Antes de dar opiniões, é bom saber que a chamada «concertação social» não é um órgão de decisão política, mas apenas um desses agrupamentos neocorporativos que encheram a Europa desenvolvida, então dominada pela aliança entre os partidos sociais-democratas e demo-cristãos, quando a nossa Constituição de 1976 foi elaborada, nas condições que se conhecem. Nessa altura, já um ícone da esquerda como Habermas havia denunciado esse órgão interclassista num dos seus livros mais famosos: «Os problemas de legitimação do capitalismo tardio» (1973).

Hoje em dia, muitos dos países democráticos com órgãos desse tipo já se desfizeram dessa forma de pressão corporativa sobre os governos, como o Reino Unido, além de que já pouco resta da aliança entre a Social-Democracia e a Democracia-Cristã. No caso português, basta dizer que foi raríssimo uma decisão da «concertação social» ser apoiada pela CGTP. Só que, até à formação do actual governo, isso não tinha importância. Com efeito, as eventuais decisões alcançadas em sede de «concertação social» só adquirem valor quando o governo legítimo do país as ratificar politicamente.

Com a formação do actual governo – politicamente ilegítimo, pois nunca foi anunciado pelo PS antes das legislativas de 2015, e só foi legalizado devido à impossibilidade constitucional de dissolver o parlamento – a situação mudou. Se o actual governo tivesse efectivamente a maioria, que não tem!, promulgaria sem problemas a decisão dessa corporação de interesses que é a concertação social. A «geringonça» é um governo pseudo-maioritário que depende do PCP e do BE para aprovar qualquer decisão. Acontece que, desta vez, a redução da «TSU dos patrões» decidida na «concertação social» não tem, aparentemente, o apoio do PCP e do BE.

É verdade que, no passado, o PS conseguiu fazer passar uma ou outra decisão com o apoio dos partidos da oposição. Porém, essa época já passou. Hoje, o PS reitera todos os dias a sua caminhada cega, como acontece desde o fim do ano passado com bancos manifestamente inviáveis, enquanto o juro da dívida cresce três a quatro vezes mais depressa do que a economia do país. Entretanto, o PS e os seus indispensáveis aliados nunca mantiveram com as oposições, nomeadamente o PSD, outra relação que não fosse a acusação sistemática (a existência da «direita» legitimaria todos os desaires da «esquerda»), bem como a responsabilização pelas dificuldades sucessivas que o Governo tem encontrado perante as consequências das «reversões», para não falar das causas mais longínquas da bancarrota de 2011.

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Em desespero, o PS e os seus aliados lançaram nas últimas semanas uma rajada de ataques mediáticos para promover a substituição do actual líder do PSD pelo mesmo Rui Rio de quem os gurus televisivos já falavam quando puseram António Costa no lugar de Seguro antes mesmo das eleições de 2015. Para cúmulo, o PS indigna-se ao descobrir que o PSD não lhe fará o favor, desta vez, de apoiar uma decisão da «concertação social» que não merece a concordância do PCP e do BE. Num cenário de ilegitimidade governamental como este, em que os outros apoiantes do governo se recusam a votar na proposta do PS, sem qualquer iniciativa prévia deste último para solicitar um eventual apoio das oposições – por exemplo mediante a troca por outras tantas decisões –, estava o Governo à espera que o PSD viesse tirá-lo de um enorme embaraço político que expõe à vista de todos a fragilidade da base governamental?

Repito: a «concertação social» não é um governo nem está acima deste. É um órgão corporativo de duvidosa representatividade (repare-se que o maior «lobby» potencial do país – os pensionistas – não tem qualquer representação), cujas reivindicações dependem inteiramente do Parlamento. Ora, o Governo actual é do PS e, se precisa de obter apoio parlamentar da oposição, seja para o que for, tem de pedi-lo e porventura garantir em troca algo de tangível, a começar neste caso pelo silêncio das campanhas mediáticas contra a actual liderança do PSD…

Se o Governo não fosse uma geringonça, a esta hora era António Costa quem exigiria ao PCP e ao BE que deixassem passar a alteração da TSU. E se estes se recusassem a tal, ou o primeiro-ministro se demitia ou um Presidente da República menos passivo que o actual, perante o oportunismo do PS, tinha aí um bom motivo para convocar eleições. A aritmética parlamentar é tal que não se pode excluir que um ou mais dos aliados do PS tenham de o apoiar a fim de evitar a queda do governo a prazo…

Seja como for, a partir daqui, a única forma de pôr termo à instabilidade política, bem como aos sucessivos desaires governamentais no plano financeiro e económico, com os bancos estatizados à beira de falir e a economia sem crescer, não falando do aumento da dívida, seria convocar eleições, mas o PR não tem ar de se atrever a isso. Com efeito, nem a Eurosondagem se atreve a prometer a maioria ao PS e, infelizmente, o tempo de uma coligação como o «bloco-central» de 1983-85 já passou… António Costa e o PS devem reflectir seriamente sobre os aliados de que se rodearam, pois se estes não cedem desta vez, o melhor é o Governo preparar-se para uma nova crise da dívida, com tudo o que se seguirá e em que é melhor não pensar.