Ainda que nos pareça ter sido já num tempo longínquo, foi apenas no passado dia 2 de Março deste ano que a Ministra da Saúde confirmou ao país que foram detectados os dois primeiros casos de infecção por Covid-19 em Portugal. Duas semanas depois, às 20 horas do dia 18 de Março, a seguinte frase foi projectada pelos altifalantes dos televisores e irrompeu pelos lares adentro: “Portugueses, acabei de decretar o estado de emergência.” Hoje, passados quase nove meses, colocou-se de novo esta hipótese sobre a mesa. Contudo, é necessário perceber o que mudou desde então.

Durante todo o período em que o país se encontrou em estado de emergência, tanto Portugal como os Portugueses se viram bastante elogiados pela sua conduta. Por um lado, elogiaram-se os Portugueses por terem aderido não só aos meios de protecção recomendados – máscaras, viseiras, luvas e álcool líquido ou em gel -, mesmo quando o discurso ainda se centrava sobre se a sua utilização seria benéfica, prejudicial, ou irrelevante, como, também, por terem cumprido quase de forma voluntária o dever de confinamento – chegaram mesmo a verificar-se casos de negócios que fecharam portas dias antes do comunicado presidencial. Por outro lado, elogiaram-se os altos governantes do Estado e os directores de diversas instituições públicas e privadas por terem agido de forma musculada e preventiva dias antes de a Organização Mundial de Saúde ter declarado o estado de pandemia.

Desta forma, ao mesmo tempo que se colocava um país inteiro em casa, reconheciam-se não só as fragilidades de um Sistema Nacional de Saúde debilitado, bem como a intenção de proteger a todo o custo a saúde física dos cidadãos assim como também a sua saúde financeira. Recorde-se, a respeito disso, o braço-de-ferro entre António Costa e Hopke Hoekstra e o hurro motivador que daí se ouviu: “Re-pug-nante!” A expressão utilizada pelo Primeiro-Ministro não mostrava apenas o desagrado face às declarações de desconfiança proferidas pelo ministro das Finanças dos Países Baixos, “Re-pug-nante!” representava o apelo ao aspecto mais humano de uma União que se via mergulhada numa ameaça exterior e transversal a todos os seus países.

Assim, durante todo o mês que durou o primeiro estado de emergência, o clima sentido pela população não era ainda um clima de medo, mas de força, superação e solidariedade, um clima onde os sacrifícios pedidos à população a uniam na esperança de se ultrapassar, em conjunto, um ameaça que nos era desconhecida mas estava identificada. Todavia, o que a princípio se pensava ser uma corrida de sprint tornou-se numa maratona que começou a revelar as fragilidades de um corpo que estava, afinal, pouco preparado para mais do que um mês de esforços.

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As medidas que antes haviam sido impostas de forma ideologicamente democrática, livres de agenda política e que tinham como principal objectivo a protecção integral da saúde dos portugueses, assumiam, a pouco e pouco, contornos que as aproximavam cada vez mais de medidas de resposta a uma crise financeira e não a uma crise social. O que antes se caracterizava pela equidade, agora tornara-se exclusivo e arbitrário, revelando à sociedade os diferentes sectores que a constituem, mas organizados de acordo com a hierarquia-daquilo-que-é-essencial-à-vida.

Estava dado o primeiro passo para se desagregar aquilo que outrora se havia unido, quase inconscientemente, e o que se desagregava era precisamente um dos pilares fundamentais para se alcançar o sucesso no combate à pandemia: a união da população cimentada pela confiança na classe política. Assim, devido às medidas cada vez menos claras e perigosamente mais incompreensíveis, a população que outrora acreditava ter naufragado nas águas gélidas de um oceano desconhecido, via agora o seu vizinho do lado ser, ou resgatado, ou colocado de novo dentro de água, segundo os critérios obscuros dos salvadores, acabando por procurar por sua conta e risco o pequeno bloco de madeira que a colocaria à tona de água.

Certo é, que o sucesso de um Governo está, entre outras coisas, relacionado com a gestão que este faz dos seus segredos. Contudo, colocar as vozes que contra ele se levantam por detrás da cortina não se trata de revelar algo que não se quer que se saiba, trata-se, sim, de esconder informação útil aos cidadãos, retirando-lhes a autonomia e a hipótese de escolha.

Se foi o medo do desconhecido que nos uniu contra algo ameaçador, agora, que a ameaça se torna progressivamente mais conhecida, será pela exposição total e clara de tudo o que se sabe sobre o vírus que se voltará a unir a população de forma a que esta decida, por si, retomar o seu lugar no campo de batalha. Caso contrário, ao invés de se combater uma pandemia provocada por um novo vírus, corre-se o risco de ter que se lutar também contra o receio do autoritarismo, contra a ameaça do fascismo e os mal-entendidos do populismo – ameaças, que reais, já se fazem sentir em diversos países da Europa.

Francis Fukuyama, em The Pandemic And Political Order, diz-nos que as “populações podem ser convocadas para actos heroicos de auto-sacrifício durante algum tempo, mas não por tempo indeterminado”. E que as consequências geradas pelo sentimento de exaustão pessoal, combinado com os resultados negativos observados – “crescente taxa de desemprego, recessão prolongada, e uma dívida sem precedentes” -, conduzirão a revoltas políticas contra um alvo que, para o autor, resta saber qual será. Pergunto eu, mais alguém ainda não sabe?