Foi num destes dias quando, uma urgência profissional qualquer obriga a sacar do computador a meio do almoço e a instalá-lo entre o prato do dia e o resto do pires de azeitonas. Com a dignidade possível, já alinhando mentalmente o que temos de fazer, procuramos a rede wifi do estabelecimento. Então, enquanto damos uma garfada ao arroz de pato antes que esfrie a ponto antártico e, com o outro braço, tentamos chamar à atenção do empregado a fim de pedir a password, já toda a lista de redes de internet sem fios num raio de quilómetros se derrama pelo menu do monitor. E eis que, do meio do caos de sequências alfanuméricas aleatórias, nomes próprios vazios, start-ups de IT e padarias do bairro surge, resplandecente como uma flor no meio do prado, “acasadaavo”.

A casa da avó. Por um instante, interrompeu-se o som das notificações a cair no email e nas 30 apps de conversação, a algazarra de conversas e talheres em volta e o loop infernal de notícias no rodapé televisivo, do apocalipse ambiental iminente à guerra da Ucrânia, e à de Gaza, e às novas e arrepiantes habilidades da I.A.. Algures em volta, um neto ou neta expedito tinha instalado, enfim, o wifi a uma senhora moderna, quem sabe se a pedido dela, se em benefício próprio, para ter com que se entreter durante os lanches de sábado. Mas que importa? O nome da rede bastava: a casa da avó impôs-se imediatamente. Uma porta mental abriu-se para escapar à urgência tonitruante com que tudo, hoje, tenta roubar-nos a atenção. Vi chá e bolinhos. Um naperon e uma fruteira. Fotografias antigas pelas paredes, do tempo em que esperávamos, sem pressa, a revelação das coisas. Um cheiro a vestidos arrumados há talvez demasiado tempo e que precisam de passear. O som de um relógio de parede garantindo que os dias continuam a ter a mesma duração de sempre.

O instante de paz, admito, foi breve. Rapidamente, como naquelas fugazes tentativas de meditação, uma imagem intrusiva invadiu o oásis momentâneo da suspensão do pensamento – sim, foi a Mariana Mortágua – e, a seguir, como sucederia após a abertura de uma brecha num dique, logo irrompeu toda a torrente de ideias relacionadas: a campanha eleitoral, os demais candidatos, as propostas debaixo da tinta dos climáximos. E pensei no que achará a avó destas semanas que andamos a viver. De como a campanha eleitoral se transformou numa temporada de caça ao pensionista, como se todos tivessem percebido ao mesmo tempo que não se ganham eleições sem o voto dos idosos ou, pelo menos, perdido a vergonha de o assumir descaradamente na respectiva comunicação. O importante, aparentemente, já não é ter uma estratégia para o futuro do país, mas garantir que se oferece o maior aumento de pensões do mercado. À esquerda e à direita, os aumentos para os reformados são as novas inaugurações, o novo pavilhão multiusos, a nova auto-estrada. O pensionista o novo solteirão ou solteirona rica. Nas ruas, temo pelo tipo de brindes que as caravanas andem a oferecer.

Como se não bastasse tudo o que já tiveram de sofrer ao longo da vida, todas as transformações a que tiveram de se adaptar, esperava, aos nossos anciãos, levar ainda com mais isto, este assédio despudorado de netos que não têm nem pediram (é ver os folhetos nas caixas do correio. Em tempos, os políticos gostavam de se fazer fotografar ao lado de jovens; agora, está generalizado o casting à velhinha. Sinais dos tempos).

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Na realidade, ainda esta semana ficámos a saber novos dados alarmantes sobre o tema: Portugal é o país a envelhecer mais rapidamente na Europa – e se a Europa já está, por si só, em acentuado envelhecimento. Nos últimos 10 anos, envelhecemos ao dobro da velocidade média dos nossos companheiros de continente, temos hoje uma população com 185,6 idosos por cada 100 jovens e já só a Itália nos bate em idade mediana (mas com outras condições para gozar a velhice, convenhamos).

Este é o problema mais grave do país – e se havia concorrência. No limite, representa a sua extinção. Estamos a desaparecer. A cada ano que passa, temos menos população em idade activa, perdemos mais profissionais com a idade e a qualificação de que precisamos para tornar a economia portuguesa mais produtiva em sectores de valor acrescentado, e ficamos com menos e menos hipóteses de sustentar o sistema de pensões e os aumentos que os candidatos vão prometendo por esse Portugal afora, como quem atira confetti ou distribui rebuçados.

Regresso à avó do wifi. E penso no que faria no lugar dela, com aquelas qualidades extraordinárias de lucidez e impaciência que a idade nos vai trazendo. De cada vez que me tratassem com o paternalismo com que tratam, de cada vez que acham que preciso que me lembrem quem me cortou ou não cortou a pensão, de cada vez que me explicam as coisas como se eu não soubesse fazer contas, de cada vez que acham que não percebo que a melhor maneira de me aumentarem a pensão é criarem condições para reter jovens bem pagos no país, de cada vez que fazem ar de bons netos para o beijinho na feira e o folheto da campanha, mandava-os mas era dar uma curva e ia votar exactamente no oposto. Em quem menos me tratasse como uma criança.

Mas isto sou eu, que ainda ando nos 40 e já sou um velho ranzinza – esperem quando tiver 70 ou 80 e vão ver o que lhes digo quando me vierem abraçar na banca do peixe. (E, entretanto, enquanto pensava se a password para aceder à acasadaavo seria cha&bolinhos ou vaomasetodosbardam3rda, o rapaz enfim viu o gesto e lá atirou a senha do estabelecimento. Qualquer coisa óbvia de que me poderia ter lembrado e arriscado sozinho. Mas o avô está velho – o que é que vocês querem?)