O dia 13 é aziago para os supersticiosos mas, para os cristãos, felicíssimo, não apenas por ter sido o dia escolhido para as aparições marianas na Cova da Iria, mas também porque foi a 13 de Fevereiro de 2005 que a Venerável Irmã Lúcia nasceu para a vida eterna. Mas, nem sempre essa data evoca boas recordações pois, no passado dia 13, fez um ano que foi apresentado publicamente o relatório da Comissão Independente (CI), sobre os abusos de menores na Igreja Católica portuguesa.

Como é sabido, numa atitude de coragem e transparência, a Conferência Episcopal Portuguesa (CEP) pediu a um conjunto de pessoas um estudo sobre os abusos de menores na Igreja, nos últimos 70 anos. Para este efeito, constituiu-se a CI, que teve acesso aos arquivos diocesanos e dos institutos religiosos, e que, com os resultados apurados, elaborou um relatório final, que foi apresentado, com escusada pompa e circunstância, no auditório da Fundação Calouste Gulbenkian. Com efeito, a gravidade da matéria e o respeito devido ao sofrimento das vítimas exigiriam uma atitude mais discreta e reservada. Por outro lado, em termos de deontologia profissional, teria sido mais curial que a CI entregasse o seu relatório à CEP, que o encomendou e custeou, e que, no tempo e modo que entendesse mais oportuno, fosse o episcopado a divulgá-lo.

Para além desta falta ética, há também a lamentar a insuficiência técnica do dito relatório: a CI, que teve acesso a 564 testemunhos, validou 512, mas não logrou apurar um total fidedigno, tendo apresentado, por isso, uma mera estimativa, que apontava para 4.815 vítimas. A improcedência das suas conclusões decorre de um dado recente: dos 25 casos enviados pela CI para o Ministério Público, só 15 deram lugar a inquéritos, dos quais 12 já foram arquivados, pelo que só 3 estão ainda em curso (JN, 20-12-2023).

Como depois se veio a comprovar, muitos dos casos validados pela CI correspondiam a padres que já não estão no activo, que já faleceram, que há muito não exercem o ministério, ou até que nunca existiram. Também não faltaram alegados abusos que, investigados pelas competentes autoridades policiais e judiciais, foram desmentidos.

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Dois casos paradigmáticos foram particularmente escandalosos: em Lisboa, um conhecido pároco da cidade, com grande prestígio e uma excelente obra social, foi anonimamente acusado de ter cometido abusos e, por este motivo, viu-se obrigado a suspender, durante três meses, o exercício público do ministério. Decorrido esse tempo e dada a absoluta inconsistência da acusação, o caso foi arquivado.

Em Braga, um sacerdote exemplar e membro do cabido foi também alvo de uma análoga suspeição. No início da sua missão bracarense, o actual arcebispo primaz deslocou-se à localidade dos supostos abusos para pedir perdão às alegadas vítimas e disponibilizou um bispo auxiliar, que foi à dita paróquia ouvir as pessoas supostamente abusadas e receber as suas denúncias, mas ninguém se apresentou, nem fez nenhuma queixa contra o dito padre, cujo processo foi também arquivado, por falta de provas.

Note-se que, nos dois casos, a comunicação social não apenas divulgou as suas identidades, como os referiu publicamente como pedófilos, causando a ambos gravíssimos danos reputacionais, sem que nenhuma autoridade eclesial ou estatal, como o Provedor de Justiça, ou o Presidente da República, superiores garantes do Estado de Direito, se tenham insurgido contra esta grosseira violação dos direitos, liberdades e garantias constitucionais.

É propósito do episcopado reparar, na medida do possível, o terrível dano sofrido pelas pessoas abusadas. Para este efeito, constituiu-se uma nova equipa, o Grupo Vita (GV), que entrevistou as vítimas e averiguou como as socorrer, também economicamente. A 12 de Dezembro de 2023, o GV tinha identificado 64 vítimas e dado apoio psicológico a 18, das quais 4 solicitaram uma indemnização.

A este propósito, pergunta-se: a CEP, que não tinha o dever jurídico de proceder à investigação realizada pela CI, tem a obrigação de indemnizar as vítimas?!

Tendo em conta o enorme desfasamento entre as conclusões estimadas pela CI e a realidade depois verificada – das 4815 supostas vítimas, só se deduziram 25 participações às autoridades, das quais apenas 3 subsistem na actualidade – corre-se agora o risco de mais denúncias infundadas. À conta das indemnizações, é provável que não faltem pessoas sem escrúpulos que, para obterem benefícios económicos, se queiram servir deste expediente, agora que se inverteu a presunção de inocência em relação à Igreja Católica e aos seus membros.

De todos os modos, este perigo, que é real, não pode levar à negação de que a Igreja está, jurídica e moralmente, obrigada a pagar as indemnizações devidas pelos actos cometidos pelos seus sacerdotes, como é entendimento da Professora Mafalda Miranda Barbosa, a quem agradeço este douto esclarecimento. Com efeito, o artigo 500º do Código Civil determina que a pessoa colectiva é responsável pelos danos causados pelos seus agentes, funcionários, ou representantes, desde que se verifiquem dois pressupostos: a responsabilidade do agente e que o acto causador do dano seja praticado no exercício das funções que lhe foram confiadas. Entende-se que actua no exercício das funções aquele que agiu por causa delas e não meramente por ocasião delas. Ou seja, se o sacerdote se aproveitou da credibilidade que o seu ministério lhe confere para praticar um abuso, então a Igreja é também responsável e pode depois, por via de direito de regresso, exigir ao sacerdote o que tenha pago a título de indemnização. Os lesados devem fazer prova dos factos que consubstanciam o seu direito, razão pela qual só um tribunal pode decidir acerca da responsabilidade e arbitrar a devida indemnização. Claro que, se o sacerdote cometeu o abuso com um familiar próximo, ou um amigo da família, não procederá a responsabilização da Igreja, embora o acto seja igualmente criminoso e, do ponto de vista canónico, seja passível da demissão do estado clerical, ou de outra pena justa.

Tendo em conta, na estimativa dos abusos, a evidente má-fé, bem como o desfasamento entre os casos publicitados como constitutivos de possíveis abusos (25) e os inquéritos em curso (3), é óbvio que também agora pode haver excessos. A Igreja obrigou-se a cumprir não apenas com o que está, em sentido estricto, obrigada, mas também de acordo com o que é moralmente justo, mesmo que não lhe seja juridicamente exigível. É uma atitude que honra o nosso episcopado e que não foi seguida pelo Estado no caso Casa Pia: apesar de terem sido condenados um seu provedor e um monitor, que se aproveitaram dessas suas condições para abusar dos alunos, não consta que a instituição tenha indemnizado as vítimas.

Como muito bem disse D. Rui Valério, em declarações à Rádio Renascença, no passado dia 13 de Dezembro, não pode haver vítimas de primeira e de segunda e, portanto, todas devem ser ajudadas: não seria justo que só as que foram abusadas no âmbito da Igreja o sejam, até porque são uma escassa minoria. O Patriarca de Lisboa disse esperar que, o que já se conseguiu fazer, ao nível da prevenção e da formação, na Igreja Católica, seja alargado, com a mesma “coragem” e “transparência”, a toda a sociedade portuguesa.

Uma multidão de novos fariseus ficou desiludida com o número de abusos, bastante inferior à sua expectativa (e desejo), muito embora um único caso seja já horrível e absolutamente intolerável. Agora, com o pretexto das indemnizações, voltaram à carga, invectivando a CEP com recados sobre o que deve pagar, quanto e a quem! Em vez de pretenderem dar lições à única instituição que, de facto, não só inventariou os casos de abusos de menores havidos no seu seio, como também foi ao encontro das vítimas e se disponibilizou para as ajudar, também financeiramente, seria melhor que procurassem conhecer as crianças abusadas nas famílias, nas escolas estatais – como agora se viu, no Agrupamento Escolar de Vimioso – e nas associações desportivas. Para quando uma comissão que investigue os abusos de menores nesses âmbitos, onde são, infelizmente, muito mais frequentes?!