1Não podemos passar a vida a barafustar com a forma como os nossos filhos vivem agarrados aos ecrãs — com tudo o que isso lhes traz de distorção à atenção, à forma como usam a palavra, como pensam e como convivem — e, ao mesmo tempo, confiná-los numa escola virtual, que se reparte entre ecrãs, sem ponderarmos os custos que isso pode ter para a sua aprendizagem. Por tudo isso, será importante percebermos que relação é esta – a dos nossos filhos com a tecnologia – na forma como os educamos. Afinal, a tecnologia estraga a infância, estraga o brincar e estraga o aprender? Sim ou não?…

2As crianças saem, correm, brincam e sujam-se? Não. Estão “presas” aos ecrãs. De quem é a responsabilidade? Dos perigos do espaço público?… Da tecnologia, claro. As crianças jogam à bola, jogam à apanhada ou jogam à bulha? Não. “Perdem-se” em videojogos “violentos”. De quem é a responsabilidade? Da forma como desistimos de afrontar a forma como as crianças “não gostam de ser contrariadas? Não. Dos jogos; claro! A tecnologia é a babysitter dos nossos filhos mais pequenotes, e eles, aos 6, já navegam, com poucas restrições, no YouTube e, muito antes dos 12, já têm perfis nas redes? Sim. De quem é a responsabilidade? Da forma como precisamos que eles estejam mais vezes quietos e calados? Não. Da tecnologia; claro. Os nossos adolescentes acordam agarrados ao telemóvel, comem agarrados ao telemóvel, vivem agarrados ao telemóvel e dormem agarrados ao telemóvel? Sim. De quem é a responsabilidade? Da forma como nos “encolhemos”, quando se trata de definir regras de bom senso para o seu uso? Não. Da tecnologia, claro. Ora, sejamos claros, por favor. A tecnologia faz bem às crianças. É um factor de crescimento. É uma “vitamina” para a sua aprendizagem. Mas mais tecnologia exige melhores pais. E melhores professores. E isso não é (nada) mau!

3A mim incomoda-me que a tecnologia seja — muitas vezes! — quase equiparada à condição de “Bicho Papão”. Que faz com que os pais se lamuriem. Faz com que protestem. Mas que parece “vencê-los” mais do que seria suposto. Muitas vezes, sem que se dêem conta disso. Opondo o brincar ao ar livre aos “malefícios” da tecnologia. Como se a infância dos pais tivesse sido bucólica, alegre e, mesmo, “ecológica”. E a infância dos filhos estivesse a ser “pervertida”, debaixo dos olhos dos pais. E diante da sua impotência. Por influência da tecnologia; claro! Ora, nem a infância dos pais terá sido tão “cor de rosa” assim, nem a tecnologia é um “buraco negro”. Nem o ar livre, o brincar e o jogo, a gritaria, ou o modo como rasgam as calças e “esfolam os joelhos” tem de ascender à categoria de “paraíso perdido”. Nem, muito menos, isso tem de ser engolido por uma “invasão” de ecrãs, como se não fosse possível aprender com o melhor desses dois mundos. A infância dos pais só é incompatível com a infância dos filhos quando os pais a evitam reencontrar diante das novidades e dos desafios que a infância dos filhos inevitavelmente lhes traz.

4Vejamos, por exemplo, os videojogos. Na verdade, fazem bem às crianças. Implicam atenção. Reflexos. Lógica. Operações mentais. Combinações rápidas. E pensamento complexo, em tempo real. Competitividade. “Acção”. Etc. Mas o seu consumo excessivo “atrofia-as”. E, quando ele é exorbitante e exagerado, “droga-as”. Porque as empurra para o impulso e para o agir. E as impede de escutar. E de pensar. Mas, mesmo aí, não é a tecnologia que ameaça as crianças. Será mais a nossa “demissão”, quando se trata de sermos uma “entidade reguladora” em relação a ela. Mesmo que os pais saibam, por exemplo, que “jogar em rede” não se trata só de deixar que os filhos brinquem. Ou que “convivam” com os amigos. E que comuniquem e “confraternizem” com eles. Ou, simplesmente, que sejam aceites por um grupo escolar de que façam parte. O lado de “brincadeira perigosa” desses “bombons” a que os pais “fecham os olhos” são as horas infindáveis de ecrãs para que isso “escorrega”. O palavreado próximo da fúria para que puxa. As compras para que, inúmeras vezes, isso desafia. E uma “malta esquisita” que, por vezes, se associa a um grupo de bons miúdos como, por vezes, acontece. Então, será a tecnologia “o perigo”, ou a forma como está sempre vários passos à frente da nossa atenção, e exige mais e mais de nós?

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5E, pensemos, por fim, na escola. Já antes as crianças, quando chegavam à escola, eram sábias; em imensas pequenas coisas. Agora, por maioria de razão, com tantas e tão diversificadas fontes de informação ao seu dispor, mais acutilantes se tornam. Que bom!! Mas, ainda assim, a mim, preocupa-me a forma como a tecnologia e a escola parecem ser “opostos”. Que fique claro: não é justo que às aulas presenciais se oponha o uso da tecnologia na educação. As aulas presenciais são insubstituíveis. O convívio “pele a pele” entre os estudantes é insubstituível. O contacto físico e o olhar dos professores é insubstituível. Mas a tecnologia… também! Não é a tecnologia que substitui a escola. Portanto, isto de opor aulas presenciais e tecnologia não é razoável. É insinuar que a tecnologia é um perigo. Ao mesmo tempo que se recorre a ela. É reafirmar que as aulas presenciais é que são “a valer” e, depois, “presentear” longos períodos de aulas através de écrans, como se, com isso, não se estivesse a passar “nada”.

Em segundo lugar, é precipitado que se suponha que um tablet deva ser usado, até, para aprender a escrever. Nós precisamos de desenhar as letras. De as reconhecer e de as nomear. De lhes atribuir um som, ao mesmo tempo que damos movimento a um traço. De conciliar o que ouvimos com o que desenhamos e com a “música” que esse desenho vai tendo. Logo, pôr as crianças a aprender a escrever num tablet é transformá-las (um bocadinho) em crianças “iletradas”. Mas cheias de competências digitais”.

Em terceiro lugar, não vale a pena entrarmos pela demagogia da reutilização dos livros. Porque um livro é pessoal e intransmissível. Tem um aroma! Um toque pessoal, em cada anotação que se faz. Folhear um livro é uma descoberta. E uma aventura. Voltar a ele um primeiro amor, segunda vez. Logo, transformar livros em PDF’s é o mesmo que transformar o sabor duma refeição especial numa espécie de alimento liofilizado, sem calorias e sem graça. Mas a tecnologia pode ser “o caderno de apontamentos” do livro. A “página das soluções”. A “aula das dúvidas”. Ou o fórum da sua discussão. Mas não há nada que substitua quem as ajude nas sínteses. Hoje mais do que nunca! Doutra forma, ter a ideia que informar é incentivar a obesidade de informação, e que aprender será passar pelo conhecimento e nunca discorrer com ele, pela “mão” de alguém, não faz com que as culpas do que se passa com os insucessos da escola sejam da tecnologia. Mas, porventura, de quem a tenta substituir por soluções tecnológicas pouco adequadas a quem aprende.

Em quarto lugar lugar, paremos, por favor, de assumir que, porque as escolas têm quadros interactivos e tablets, são modernas. De que vale isso se a escola, muitas vezes, não tem em conta, no essencial, a forma como as crianças pensam? De que vale isso se a escola insiste que se aprende da parte para o todo, da mesma forma e à mesma velocidade? De que vale a tecnologia na escola se a escola continua, demasiadas vezes, a ver os estudantes como os via no século XIX?

Em quinto lugar, mais imprudente se torna que a escola convide os alunos a levar telemóvel para a sala de aula. E os deixe usar o telemóvel na sala de aula. E os incentive a trocar os recreios pelo telemóvel. Isso será próprio duma escola moderna ou duma escola que exibe a “modernidade” tecnológica como areia que atira para os nosso olhos?

6A tecnologia na educação não significa que a escola se transforme numa indústria. E muito menos numa linha de montagem de tecnocratas. O grande desafio do futuro passa pela forma como a tecnologia se pode tornar cúmplice da escola. Sem se substituir a ela. E sem que, contudo, perca de vista que a educação nunca se faz à margem dos professores. E assumindo que aprender tem “qualquer coisa” de artesanal. E, sobretudo, de pessoal. Mais tecnologia exige melhores professores! Que percebam que sentir é conhecer. Que o conhecimento nunca se estrutura à margem da palavra. Que re-conhecer faz da relação o instrumento onde o conhecimento nos leva mais longe. E que a “inteligência artificial” — que a escola, muitas vezes premeia — dê lugar ao pensamento. À descoberta. À criação. Porque a escola serve para pôr problemas. Serve para adubar a dúvida. Não para uniformizar as soluções. E, muito menos, para “matar” a curiosidade. Afinal – e unicamente – porque sabedoria rima, por fora e por dentro, com alegria.

7A vida é uma escola. A tecnologia é uma escola. Mas a escola é… “A Escola”! Por isso, se não tem sentido deixarmos que a escola tenha “ímpetos expansionistas” e comprometa a experiência de vida das crianças, muito menos é razoável que deixemos que a tecnologia leve isso ainda mais longe e, em conluio com a escola, permita — com o nosso patrocínio — que as crianças tenham menos infância e pior escola. A escola nunca será substituída pela tecnologia! Mas a forma como a escola democratizou o mundo tem na tecnologia “o degrau a seguir” que pode fazer com que a escola fique mais perto de se tornar “para todos”! Logo, mais tecnologia não significa menos brincar e menos escola. A tecnologia não estraga a infância. Assim nós não estraguemos as crianças com ela.