No seu discurso sobre “o estado da União”, proferido no dia 12 de setembro de 2012 no Parlamento Europeu, o presidente da Comissão Europeia Durão Barroso fez um apelo à criação de uma Federação de Estados-Nação. Eis alguns excertos do seu discurso:

Não tenhamos medo das palavras, precisamos de avançar no sentido de uma Federação de Estados-Nação, mas não de um super-Estado.

Na era da globalização, a agregação de soberanias significa mais poder, não menos. Nestes tempos conturbados não devemos deixar a defesa da nação nas mãos dos nacionalistas e dos populistas.

Uma união económica e monetária genuína e profunda pode ser iniciada ao abrigo dos atuais tratados, mas só poderá ser concluída se forem introduzidas alterações aos tratados. Comecemos, pois, agora, mas tenhamos presente nas nossas decisões de hoje o horizonte necessário para o futuro.

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E deverá ser lançado um amplo debate em toda a Europa. Um debate que deverá realizar-se antes da convocação de uma convenção e de uma conferência intergovernamental. Um debate que tenha verdadeira dimensão europeia.

Já não estamos no tempo em que a integração europeia era feita por consentimento implícito dos cidadãos. A Europa não pode ser tecnocrática, burocrática, nem mesmo diplomática. A Europa tem de ser cada vez mais democrática.

Não devemos permitir que os populistas e nacionalistas estabeleçam uma agenda negativa. Espero que todos os que se consideram europeus estejam presentes neste debate. Porque, ainda mais perigoso do que o ceticismo dos antieuropeus é a indiferença ou o pessimismo dos pró-europeus.

Não temos que pedir desculpa pela nossa democracia, pela nossa economia social de mercado, pelos nossos valores de coesão social, respeito pelos direitos humanos e dignidade humana, igualdade entre homens e mulheres, respeito pelo nosso ambiente. As sociedades europeias, com todos os seus problemas, contam-se entre as mais dignas da história da humanidade e devemos ter orgulho disso.

Gerações anteriores à nossa ultrapassaram desafios ainda maiores. Cabe agora a esta geração demonstrar que está à altura desta responsabilidade. Hoje, tal significa tornar a União capaz de enfrentar os desafios da globalização.

A quadratura do círculo, globalização versus federação

Tomo como acertadas, em 2018, estas palavras. Destes excertos retira-se que a equação “globalização versus federação” marcará o futuro próximo da política europeia, seja ela qual for. A ideia de Federação de Estados-Nação não é nova (Delors referiu-a em 1994), pois inscreve-se na grande tradição do projeto europeu, do método Monnet e da sua política de pequenos passos. A ideia base tem sido, sucessivamente, denominada de federal, comunitária e unionista, mas, na sua origem, está sempre o mesmo princípio nuclear, a saber, a precedência do duplo soberano nacional (os povos e os eEstados) sobre as instituições europeias seja qual for o nível de soberania partilhado já atingido. Dentro deste princípio nuclear e em função das necessidades, das crises e das relações de poder, a ideia de “mais ou menos federação” varia, historicamente, em redor das atribuições e competências transferidas (princípio da subordinação material aos tratados das competências de atribuição), dos processos de tomada de decisão (formação da unanimidade e das diferentes maiorias) e dos mecanismos de accountability e controlo de subsidiariedade no que respeita à implementação das políticas europeias.

Dito isto, o que o apelo do Ex-Presidente Durão Barroso parece querer dizer é que o empirismo e o incrementalismo europeus, sendo uma condição necessária não são uma condição suficiente para lidar com o processo de globalização e o regime globalitário. O passo seguinte não significa, porém, dar “um golpe constitucional” no projeto europeu e criar um Super-Estado Federal, burocrático e autocrático que seria, tarde ou cedo, capturado pelos grupos de interesses europeus e multinacionais. O que está em causa não é um Estado Federal criado por um Ato Constitucional e mudando a ordem dos soberanos, mas, antes, o lançamento de algumas âncoras federais que assegurem uma linha de rumo consistente, de médio e longo prazo, ao projeto europeu, por exemplo: um BCE multi-objetivos, um orçamento com dimensão e funções federais e um tesouro com funções de estabilização (obrigações de estabilidade) e mutualização da dívida europeia (obrigações de crescimento).

No outro termo da equação, mora, hoje, o discurso dominante, de matriz mercantilista e neoliberal. Tudo ou quase tudo é transacionável neste gigantesco sistema de vasos comunicantes que é a economia-mundo. A liberdade de circulação de mercadorias, serviços, pessoas e capitais encarregar-se-ia, por ajustamentos sucessivos, de promover os equilíbrios necessários.

Neste mundo plano (Friedman, 2008) o território parece ter sido abolido e a turbulência doméstica é uma história menor. Cada país vive o seu ciclo de vida, a turbulência deve-se a erros de gestão e pilotagem cometidos por governos e administrações incompetentes. A começar pelo Estado-nacional, “o grande gastador”. Nesta narrativa neoliberal, a grande recessão de 2008-2009 está aí para nos avisar de que a globalização hegemónica continuará a fazer as suas vítimas, a empobrecer parcelas crescentes dos territórios nacionais e a seduzir os mais incautos, desequilibrando perigosamente a relação entre expectativas e recursos dos diversos grupos domésticos em presença.

A equação globalização multipolar-união política europeia é o maior de todos os desafios que enfrenta a atual União Europeia. Estamos num impasse: os Estados-membros “já não têm” soberania bastante para conduzir autonomamente a sua política económica, a União Europeia “ainda não tem” autonomia política e meios suficientes para conduzir de forma eficaz e equitativa a sua política económica. E tanto mais quanto, no atual contexto histórico, a política económica externa assume uma relevância crítica e um papel predominante face à política económica interna da zona euro.

O impasse salta à vista quando se trata de dosear o esforço entre política económica externa e política económica interna. A União Europeia não tem condições políticas para afirmar as prioridades da sua política económica externa e restabelecer a ordem no regime globalitário, em segundo lugar, não consegue assegurar um crescimento económico duradouro, um bem comum inestimável para todas as regiões do mundo, e, por último, não garante que o esforço de ajustamento seja realizado simetricamente, isto é, ao mesmo tempo por redução de despesa dos países deficitários e aumento de despesa dos países excedentários. Se assim não for, sem uma correção e regulação muito fortes da atual globalização hegemónica, não há políticas domésticas europeias e nacionais que resistam a estas disfunções macroeconómicas. Em consequência dessas disfunções, sobe o custo de oportunidade do investimento e baixam a eficácia, eficiência e efetividade das políticas públicas.

União Política Europeia e Federação de Estados-nação

Voltemos à Federação de Estados-nação e ao federalismo. O federalismo político estava na moda no princípio dos anos cinquenta do século passado. Para vincar a diferença da Comunidade Europeia do Carvão e do Aço face à organização do Conselho da Europa, Jean Monnet afirmava: “Nada é possível sem os homens, nada é duradouro sem as instituições, quem não trouxer o método não faz avançar os problemas”. Tal como ainda hoje, o Reino Unido anunciava, na altura, em comunicado de imprensa, a impossibilidade da sua participação em tal organização supranacional.

Apesar do federalismo pragmático de Jean Monnet, a euforia federalista acabaria por fazer fracassar duas outras tentativas, a Comunidade Europeia de Defesa e a Comunidade Política Europeia. A causa próxima é a guerra da Coreia e a iminência de uma terceira guerra mundial, razão pela qual os EUA levantaram a questão controversa do rearmamento alemão. Depois deste duplo abandono, as consequências eram previsíveis. Nenhum tipo de federalismo iria, doravante, ocupar a boca de cena. As novas Comunidades Europeias de 1957 (Comunidade Económica Europeia e Comunidade Europeia da Energia Atómica) deixaram cair o modelo da Alta Autoridade com poderes supranacionais. Tinha acabado a primeira fase do processo de construção europeia, a fase federalista. A economia passaria, doravante, a ocupar o palco principal do processo de integração.

Daí para cá a história é conhecida. Uma pequena incursão histórica por seis décadas de construção europeia permite-nos perceber nela três grandes períodos e três filosofias de integração. O período que decorre entre o fim da 2º grande guerra e o fim da guerra-fria (1989), marcado por uma filosofia de integração funcionalista, jurídico-económica e tecnocrática, no quadro mais geral das relações bipolares definidas pelas duas grandes superpotências. O período vertiginoso que decorre entre a queda do muro de Berlim (1989) e o momento de ratificação do tratado constitucional (2005), marcado por uma filosofia de integração mais voluntarista, política e institucionalmente, seja na adoção de uma moeda única, na definição de uma política externa e de segurança comum, na implementação de uma cooperação policial e judicial em matéria penal ou, finalmente, no grande objetivo do alargamento. Finalmente, o terceiro período, que se inicia com o veto de França e Holanda (2005) ao tratado constitucional, com passagem pelo tratado de Lisboa, e, por fim, a grande crise sistémica de 2008, marcado pelo regresso do intergovernamentalismo, a multiplicação das cimeiras europeias e o espetáculo político-mediático dos encontros informais do diretório franco-alemão. Em todos estes “saltos” o contexto histórico é determinante. Não são, geralmente, os tratados que determinam a política europeia, são, antes, os acontecimentos que desencadeiam os rearranjos político-institucionais.

Este percurso é, desde o princípio, marcado pela eterna oposição entre as duas principais correntes ou filosofias de integração que, até hoje, acompanham o processo de construção europeia. As correntes de inspiração federalista, com várias tonalidades, partilham uma visão unitária e integracionista que pode conduzir ou não à criação de um estado federal europeu ou de características marcadamente federais. As correntes de inspiração intergovernamental, também com várias intensidades, partilham uma visão mais aberta e cooperativa do processo de integração, assente em regras, processos e procedimentos, mais do que em burocracia e legislação.

Como disse na introdução, a Federação de Estados-Nação não é um Estado Federal, nem tem de desembocar necessariamente num Estado Federal. Talvez mais grave, na atual conjuntura populista e nacionalista, a União Europeia continua a não ser capaz de se “inscrever” no plano simbólico e no quotidiano dos cidadãos. Enquanto tal não acontecer, os Estados membros ficam reféns desse sentimento de orfandade europeia dos seus cidadãos. Sem a esperança do futuro e o futuro como política, a União ficará prisioneira dos seus critérios economicistas e financeiros de curto prazo. Se a Federação Europeia não for capaz de devolver a confiança e a esperança aos cidadãos europeus, recriando, para o efeito, o espaço público europeu, podemos estar de novo à beira de uma “tragédia dos comuns” (Covas, Observador, 15-07-2018)

Seja como for, já se percebeu que a aventura europeia prosseguirá por um caminho estreito e sinuoso, entre a utopia, a necessidade e a contingência, sobretudo agora que se aproximam as eleições para o Parlamento Europeu (maio de 2019) e todos aguardam a próxima ronda de negociações sobre o Brexit. Na sequência do meu último artigo do Observador retomo e atualizo os meus escritos sobre a união política europeia (Covas, 2011, 2012, 2013 e 2016), em apoio da ideia de uma Europa de inspiração federal. As dez teses são o meu contributo pessoal para o debate e a reflexão que se seguirão.

Tese n.º 1: A soberania partilhada e o princípio de subsidiariedade

Sou contra o unitarismo unionista e o uso abusivo de uma política tecno-burocrática com cobertura constitucional. Julgo, porém, ser possível sustentar uma soberania partilhada no quadro de uma constituição sem estado, uma convenção europeia, e aceitar uma dinâmica convencional que nos conduza até uma constituição de um tipo novo, que não se confunda com as tradicionais constituições nacionais. E será sempre uma dinâmica nos dois sentidos. A “dinâmica convencional” da Federação Europeia de Estados-Nação será ascendente e descendente, de acordo com o princípio de subsidiariedade, e aqui ela distingue-se, claramente, da constituição dos Estados Unidos da Europa. Um Parlamento Europeu com duas câmaras, sendo uma delas o Senado, para nos assegurar o respeito do princípio de subsidiariedade, é a nossa proposta.

Tese n.º 2: O risco real de um regresso ao xadrez do equilíbrio de poderes

Se a União Europeia não evoluir, a breve prazo, para uma Federação de Estados-Nação e, em vez disso, continuar a exercitar a prática sinuosa das cimeiras e dos diretórios intergovernamentais em que a Alemanha desempenha, claramente, um papel hegemónico, então, não surpreenderá que, no quadro do regime globalitário dominante, possamos voltar à política de potência e ao xadrez do equilíbrio de poderes, à semelhança de outras conjunturas históricas como a Mitteleuropa (século XIX) ou a Ostpolitik (anos 60 do século XX). A União Europeia não saberá resistir a esta política de potência.

Tese n.º 3: A orfandade europeia no plano simbólico e no quotidiano dos cidadãos.

Os Estados-membros estão reféns deste sentimento de orfandade europeia dos seus cidadãos. E, no entanto, as sociedades nacionais melhoraram bastante, em muitos domínios, devido, justamente, às iniciativas europeias. A exterioridade e a imponência do sistema europeu, por um lado, e a interioridade e a simplicidade do sujeito-cidadão, por outro, são as duas faces da mesma moeda. Se a Federação Europeia não for capaz de dar conteúdo democrático efetivo a esta conexão, a sua legitimidade política estará seriamente afetada. A criação de uma procuradoria europeia, no sentido amplo de um ministério público, pode ajudar nesta tarefa.

Tese n.º 4: Consolidar o modelo social europeu à luz da revolução digital

O modelo social europeu do Estado providencial e regulador é uma aquisição e um marco cultural e civilizacional das sociedades democráticas europeias; independentemente da sua racionalização, em termos de eficácia, eficiência, equidade e efetividade, deve ser encarado como um ativo social de valor inestimável e, como tal, ser posto ao serviço da política de crescimento e emprego da União, como instrumento estrutural de preparação e lançamento dessa política e não como complemento avulso e contingente de medidas nacionais de gestão conjuntural dos mercados de trabalho. O mercado único digital, a transformação estrutural dos mercados de trabalho e a organização do “quarto setor”, são os próximos desafios.

Tese n.º 5: Completar a arquitetura da união monetária no quadro da zona euro

Face à interdependência e complexidade da economia europeia (e das economias nacionais) no contexto da globalização, a política monetária comum (PMC) não pode ficar refém de escolas de pensamento, de posições dogmáticas nacionais, de estatutos e procedimentos das instituições monetárias atuais, sob pena de pôr em risco não apenas a saúde da economia europeia mas, sobretudo, das economias mais frágeis da União cuja equação monetária é estruturalmente incompatível com a situação vigente que é de moeda única sem união monetária e sem política monetária comum; a transição para uma estrutura federativa tem por objetivo, justamente, completar e finalizar o quadro da UEM e colocar a sua política económica ao serviço das economias mais frágeis da Federação sem prejudicar a sua estabilidade.

Tese n.º 6: Completar a arquitetura da união orçamental no quadro da zona euro

Estamos cada vez mais próximos do limiar que distingue a política económica da União da política económica da Federação. Na primeira, a equação da política económica afirma o primado da estabilidade e a sequência temporal entre estabilização e crescimento que os automatismos do mercado se encarregarão de promover. Na segunda, a equação da política económica afirma a simultaneidade entre estabilização e crescimento por via de uma política de crescimento própria da Federação. Esta simultaneidade da política económica da Federação é materializada por três alterações políticas fundamentais que requerem modificações dos tratados: o alargamento das missões do BCE (a política monetária da Federação e a supervisão da união bancária), a dimensão e a conexão do orçamento ao nível da atividade económica (a política orçamental da Federação) e a mutualização da dívida pública realizada pelo Tesouro da Federação (a política financeira da Federação).

Tese n.º 7: Completar o sistema de política regional e a cooperação territorial descentralizada no quadro europeu

Enquanto não existirem orientações políticas precisas acerca da arquitetura espacial da União, enquadradas por uma estratégia de crescimento global, as políticas europeias, nacionais e regionais, movidas por overbooking territorial, tenderão a ser conflituantes entre si e extremamente disputadas, podendo, por essa via, alimentar os regionalismos de vária índole à procura de legitimidade autonomista. Julgamos que essas orientações poderiam ser devidamente abordadas no quadro de uma Federação de Estados-Nação e no âmbito de um New Deal de inspiração federal com base na formação e integração de euro-regiões, euro-cidades e outros agrupamentos europeus de cooperação territorial.

Tese n.º 8: Construir a legitimidade europeia com base na prevenção dos riscos globais e na provisão de novos bens comuns

O risco moral e o passageiro clandestino estão na base da principal regra de oiro do capitalismo, a saber, “privatizar o benefício e socializar o prejuízo”. Em que medida pode a Federação Europeia de Estados-Nação construir uma ética prática da legitimidade política e social fundada na prevenção do risco moral, por um lado, e na precaução do risco global, por outro, assim como na realização do bem comum de modo a evitar a maldição e a consumação da “tragédia dos comuns”.

Tese n.º 9: Completar a arquitetura institucional da União e a governação multiníveis com base no princípio geral de subsidiariedade

A tese da governança multiníveis diz-nos que, tal como revelam os exemplos do federalismo cooperativo alemão e do federalismo dual americano, e sem prejuízo de uma reforma institucional interna, é tão ou mais decisiva a qualidade democrática (legitimidade, eficácia, eficiência e efetividade) das ligações, inputs e outputs, entre níveis de governo e administração (a governance) do que a concentração da reforma sobre o “transformador institucional” (o governing); quer dizer que não há uma relação direta entre estrutura e resultado e que um enfoque excessivo na reforma das instituições europeias não se traduz, necessariamente, numa melhoria do modo de governação e resultados obtidos.

Tese n.º 10: A futura Federação Europeia só será um regulador doméstico acreditado se for um regulador cosmopolita reputado

Da mesma forma que a política europeia tem primado sobre a política doméstica, para efeitos de regulação interna, também a política internacional prevalecerá, cada vez mais, sobre a política europeia. Esta é a razão pela qual a política externa, em todas as suas dimensões, se deverá constituir como um dos principais núcleos de política pública da Federação. Esta missão fundamental tem, contudo, um forte impacto na estrutura e nas opções orçamentais e pode pôr em causa a política europeia no seu conjunto. A política migratória e o regresso do nacionalismo provam-no à evidência.

Nota final: como é sabido, em maio de 2019 haverá eleições para o Parlamento Europeu. Sob o título genérico de “A crítica da razão europeia” farei, em próximos artigos do Observador, o desenvolvimento de cada uma destas teses. É o meu modesto contributo para o debate e a discussão sobre o assunto.