Foi em Abril do ano passado quando, em Portugal, surgiu uma primeira vaga de denúncias de assédio sexual. Várias mulheres relataram situações em que, nos seus contextos profissionais, tinham sido intimidadas por avanços sexuais indesejados ou mesmo por chantagens sexuais da parte de superiores hierárquicos. Começou com uma entrevista a Sofia Arruda no programa Alta Definição (SIC), emitido a 17 de Abril. Nas semanas seguintes, muitas outras mulheres deram cara e voz a outras denúncias — de Cristina Ferreira a Catarina Furtado, ou ainda 17 outras mulheres que, numa edição da revista Sábado, descreveram as situações pelas quais passaram. Há um ano, estes foram os rostos corajosos do #metoo português, amplamente celebrado enquanto extensão nacional do movimento de denúncias que percorreu o mundo desde 2017, na sequência dos abusos de Harvey Weinstein, nos EUA.

Um ano depois, o que aconteceu? Nada. Após um ímpeto inicial, as denúncias extinguiram-se e o assunto foi devolvido ao silêncio onde sempre habitara. De resto, mesmo as denúncias divulgadas quase nunca nomearam os agressores. A opção não diminui a importância das denúncias, nem é uma crítica às denunciantes. Apenas é relevante porque ilustra como a cultura de impunidade em Portugal é forte: mesmo as mulheres corajosas que expuseram as suas situações evitaram dar esse passo de identificação, por recear represálias. Percebe-se: Portugal é um país pequeno, de poderes instalados, de nepotismos, de endogamias, de pequenas redes de influência e, portanto, de instituições fracas onde reina a impunidade de quem está em posições de poder. Basta, aliás, observar o que sucedeu nos casos em que os agressores foram nomeados: Luís Monteiro (então deputado do BE) e Manuel Alberto Valente (editor) foram espontaneamente protegidos pelas suas redes políticas e profissionais. A mensagem não poderia ter sido mais clara: em Portugal, as denúncias esbarram nas teias sociais das elites. Não admira que muitas mulheres optassem pelo silêncio.

Dizer que nada aconteceu no último ano contém uma imprecisão. Houve um gesto cuja importância não pode ser menorizada: após várias queixas de estudantes por assédio na Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa (FDUL), sem quaisquer consequências, Catarina Preto, presidente da Associação Académica da FDUL, expôs o tema em reunião do Conselho Pedagógico da faculdade. Com o apoio de professores impressionados pelos relatos, foi criada na FDUL uma comissão paritária de professores e alunos para investigar a situação e receber as denúncias por canal próprio. Ou seja, o processo foi institucionalizado, para quebrar a relação de poder que pudesse inibir as denúncias e para permitir uma investigação da FDUL. E funcionou. Conforme noticiado no DN, que relatou todo o caso, as denúncias validadas (50) dizem respeito a 31 docentes, sendo que 7 dos docentes concentram mais de metade (30) das denúncias.

Eis a lição. O #metoo português do ano passado esmoreceu porque entregou injustamente às vítimas o ónus de se exporem publicamente — e, para as que o fizeram, correndo o risco de se tornarem elas próprias o alvo dos julgamentos sociais. O caso da FDUL mostrou a eficácia de um caminho alternativo: a correcção das situações de assédio não deve depender da coragem e da exposição pública das mulheres, mas sim estar assente na criação de condições institucionais que lhes possibilitem fazer as denúncias em segurança. Afinal, a Justiça não se constrói a falar alto nas redes sociais, mas sim através de instituições fortes que zelem pelo bem-estar das comunidades. E porque o Portugal tacanho e endogâmico não tem de ser uma inevitabilidade, esperemos que este caso da FDUL seja o exemplo inspirador para uma segunda vida do #metoo português nas empresas, nas instituições públicas e nas universidades — desta vez, pelos canais institucionais próprios, com investigações formais e com consequências.

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