Um deputado do antigo PSD, Carlos Abreu Amorim, comparou os incêndios gregos aos portugueses e despertou a cólera das boas consciências. As boas consciências irromperam a rejeitar a utilização de uma desgraça para fins políticos. Uma obscuridade do PS classificou o comentário de “vergonhoso e indigno” (ao invés dos comentários vergonhosos e dignos). Uma moça do BE falou em “demagogia barata” (a do Bloco sai caríssima). E a sensível filha de Adriano Moreira afirmou que “não se pode descer mais baixo”. Ou pode?

Claro que sim. Trinta e cinco segundos após as patrulhas definirem os limites da linguagem e proibirem o aproveitamento da tragédia de lá para caluniar o governo daqui, passou-se à fase posterior. A fase posterior consistiu no aproveitamento da tragédia de lá para desresponsabilizar o governo daqui, exercício que, ao invés de fúria, suscita regozijo geral. Na ânsia de agradar aos chefes, numerosos serviçais da oligarquia desataram a explicar às massas porque é que os governos (socialistas, escusado acrescentar) não devem ser criticados quando as coisas ardem. Em prosa pungente, o novo director de um defunto diário evocou o calor, os ventos, as árvores, a humidade, as mudanças climáticas, a densidade urbana, o turismo, o sr. Trump e a pesca da solha para concluir, acho eu, que nenhum governante (salvo os de “direita”, suspeito) tem culpa dos incêndios.

Alguém disse o contrário? Entre gente civilizada, julgo que não. E os serviçais da oligarquia, as vozes dos donos, sabem. Não sendo demasiado iluminados, sabem o suficiente para saber que o problema não passa exactamente pelos incêndios, mas pelas vítimas que estes causaram. Sabem que a recente devastação na Suécia, provocada pelo “aquecimento global”, pelo Abominável Homem das Neves e pelo que se lembrarem, até ver não matou uma única pessoa. Sabem que os massacres portugueses e gregos de 2017 (em dose dupla) e de 2018 são dos fogos florestais mais mortíferos dos últimos 70 ou 80 anos, no Ocidente e não só. Sabem que os dois (ou três) exemplos constituem casos singulares de ineficácia do Estado no cumprimento da solitária missão que de facto lhe cabe. Sabem que pior do que apanhar o sacrossanto Estado em flagrante delito é, logo de seguida, apanhar as suas figuras gradas numa impecável exibição de mentiras, desorientação, sentimentalismo, desprezo, cinismo e crueldade. Sabem que, no auge da calamidade, um primeiro-ministro de férias em Espanha entra no território do grotesco. Sabem que a nossa gloriosa nação está nas mãos de criaturas cuja competência não as prepara para sequer gerir um galinheiro, e cujo carácter aconselha a que não sejam deixadas a sós com as galinhas.

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