No último Expresso, José Soeiro, sociólogo, colunista desse jornal, militante do Bloco de Esquerda e ex-deputado por esse partido, repescou o assunto do Conde de Ferreira e da censura de uma exposição artística no Centro Hospitalar Conde de Ferreira, no Porto.

Esta repescagem não é de estranhar. Como já vimos no passado a respeito de Grada Kilomba — cujo banalíssimo facto de não ter sido escolhida para representar Portugal na Bienal de Veneza levantou clamores de “racismo”, fez com que, durante meses, muitos radicais de esquerda escrevessem rios de tinta, rasgassem vestes e arrepelassem cabelos — os militantes woke, obcecados com a questão da antiga escravatura, fazem agora render o peixe do Conde de Ferreira. A extrema-esquerda quando abocanha não larga. Por isso José Soeiro recebe o testemunho de um companheiro de equipa e volta ao assunto, prosseguindo a corrida. Nada traz de novo a não ser um ataque ao PSD, por intermédio da sua vereadora na Câmara do Porto, mas, de caminho, diz algumas asneiras.

Não, José Soeiro, o Brasil não prolongou o tráfico transatlântico de escravos até 1888. Esse foi o ano em que o Brasil emancipou os escravos existentes no país. O tráfico de negros vindos de África já havia terminado mais de trinta anos antes, na sequência da pressão britânica e da lei Eusébio de Queirós, de 1850.

E sim, ex-deputado Soeiro, por muito que lhe custe a engolir ou a entender, em 1761 Portugal aboliu, de facto, a “escravatura” no seu território europeu, só que, como já se esclareceu dezenas de vezes, essa palavra tinha, nos séculos XVIII e XIX, um significado diferente daquele que actualmente, por norma, se lhe dá. Significava “tráfico de escravos” (ou “tráfico da escravatura”, como também se dizia) e o Marquês de Pombal proibiu efectivamente, ainda que de forma parcial e limitada, esse tráfico, isto é, interditou a entrada de novos escravos na metrópole portuguesa. Para a sujeição de pessoas ao trabalho coercivo, à perda de controlo sobre o seu corpo e o dos seus filhos e outras formas daquilo a que Orlando Patterson chamou “morte social”, usava-se a palavra “escravidão” ou, mais correctamente, a expressão “estado de escravidão”.

E de novo não, José Soeiro, não sugira que há silêncio acerca da escravatura ou do Conde de Ferreira e de outras pessoas que ganharam dinheiro com o tráfico de escravos. Já houve esse silêncio, de facto, mas acabou há muito. Eu próprio escrevi um livro, em 1999, cujo título é Os Sons do Silêncio, o meu colega José Capela publicou, em 2012, um estudo sobre negreiros específicos intitulado Conde de Ferreira & Cª. Traficantes de Escravos, Arlindo Manuel Caldeira escreveu, em 2013, Escravos e Traficantes no Império Português, e há muitas outras publicações sobre o assunto. Acresce que também há, desde Abril de 2017 — ou seja, há mais de seis anos —, um amplo debate público sobre a questão da escravatura, debate que tem gerado mais de uma centena de artigos, livros, e colóquios, entrevistas e muitas intervenções radiofónicas e televisivas.

José Soeiro parece ignorar tudo isso e fala na “necessidade de aprofundar o debate” sobre o tráfico de pessoas escravizadas. Porquê? Porque convém aos woke de extrema-esquerda fazer de conta que o debate não existe, ou que é débil, e que há um pesadíssimo e impenetrável silêncio a cobrir o envolvimento de Portugal na questão da escravatura. Precisam desse imaginário silêncio para justificar a continuação da sua campanha política de endoutrinação e lavagem aos cérebros. É falso, dupla e triplamente falso que assim seja, mas a extrema-esquerda tem uma relação muito particular com falsidade e verdade, e não será esse pequeno detalhe que a fará desistir ou mudar de rumo. O que importa é não largar o osso da escravatura, ainda que se continue teimosamente tão ignorante como em 2017, quando este debate público começou.

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