É escusado fingir que não aconteceu nada, ou que não foi assim tão grave, ou que há coisas piores. Não vale a pena olhar para o lado, ou varrer a porcaria para debaixo do tapete, como tantas vezes, infelizmente, aconteceu em relação à sórdida questão da pedofilia na Igreja católica.

Já numa das minhas primeiras crónicas no Observador, a 11 de Outubro de 2014, defendi que “Só uma Igreja verdadeira e humilde é credível”, apelando à total transparência em relação a estes casos, não só por respeito para com as vítimas e as suas famílias, mas também para a justa punição e erradicação dos criminosos.

No ano seguinte, também numa crónica aqui publicada a 28 de Novembro de 2015, defendi, em “A lei e os profetas”, que só por via judicial é possível extirpar este tumor maligno que tão seriamente mina a credibilidade da Igreja católica, porque atenta contra o que há de mais sagrado: a inocência das crianças e a confiança das famílias nos sacerdotes e religiosos a quem confiam os seus filhos, para que deles recebam educação cristã.

Em “Dois óscares para quebrar um silêncio ensurdecedor”, publicado no Observador, a 5 de Março de 2016, saudei o filme americano que recordou a forma como a imprensa desse país publicou, corajosamente, dados que permitiram pôr termo a esta terrível tragédia. Aplaudi essa iniciativa porque, caso tais abusos não tivessem sido denunciados pela imprensa, talvez não fossem consciencializados, nem a hierarquia da Igreja enfrentasse esta dolorosa questão. Com efeito, essas práticas hediondas eram, por sistema, vergonhosamente silenciadas pelos que deveriam ter agido contra os prevaricadores e em defesa das vítimas, tanto mais necessitadas dessa solicitude pastoral quanto eram, por regra, inocentes e indefesas.

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Talvez, desde esta tribuna, devesse ter feito mais e melhor, ao longo deste doloroso processo que agora, com as conclusões do grande júri da Pensilvânia e a carta de 20 de Agosto de 2018 do Papa Francisco, conhece mais um trágico desenvolvimento. Mas posso afirmar que, não obstante a insignificância desta minha prestação, desde sempre fui favorável às medidas que a Igreja universal e as igrejas diocesanas, bem como outras instituições religiosas católicas, se propõem finalmente adoptar, por forma a pôr termo, definitivamente, ao escândalo da pedofilia e do abuso de menores por parte de membros do clero e religiosos.

Como declarou o Papa Francisco, na sua recente carta de 20 de Agosto de 2018, “é imperativo que nós, como Igreja, possamos reconhecer e condenar, com dor e vergonha, as atrocidades cometidas por pessoas consagradas” ao longo destas últimas décadas, por vezes de forma continuada e implicitamente tolerada pela hierarquia católica. Mas não basta reconhecer o mal, como também quem na confissão se acusa de roubar deve, sob pena de que lhe seja negada a absolvição sacramental, repor o que ilicitamente subtraiu. Ou seja, os fiéis e os não-crentes estão fartos de palavras de veemente condenação desses factos e exigem, como é da mais elementar justiça, que se passe das palavras aos actos, não apenas em relação aos prevaricadores, que se devem emendar ou ser impedidos do exercício do ministério que sacrilegamente conspurcaram, mas também dos seus legítimos superiores, sobretudo quando, devidamente informados, nada fizeram, tornando-se assim cúmplices desses crimes. Mas também não são inocentes os que, constituídos em autoridade, nada sabiam, pois deviam saber, na medida em que era seu indeclinável dever estar a par da actuação dos seus subordinados.

Como escreveu agora o Papa Francisco, “olhando para o passado, tudo o que se faça nunca será suficiente para pedir perdão e procurar reparar o dano causado. Olhando para o futuro, nunca será excessivo tudo o que se fizer para gerar uma cultura capaz de evitar não só que essas situações aconteçam, mas também não possam ser ocultadas e perpetuadas.” Não basta, portanto, que se faça justiça em relação aos actos já perpetrados e que, como o Santo Padre também afirma, “nunca prescrevem”; é necessário garantir que não voltarão a acontecer casos desta natureza, nem ficarão, em caso algum, impunes.

É de justiça referir, a este propósito, a corajosa denúncia efectuada pelo Papa Bento XVI, poucas semanas antes de ser eleito sucessor de São João Paulo II. Com efeito, na sexta-feira santa de 2005, o então cardeal Joseph Ratzinger, ao dirigir a Via Sacra no Coliseu de Roma, referiu-se expressamente ao escândalo da pedofilia, como sendo uma das mais graves feridas do Corpo místico de Cristo, que é a sua Igreja, comparável ao sacrilégio de quem comunga indevidamente. “Quanta porcaria há na Igreja, e precisamente entre aqueles que, no sacerdócio, deveriam pertencer completamente a Ele! Quanta soberba, quanta autossuficiência!… A traição dos discípulos, a recepção indigna do seu Corpo e do seu Sangue é certamente o maior sofrimento do Redentor, o que Lhe trespassa o coração. Nada mais podemos fazer que dirigir-Lhe, do mais fundo da alma, este grito: Kyrie, eleison – Senhor, salvai-nos (cf. Mt 8, 25)” (Nona Estação).

Já papa, Bento XVI providenciou para que a impunidade dos clérigos e religiosos criminosos não fosse possível, determinando que estes casos, por vezes negligenciados pelas autoridades diocesanas, fossem apreciados em Roma. Foi graças a este Papa que o escandaloso fundador dos Legionários de Cristo foi afastado da instituição por ele fundada e impedido do exercício do ministério sagrado e mais de 400 sacerdotes foram destituídos, sendo compulsivamente laicizados.

O Papa Francisco foi ainda mais longe, permitindo também o julgamento de bispos suspeitos de crimes desta natureza e criminalizando, em 2013, a posse de material pornográfico que envolvesse menores. Foi ao abrigo desta nova legislação que Josef Wesolowski, arcebispo polaco e núncio da Santa Sé na República Dominicana, foi demitido do estado clerical e laicizado em 2014. Encontrava-se detido no Vaticano, aguardando julgamento pelos crimes que lhe eram imputados, quando subitamente faleceu, a 28 de Agosto de 2015.

Não obstante o que até à data foi feito, nomeadamente pelos últimos romanos pontífices, podia e dever-se-ia ter feito mais, como agora humildemente reconheceu o Papa Francisco: “Com vergonha e arrependimento, como comunidade eclesial, assumimos que não soubemos estar onde deveríamos estar, que não agimos a tempo para reconhecer a dimensão e a gravidade do dano que estava sendo causado em tantas vidas. Nós negligenciámos e abandonámos os mais novos.” É de crer que, graças a esta dolorosa tomada de consciência, o Papa Francisco se comprometa agora ainda mais a reforçar as medidas necessárias para a erradicação deste flagelo, que tão duramente fere os fiéis e afecta a credibilidade da instituição eclesial.

Em pouco mais de trinta anos de padre, nunca deixei de dar testemunho público da minha condição sacerdotal, não por vã ostentação, mas porque entendo que ser presbítero é estar ao serviço de todos os homens, crentes ou não-crentes. Talvez agora, o uso do trajo clerical atraia sobre mim olhares de desconfiança, senão mesmo de hostilidade, como sei que acontece nos Estados Unidos da América. Mas seria cobarde se, depois dos factos verificados, deixasse de me identificar como sacerdote. A Igreja é comunhão e, por isso, é razoável que o justo pague pelo pecador. Já nos primórdios do Cristianismo, São Paulo dizia: “alegro-me nos meus sofrimentos por vós e completo na minha carne o que falta à paixão de Cristo pelo seu corpo, que é a Igreja” (Col 1, 24).