Quem até há uns meses abrisse a página web da UNESCO (the Slave Route Project) poderia ler que “os primeiros combatentes pela abolição da escravatura foram os próprios escravos”. Aliás, a UNESCO considerava, e continua a considerar, que a revolta de Saint-Domingue (Haiti) foi o acontecimento que levou às abolições, e foi por isso que escolheu a data de 23 de Agosto — dia em que, no distante ano de 1791, eclodiu a referida revolta — como Dia Internacional da Memória do Tráfico de Escravos e da sua Abolição.

É verdade que muito recentemente a UNESCO moderou um pouco essa perspectiva tão taxativa — o que se saúda —, mas a teoria que defendeu e difundiu durante mais de duas décadas impregnou a opinião pública e não é, por isso, de estranhar que os que, entre nós, pretendem alterar o ensino da História queiram colocar nos programas da disciplina e em futuros manuais “descolonizados” que a abolição da escravidão se ficou a dever ao Haiti.

Será verdade? E, sendo verdade ou mentira, qual será a proveniência desta visão peculiar que vai ao arrepio daquilo que até há alguns anos os historiadores tomaram por certo? Relembre-se que durante quase dois séculos os historiadores explicaram a abolição do tráfico de escravos e da escravidão, como tendo resultado da vontade dos países ocidentais, com destaque para a Inglaterra. A razão pela qual o Ocidente se moveu nesse sentido foi explicada por puros motivos humanitaristas ou por não tão puros interesses económicos e políticos, e era aí, nessa alternativa, que residiam as eventuais discordâncias entre historiadores. Com duas ou três excepções que referirei adiante, a grande revolta que eclodiu no futuro Haiti, em 1791, não fazia parte da equação explicativa, a não ser como um longo período de desastre e de terror, no qual se havia arruinado uma valiosíssima colónia e tinham morrido 80 mil brancos e um número indeterminado de negros.

De onde virá, portanto, a teoria que a UNESCO acarinha e veícula? Para responder a essa pergunta, e para documentar a resposta, convém recuar até ao início de 1893. Nessa época, discursando em Chicago, o abolicionista negro Frederick Douglass explicou à audiência que a revolta dos escravos no Haiti havia sido determinante na emancipação universal, ou seja, que havia sido ela a mola real das abolições levadas, depois, a cabo pelos vários países ocidentais: “Não devemos esquecer” — disse Douglass, então — “que a liberdade de que os negros actualmente gozam se deve em grande medida à atitude heróica que os filhos negros do Haiti tiveram há 90 anos. Quando se bateram pela liberdade, bateram-se pela liberdade de todos os negros do mundo.” O orador reconhecia, obviamente, que os negros também deviam muito às sociedades abolicionistas que haviam sido criadas na Grã-Bretanha, nos Estados Unidos e noutros países ocidentais. Mas, insistia, deviam “incomparavelmente mais ao Haiti do que a todas elas”.

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

Esta visão dos acontecimentos era compreensível num homem como Douglass, que nasceu escravo, no Maryland, em 1818, e que conheceu bem os tormentos dessa condição: a precoce separação da mãe, o chicote, a frequente venda ou aluguer a senhores mais ou menos brutais. Aos vinte anos de idade Douglass conseguiu fugir para Nova Iorque, tornou-se uma pessoa livre e um abolicionista influente, e era natural que valorizasse muitíssimo a resistência dos escravos às violências dos senhores. Acresce que, no fim da sua vida, desempenhou funções de cônsul e de embaixador dos Estados Unidos e foi nessa condição que esteve no Haiti, em 1889-91, e que tomou contacto, de forma directa, com as realidades e a história desse país. E, como pretendia contrapor à reputação do africano passivo a imagem do negro lutador pela liberdade, adoptou uma perspectiva que dava uma importância desmesurada à grande revolta escrava que aí ocorrera em 1791 e que, por razões e meandros que não cabe referir aqui, mas que desenvolvi num outro artigo, acabaria por desligar a colónia da França e criar um novo país, o Haiti, onde a escravidão já fora, entretanto, abolida.

Digamos que aquilo que Douglass transmitiu à sua audiência, em Chicago, e à prosteridade, foi a versão que os ex-escravos do próprio Haiti — ou, de uma forma mais ampla, das Américas —, tinham dos acontecimentos. Essa versão não tinha eco nem reflexo historiográfico, mas permaneceu viva e foi, posteriormente, desenvolvida e ampliada por historiadores negros das Caraíbas, com realce para Cyril L.R. James e Eric Williams, dois naturais da ilha de Trinidad. Em 1938, James publicou The Black Jacobins, uma história da revolta de Saint-Domingue que colocava os escravos negros como principais agentes políticos da luta de classes e da acção anti-colonial. Aproximadamente na mesma época, em Capitalism and Slavery, Eric Williams realçou o papel que a ameaça escrava teria desempenhado na opção abolicionista britânica. Através da sua resistência, os escravos teriam criado uma pressão de tal modo importante que, a partir de determinado ponto, não deixara alternativa aos detentores do poder político em Londres. Na fórmula lapidar que usou, a questão ter-se-ia colocado da seguinte forma: “emancipação vinda de cima ou emancipação vinda de baixo, mas EMANCIPAÇÃO”.

O impacto destas interpretações foi, inicialmente, limitado, em parte devido ao posicionamento político dos seus autores — nomeadamente o de James, um assumido trotskista, então residente nos Estados Unidos e que passou pelas agruras do macarthismo. Mas após um período de latência, este tipo de interpretações retomou em pleno no ambiente ideológico contestatário da década de 1960 — período em que as obras de James e de Williams foram reeditadas — e, de degrau em degrau, tornou-se dominante. Inicialmente defendida por historiadores de esquerda com destaque para o ex-editor da New Left Review, Robin Blackburn (The Overthrow of Colonial Slavery, 1988), a proclamação de Frederick Douglass no discurso de Chicago difundiu-se, deu origem a uma tendência interpretativa compatível com o wokismo e o pensamento politicamente correcto, e recebeu o acolhimento e o alto patrocínio de uma organização política como a UNESCO, que a sancionou e lhe deu projecção e maior impulso, como já referi.

Ou seja, a versão dos ex-escravos vingou e impôs-se por via política (e, às vezes, também por via académica). O facto de ser, na origem, a visão dos ex-escravos não implica que possa ou deva ser desvalorizada ou desconsiderada. Mas, por outro lado, essa proveniência também não lhe confere um certificado de verdade, não obstante a nossa tendência romântica para adoptar e acarinhar a visão dos oprimidos. Brancos e negros tiveram muitas vezes condutas diferentes, quando não opostas, no que respeita à estratégia a adoptar para acabar com a escravatura, e tiveram, também, diferentes modos de perspectivar e de narrar os acontecimentos, suas causas e consequências. É muito interessante estudar e perceber cada um desses modos, mas um historiador não deve ficar por aí. Deve estar também, ou sobretudo, interessado na verdade. E a pergunta que importa fazer é justamente essa : a versão dos ex-escravos corresponderá à verdade ?

Não corresponde. É uma visão parcial e desequilibrada (o que, em História, é um grave pecado). De facto, em vez de serem um incentivo à abolição, a revolta de escravos no futuro Haiti e a torrente de horrores que lhe está associada, constituiram — excepção feita à influência que pode ter tido na actuação anti-escravista de Simon Bolívar — um contratempo e um travão no caminho para a abolição nos outros países. Aquilo que levou ao fim da escravidão na generalidade dos países ocidentais e coloniais que a praticavam foi o abolicionismo, um movimento político e ideológico que nasceu e se desenvolveu no Ocidente, a partir do último terço do século XVIII. Sem o abolicionismo e os abolicionistas, na sua maior parte pessoas livres e brancas, a escravidão teria muito provavelmente continuado a existir, mesmo no que viria a ser o Haiti.

Era isto que deveria ser ensinado aos adolescentes nas nossas escolas secundárias. Infelizmente, parece que vamos num sentido inverso que tende a omitir, a ignorar ou a desvalorizar esses abolicionistas e a sua acção, num evidente esforço de apagamento de factos históricos. Porquê? Talvez por se considerar que não será gratificante para o orgulho negro e para a identidade dos que se dizem descendentes de escravos reconhecer que a sua libertação se ficou largamente a dever a alguns brancos. Não, claro está, aos que escravizavam e oprimiam os negros, mas aos que se empenharam na causa da sua libertação e se bateram por ela, como Sonthonax, Wilberforce, Clarkson, Schoelcher, Lincoln e tantos outros (como, aliás, o próprio Frederick Douglass até certo ponto reconhecia). Todos nós devemos muito a esses homens dos séculos XVIII e XIX. Devemos-lhes, desde logo, o reconhecimento da sua existência e do seu papel histórico que tem sido tão esquecido nestes últimos anos.