Enquanto o mundo se alarma com a eleição presidencial norte-americana, sem aparentemente perceber que a vitória de Trump, além de se dever a uma vetusta constituição desadaptada da América real, é uma consequência das presidências anteriores, a começar pela de Obama, que iniciou o movimento de isolacionismo dos Estados Unidos; entretanto, a «feira de gado» continua a provocar os seus efeitos inesperados em Portugal… Antes de ser ministro, Santos Silva era sociólogo e classificou bem aquilo que efectivamente se passa na chamada Comissão Permanente de Concertação Social…
Esta «comissão» é o órgão mais conhecido de um Conselho Económico e Social criado em 1991, em pleno «cavaquismo», à imagem do das Nações Unidas (que inclui a OMS, a FAO, a UNESCO, a OIT, etc.); e sobretudo o da Europa (criado em 1957). Reinava então uma espécie de pacto rotativo entre os partidos social-democratas e democratas-cristãos. Foi a época de ouro do chamado «neo-corporativismo» denunciado, aliás, pela esquerda radical, que não esquecera que, na Itália de Mussolini, o corporativismo original, como ficção da abolição da «luta de classes», substituíra os patrões por «datori di lavoro»!
Basta porém pensar na eleição de Trump, no referendo do Brexit e nos problemas da própria União Europeia para saber que, hoje, as coisas já não se passam daquela forma. Antes pelo contrário. Quando criou a «concertação social», imediatamente antes de aderir ao Tratado de Maastricht sem o submeter a referendo, Cavaco Silva gozava não só de uma sólida maioria absoluta de 50% desde 1987 e, sobretudo, de uma organização corporativa profundamente enraizada pelo Estado Novo, como mostrou uma vez por todas o seu maior estudioso, Manuel de Lucena. O governo podia assim dar-se ao luxo de fazer participar os representantes oficiais das associações sindicais e patronais – onde a banca, que eu me lembre, nunca esteve representada – na política sócio-económica da época. É bom recordar que, de então para cá, a CGTP votou praticamente contra todos os acordos da «concertação social»!
Com o fim da maioria absoluta, a «concertação social» degenerou numa feira de gado onde o governo, que já era por definição o maior patrão do país, procurava a paz social entre os outros patrões e os seus empregados, já então escassamente representados pelas respectivas associações, como se verificou nos estudos que se começaram a fazer nessa altura. Em tempo de vacas gordas, é caso para o dizer, os vendedores de gado acabavam sempre por se entender e a dívida aumentava; é só fazer as contas. Em época de penúria, como é hoje o caso e sem maioria governamental estável, ficou à vista de todos o que acontece: «Em casa onde não há pão…».
Desentenderam-se pois os feirantes, só que desta vez, os sagrados princípios ideológicos de uma fatia significativa da maioria parlamentar – o BE e o PCP, que não deixam de se controlar um ao outro – desfizeram a ficção da «concertação», cujos limites residem algures entre o dinheiro disponível e a paz social… Perante a feira desmontada, o secretário de Estado Pedro Nuno Santos – porta-voz encartado da «geringonça» e cioso do seu lugar sentado à direita do primeiro-ministro no banco do governo – exclama contra toda a evidência: «O PS nunca mais vai precisar do PSD»!
É algo que jamais se tinha ouvido em Portugal e que põe fim, se ele fala realmente em nome do PS, a qualquer pacto ou acordo presente ou futuro entre os dois maiores partidos portugueses, que são simultaneamente as duas mais importantes correntes políticas europeias de apoio à zona euro e às políticas comunitárias que sustentam a moeda única. Tal declaração de ruptura e de ódio partidário só seria exacta, contudo, se o PS pudesse dispensar os votos dos deputados da esquerda dita pura e dura, mas não pode!
E lá se vai não só a «concertação social» como a possibilidade de enganar um mundo e o outro, aliando-se o governo ora a uns, ora a outros, a fim de manter a ficção neocorporativa. Esta só funciona com o rotativismo entre o PS e o PSD, mas os porta-vozes oficiais do governo querem, visto que estamos em plena gíria rural, o sol na eira e a chuva no nabal… Em tais condições, razão tem o deputado europeu do PS, Francisco Assis, ao sugerir que o PS peça ao Presidente da República um desempate nas urnas, como eu próprio achei que devia ser a função do PR, mas afinal António Costa e o seu partido, apesar das sondagens aparentemente favoráveis, parecem não querer apresentar-se às eleições com o ónus do apoio comunista e bloquista, seja hoje e sobretudo no futuro.
É neste quadro de muitas ilusões e mentiras que uma pessoa é obrigada a perceber por que razão, apesar do dinheiro gasto, a economia não arranca e o investimento não surge, nem de dentro do país quanto mais de fora. Do estrangeiro, esgotaram-se as fontes falsamente amigas da lusofonia ou dos confins da China. Agora que ninguém pega no antigo BES a não ser os fundos-abutres, é com o apoio do PCP e do BE, que querem mais nacionalizações e se sentem próximos de uma saída da UE provocada pela desintegração da actual Zona Euro, que o PS pretende governar e fazer reformas urgentes? Não, afinal António Costa não quer novas eleições, mas tão só durar e ocupar o aparelho de Estado de cima a baixo. O fim da feira de gado serviu para mostrar isto.