São 300 mil pessoas, a maioria delas idosas, 290 mil das quais com conta na CGD que usam uma caderneta para actualizar os seus movimentos na conta bancária e para levantarem dinheiro. Desde dia 14 de Setembro estão impedidas de o fazer “por causa de legislação europeia que reforça os critérios de segurança” – dizem os bancos envolvidos que, além da CGD são o Montepio e o Crédito Agrícola. A alternativa que colocam a estas pessoas é terem um cartão e pagarem por ele.

Mas isto faz sentido? Legislação europeia sobre serviços de pagamentos, numa era digital, a ter o seu maior e visível efeito nos idosos que não se conseguiram libertar da caderneta da Caixa? E no resto da banca não aconteceu nada?

(Sim vai acontecer, anunciou-me o banco de que sou cliente: no domingo dia 15 de Setembro, avisa-me que desde dia 14 estão em vigor novas regras de acesso aos serviços online do banco, de reforço da segurança, e que estão a mudar agora as coisas.  Para os clientes que tinham caderneta mudaram logo as regras dia 14, tal devia ser o risco de segurança.)

Mas vamos lá à história da famosa legislação europeia.

A Directiva sobre Serviços de Pagamentos, que revê a primeira, foi publicada em finais de 2015 e aqui podem ver-se alguns esclarecimentos dados pelo Banco de Portugal. Mais tarde, em 2017, a Comissão Europeia publica um Regulamento que pretende complementar a Directiva. Em   Novembro de 2019 o Governo transpõe a Directiva para a legislação portuguesa.

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Para quem possa estar esquecido, as Directivas europeias são em regra princípios e objectivos gerais que dão aos governos dos Estado-membros margem para contruírem regras adaptadas a cada país. É o famoso princípio da subsidiariedade. Nem que fosse por isso, já existia aqui margem para suspeitarmos que o fim das cadernetas, como meio para levantar dinheiro, não podia ser “culpa” da União Europeia. Como nunca foi “culpa” da União Europeia o fim dos galheteiros – íamos a Espanha e lá estavam eles. A culpa, com muita frequência, é do legislador português que, por incompetência, desleixo ou outra razão pior, não respeita – por vezes até parece odiar – a cultura do povo de que faz parte.

Mas quando olhamos com mais pormenor para o que é esta legislação europeia a nossa perplexidade aumenta. De facto, a directiva sobre serviços de pagamentos só com muita boa (ou má) vontade tem a ver com a segurança das cadernetas que, ou foram sempre inseguras, ou não podem ter passado a sê-lo por causa desta directiva.

Os principais objectivos das regras que a União Europeia definiu são, resumidamente: reforçar a segurança das transacções e pagamentos online; criar condições de igualdade entre todos os que prestam serviços de pagamentos (que não são apenas os bancos) e regular os serviços de informação sobre contas, aspecto relacionado com as aplicações que nos oferecem a possibilidade de aceder aos dados das nossas contas sem termos de ir à “app” de cada banco.

É extraordinário como se conseguiu afectar a menos digital das populações bancárias – a maioria dos que têm cadernetas – com  regras que têm como principal objectivo actuar no mundo bancário digital, ao reforçar a segurança da banca digital, promover a concorrência entre os bancos instalados e os novos serviços digitais e regular o que de novo está a aparecer em matéria bancária digital.

A cereja em cima deste bolo de mau gosto é dizer a esta população idosa, desestabilizada com o fim das cadernetas, que a culpa é da União Europeia. Foi assim, aos poucos, a culpar a União, que se chegou ao Brexit.

Não, a culpa não é da União Europeia. A culpa é dos bancos tradicionais, que não sabem como ganhar dinheiro com taxas de juro negativas ao mesmo tempo que a parte mais rentável do seu negócio é atacada pelas novas sociedades digitais de prestação de serviços. Quem atacam então os bancos? Os mais vulneráveis, os idosos, info-excluídos e com os quais nem os partidos em eleições se preocupam.