sanguínea, fazendo com que a gordura presente no sangue, que se pode acumular por exemplo nas células musculares, aumente a resistência à insulina. |
A insulina é uma hormona que produzimos que funciona como (agora use a imaginação) uma espécie de “fechadura” para a glicose entrar nas células e sem a qual não conseguiria. Com a gordura circulante, a insulina não funciona tão bem e assim acumula-se insulina e glicose fora das células. Jessie Inchauspé, autora do livro A Revolução da Glicose (ed. Lua de Papel) faz uma associação interessante: quando sentiu a necessidade de passar de um café diário para cinco cafés diários para se manter acordada, queria dizer que teve que aumentar a dose de cafeína para ter o mesmo efeito. Por outras palavras, tinha-se tornado resistente à cafeína. À medida que a nossa resistência à insulina piora, passamos de pré-diabéticos (níveis de glicémia em jejum acima de 110mg/dL) para diabéticos tipo 2 (acima de 126mg/dL) |
2. Controlar a glicémia que os alimentos podem provocar, aprendendo sobre quantidades, conjugações e timmings |
Um estudo de revisão de 2021 deixou claro que para controlar — ou mesmo reverter — a diabetes tipo 2 seria necessário achatar as curvas de glicémia. Sim, seria melhor não comer doces, mas já que isso é tão difícil, vale a pena ganhar interesse sobre este tema. Claro que estamos a falar de prevenção da diabetes, mas, se estiver na presença da doença, faz sentido adotar esta medida de forma relativamente regular para evitar o pior. |
As curvas de glicémia são inevitáveis. Cada vez que comemos, a glicémia sobe em resultado da digestão dos alimentos, principalmente dos que contêm hidratos de carbono como pão, arroz, massa, batata, cereais, bolachas, bolos ou doces — mas também fruta e iogurtes. No entanto, estas curvas podem ser uma montanha russa se, em vez de comermos dois quadrados de chocolate no fim do almoço, comermos 12. Ou quando comemos uma taça grande de uvas em vez de um punhado com alguns frutos secos. |
A quantidade do alimento que contém hidratos de carbono (e não só) deve ser controlada dentro da refeição, porque quanto maior a quantidade, maior o pico de glicémia. Mas a forma como conjugamos os alimentos também tem impacto. |
Para isso podemos fazer escolhas que permitam achatar a curva. Como enriquecer a refeição com fibra e/ou com proteína, pois ambos lentificam a absorção da glicose. |
Pensemos num caso prático: um pequeno-almoço com uma torrada com compota (o que não aconselho porque é insuficiente e cria um pico enorme de glicémia). Quais as conjugações para achatar a curva e prevenir a diabetes? Conseguimos aplicar uma ou as duas das que falei, como juntar alguma fonte de fibra (frutos secos ou pão integral e/ou com sementes), mas também alguma proteína, como um queijo fresco ou um ovo mexido ou um iogurte natural sem açúcar adicionado. Dessa forma a refeição terá uma curva de glicémia mais achatada, com todas as consequências maravilhosas que daí advêm: maior saciedade, mais concentração e talvez até melhor humor. |
Se pensarmos num almoço, o ideal seria conjugar com uma salada antes de um risoto ou umas azeitonas (sim, são ricas em fibra) antes de um prato convencional de peixe com batatas. |
Se reparar usei bastante a palavra “antes”, e aqui entra o terceiro fator a controlar para achatar a curva da glicémia: timming. Sabia que se comer primeiro as batatas e só depois o peixe vai ter um pico maior? E que consegue achatar ligeiramente a curva se comer em simultâneo os dois alimentos? Pois, mas na realidade, para ter impacto e para achatar mesmo a curva, teria que comer primeiro o peixe (proteína) e só depois as batatas (hidratos de carbono). E como nem todos gostaram dessa hipótese, fica outra sugestão: juntar uma salada a esta refeição, para comer antes do prato. Eesta forma também conseguimos o mesmo efeito. Resumindo: uma rotina fácil de implementar será comer a salada antes de qualquer coisa. |
3. Aumentar o consumo de fibra |
A quantidade de fibra que comemos hoje é muito menor do que deveria ser (20-25 gramas por dia). Sabia que o governo dos EUA chama à fibra o “nutriente de saúde pública”? Porque com todas as farinhas refinadas e todo o processamento que os alimentos crescentemente tiveram no nosso supermercado, um dos nutrientes que foi praticamente erradicado foi a fibra, com responsabilidade no aumento das doenças não transmissíveis, responsáveis pelos maiores níveis de mortalidade (doenças cardiovasculares, diabetes e cancro). |
E onde encontramos a fibra? Pode ser uma bolacha enriquecida em fibra?
Não se deixe manipular. A fibra está principalmente nos vegetais (em especial nas folhas), nas cascas dos cereais (nas versões integrais de arroz, massa e cereais, mas aqui será necessário separar o trigo do joio no que toca a versões com açúcar), nas leguminosas e nos frutos secos e sementes. Claro que também existe na fruta, mas para pensarmos nos alimentos como um extra de fibra que queremos juntar à refeição sem alterar a glicémia, talvez faça mais sentido pensar nas primeiras hipóteses. E até quando comemos fruta fará sentido juntar alguma fonte de fibra extra, como uns palitos de cenoura, frutos secos ou mesmo tremoços.
A fibra cria uma rede viscosa no intestino, que abranda e reduz a absorção de glucose, o que, em termos práticos, significa que achata a curva da glicémia. Um estudo que comparou o efeito do consumo de pão “normal” com pão enriquecido com dez gramas de fibra verificou que o pico de glicémia no pão com fibra foi 35% mais baixo. |
4. Evitar uma alimentação rica em gordura saturada |
Por uma razão simples: não basta controlar o açúcar. |
As dietas ricas em gordura aumentam a resistência à insulina, a causa da diabetes tipo 2. Sendo a insulina a hormona que produzimos para deixar a glicose entrar nas células, concluímos que as dietas ricas em gordura, especialmente saturada, parecem danificar o funcionamento da insulina neste processo. A gordura pode ser a que temos na corrente sanguínea ou nas próprias reservas do organismo, proveniente da alimentação. Por isso, por mais insulina que o pâncreas produza, as células só vão deixar entrar a glicose se a insulina estiver funcionante. Para tal, a refeição deve ter níveis controlados de gordura saturada. |
A gordura saturada existe em maior quantidade nos produtos de origem animal como carnes gordas, natas, manteiga, iogurtes gregos ou enchidos, mas também em grandes quantidades no coco e óleo de coco. Mas gostava que este ponto da gordura nos levasse a refletir que possivelmente o problema não está em comer uma costeleta de porco ou um iogurte grego de forma esporádica (digo semanal) mas sim na gordura saturada consumida diariamente adicionada às bolachas, à pastelaria ou às batatas fritas. E que também nos fizesse repensar na nossa torrada à moda portuguesa… será pão com manteiga ou manteiga com pão? |
Se quer prevenir a diabetes e não fazer parte dos números crescentes anuais, deve: |
- controlar o seu peso
- comer sempre a salada antes do prato
- comer algum alimento rico em fibra antes de comer um doce (sendo que estes doces devem ser esporádicos e em quantidades controladas)
- aumentar o consumo de alimentos ricos em fibra nas várias refeições
- reduzir os alimentos ricos em gordura saturada!
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Verdadeiro ou falso? O picante não tem qualquer valor nutricional. |
Falso. São vários os efeitos que o picante pode ter. Quando juntamos a curcuma com pimenta cayena, por exemplo, conseguimos uma melhor absorção dos compostos fenólicos e assim uma maior eficiência no efeito anticancerígeno e anti-inflamatório daquela especiaria. |
Uma pergunta frequente nas consultas: como sei se estou a escolher um bom chocolate? |
Um chocolate é sempre um alimento calórico rico em açúcar e gordura e por isso deve ser encarado como um doce. Mas claro que até um doce nos pode trazer benefícios. Para escolher um bom chocolate é de senso comum que deve ser preto, evitando extras como caramelos ou frutas cristalizadas. No limite, a alternativa será escolher com frutos secos, que sempre adicionam alguma fibra. Gosto que se avalie a quantidade de açúcar em 100g e que seja inferior a 20g de açúcar. Assim, a maioria dos chocolates pretos com este valor terão uma percentagem de cacau superior a 80%. Ao terem menos açúcar têm um sabor mais intenso a cacau — o que, para os amantes de chocolate, será uma boa noticia. Para os que preferem chocolate de leite tentem vertentes com menos açúcar e pensem que quanto menos açúcar menos viciante. |
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Se tivesse que escolher um único livro para ler ou para oferecer sobre controlo da glicémia, seria este, escrito pela bioquímica francesa Jessie Inchauspé, autora da conta de instagram Glucose Goddess, onde conta com 1,2 milhões de seguidores (aliás, já o ofereci e já o sugeri a muitos pacientes). Sei que corro o risco de me repetir (uma vez que já falei o livro noutras newsletters) mas acredito bastante que a mensagem positiva e prática deveria fazer parte de todas as mesas de cabeceira, já que ajuda a entender como os picos de glicémia têm efeito a curto prazo na nossa qualidade de vida (alterando o humor, cansaço/energia, aumentando os desejos alimentares e fomes insaciáveis, mas também, a longo prazo, contribuindo para uma possível depressão, perdas de memória, doenças inflamatórias como artrite e até cancro). E tem analogias que ficam na memória como “Está a ser cozinhado; mais especificamente, a ser escurecido, com uma fatia de pão na torradeira” para explicar como a reação química que aconteceu no pão também acontece no nosso corpo com o excesso de glucose, uma vez que acelera o envelhecimento (escurecimento interno).
(ed. Lua de Papel) |
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Mariana Chaves é nutricionista clínica, autora do podcast Aprender a Comer, na Rádio Observador, e do livro Dieta Única (ed. Guerra e Paz, 2016) [ver o perfil completo]. |