Vai por aí uma enorme confusão sobre o muito português (e muito terceiro-mundista) tema do nepotismo e das relações familiares na política. Subitamente convertidos às virtudes de uma democracia genealógica, vários defensores da geringonça passaram as últimas semanas a procurar, com o habitual afinco, todos os argumentos que pudessem servir para convencer os incautos de que a monarquia do PS é a melhor forma de governo a que podíamos aspirar.

O principal trabalho teórico foi elaborado num post de Facebook pelo ministro Pedro Nuno Santos, que, como se sabe, teve o orgulho de ver a sua mulher ser nomeada chefe do gabinete de Duarte Cordeiro, seu sucessor na secretaria de Estado dos Assuntos Parlamentares. Pedro Nuno Santos mostrou a rara coragem de explicar o que pensa sobre o assunto — os outros membros do governo que são “pais de”, “filhos de”, “maridos de” ou “mulheres de” preferiram a prudência do silêncio e a crença no esquecimento.

Apesar disso, a coragem não é tudo: Pedro Nuno Santos tem coragem mas não tem razão. A sua longa argumentação pode ser resumida nesta frase: “Não posso abdicar da defesa de um princípio que considero muito importante: o de que ninguém deve ocupar uma função profissional por favor, como ninguém deve ser prejudicado na sua vida profissional por causa do marido, da mulher, da mãe ou do pai”. O ponto mais importante está no final. Leiam outra vez: “Ninguém deve ser prejudicado na sua vida profissional por causa do marido, da mulher, da mãe ou do pai”. Está quase tudo errado nestas 19 palavras.

Em primeiro lugar, convém notar o óbvio: para evitar os malefícios do nepotismo, as pessoas têm obrigatoriamente de ser “prejudicadas por causa do marido, da mulher, da mãe ou do pai”. Essa é a base de tudo: as ligações familiares devem ser um factor de exclusão imediato, independentemente de um candidato a um cargo político ser inteligente ou burro, competente ou incompetente, sagaz ou lento de raciocínio. Isto acontece porque se entende que a avaliação da inteligência, ou da competência, ou da sagacidade fica irremediavelmente contaminada pela relação de parentesco. Um pai, por exemplo, tenderá a achar que a sua filha rebenta uma escala que vá de zero a Einstein. E um amigo do pai que acumule essa função com, por exemplo, a de primeiro-ministro tenderá a usar a mesma benevolência na apreciação da candidata. Mais ainda: como o nepotismo é um mal absoluto e irredimível, é sempre melhor trabalhar com alguém que não é da nossa família mas é menos competente do que com alguém mais competente mas que é da nossa família.

Isso acontece por várias razões, incluindo por uma que fica clara pela enumeração feita por Pedro Nuno Santos no seu texto. É que, nos cargos públicos, existe um problema de lealdade. Se tiver que tomar uma decisão no seu ministério que tenha implicações negativas no ministério “do marido, da mulher, da mãe ou do pai”, quem é que o competentíssimo ministro-familiar vai preferir prejudicar? O Estado ou o marido? O Estado ou a mulher? O Estado ou a mãe? O Estado ou o pai?

Finalmente, existe uma irremediável confusão na teoria de Pedro Nuno Santos. Falando da nomeação da sua mulher para o cargo de chefe do gabinete de um secretário de Estado, o novo ministro socialista usa a expressão “percurso profissional” e insurge-se contra a terrível possibilidade de alguém ser “prejudicado na sua vida profissional” por causa das regras contra o nepotismo. De facto, António Costa passou a maior parte da sua vida adulta como ministro, autarca ou primeiro-ministro; Vieira da Silva passou décadas no Governo; e a nova geração do PS passou da “jota” para o partido, do partido para uma autarquia e de uma autarquia para o governo. Por isso, percebe-se que, algures a meio do caminho, se tenham lamentavelmente esquecido de uma evidência que agora se torna conveniente lembrar: apesar de por vezes parecer, ocupar um cargo político não é uma profissão. Por isso, ser privado da ascensão a um lugar no governo por causa de uma ligação familiar não é uma carta de despedimento nem é o fim de uma carreira. Ou é?

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