E o princípio não é o verbo, mas é a Constituição da República (CPR). Desse texto emanam diplomas que são a coluna vertebral, em termos regulamentares, da operacionalização do direito à proteção da saúde. Há dois documentos que interessa rever para que se perceba onde começam os erros; a Lei de Bases e os Estatutos do SNS.

A Lei de Bases tem um conjunto de boas afirmações, tais como a consagração da saúde em todas as políticas e a remissão, em partes iguais, para obrigações das pessoas, isoladas e coletivamente, e para o Estado. O problema é que, logo na Base 1, o legislador foi trapalhão. Quando escreve que “o direito à proteção da saúde constitui uma responsabilidade conjunta das pessoas, da sociedade e do Estado e compreende o acesso, ao longo da vida, à promoção, prevenção, tratamento e reabilitação da saúde, a cuidados continuados e a cuidados paliativos”, além da redundância que resulta de não ter percebido que cuidados, continuados (ainda por definir) e paliativos, são tratamento, comete o erro grosseiro de achar que prevenção e tratamento serão dirigidos à saúde e não à doença, como seria óbvio. Em português, “tratar da saúde” tem uma conotação menos própria para um documento que a pretende proteger. Por outro lado, reabilitação da saúde é uma originalidade linguística já que o habitual internacionalmente é falar de “reabilitação” e o termo correto teria sido “recuperação da saúde”. Mas à frente (Base 4) corrigem-se os erros terminológicos.

Seja como for, esta definição de direito à proteção da saúde fará escola pela sua má redação. Quanto à discussão sobre se um “direito” é um conjunto de responsabilidades dos abrangidos por esse direito, deixo para os juristas. Eu pensava que responsabilidades seriam deveres, ao invés de direitos, mas poderei estar enganado. A CPR é bem mais clara quando diz que há direitos e deveres (artigo 64º). O Estado garante o direito da proteção à saúde, é esse o seu dever, e as pessoas têm a obrigação solidária, um dever para com os concidadãos, de proteger e manter a sua saúde. Pela redação da Base 1 ficamos com a impressão de que “o meu direito à proteção da saúde” passou a ser a minha responsabilidade, dever, de a manter e proteger. Fiquei confuso, mas deve ser a dificuldade própria de quem não sabe ler português legal.

Há mais Bases que merecem reparo. O legislador não percebeu o que é genética e genómica, esta última um ramo da anterior, e utiliza a “genómica” de forma sistematicamente errada. Confunde testes genómicos com testes genéticos, fala em informação genómica quando deveria ser genética, ignora outros testes preditivos, por exemplo na área da proteómica. Falam de “característica genéticas”, sem que se perceba se estão a pensar em fenótipo ou genótipo, quando quereriam dizer “genoma”. Podiam ter perguntado a quem sabe. Na verdade, não se percebe porque esta Base está na Lei de Bases. Há outra legislação sobre este tema de testes genéticos, até europeia, com uma panóplia de proibições de eugenia. Independentemente desta Base, a utilização de testes genéticos, no fundo um meio complementar de diagnóstico, terá problemas muito mais complexos do que aqueles que são enumerados na Lei, desde logo no refinamento da prognosticação atuarial para efeitos de seguros.

Por outro lado, no campo das tecnologias de saúde, matéria cuja avaliação ainda é muito limitada em Portugal, insiste em que só as “tecnologias médicas pesadas” precisam de planificação nacional. Não se sabe a partir de que tonelagem as tecnologias entram nesta categoria, nem o que é “tecnologia médica” por oposição a “tecnologia de saúde”. A Lei tem uma Base 33 sobre inovação, porque a Base sobre tecnologias ainda não era suficiente?

Só por graça, embora se perceba o afinco em cingir esta Lei à Saúde, é que o legislador escreveu que “as pessoas afetadas por doenças mentais – se for perturbação mental já não está abrangido – não podem ser estigmatizadas ou negativamente discriminadas ou desrespeitadas em contexto de saúde – se for na rua ou no trabalho, não terá importância -, em virtude desse estado”. É sabido que há legislação mais abrangente, começando pela CPR, que garante a não discriminação, pelo que fica a pergunta sobre a utilidade do nº 3 da Base 13, sendo certo que há muitos outros contextos em que a discriminação pode acontecer e não são mencionados nas Bases, com exceção dos profissionais deficientes e de umas supostas “características genéticas”.

O que não deixa de ser estranho é a referência ao “sistema de saúde” (Base 19) que não  é definido, ou seja,  a Lei não diz o que compreende o sistema de saúde em Portugal. E depois omite na Lei quase tudo o que se prende com o papel dos setores social e privado para que os cidadãos tenham “direito à proteção da saúde”, exceto na Base 6, onde apenas aceita a suplementação, de caráter temporalmente limitado, por agentes prestadores fora do SNS. Nem lhes passou pela cabeça que o SNS possa absorver prestação de serviços por privados e quanto a PPP o anátema é total. Ou seja, o legislador, ao arrepio do bom senso e do status quo, não se compromete com qualquer tipo de complementaridade, suplementação ou até exclusividade, por escolha do próprio, de instituições que não sejam do Estado. Exceto se for temporário, embora não estabelecendo um horizonte temporal, e quando houver comprovação da necessidade, sem especificar de que tipo. Contudo, não deixou de referir algumas obrigações para os seguros de saúde, matéria que deveria estar ou já está regulada noutros diplomas. Nem uma palavra para com os subsistemas públicos de saúde.

A Base 28, sobre profissionais de saúde, alarga o âmbito do conceito a todos os que trabalham para a saúde, incluindo pessoal administrativo e de apoio técnico e logístico. Congratulo-me com este facto que terá consequências importantes em futuras discussões com as organizações laborais. Já não posso deixar de referir que os profissionais de saúde não só têm “o direito de aceder à formação”, como têm a obrigação de se manter formados e atualizados. Igualmente, a redação em que “os profissionais de saúde têm o direito e o dever de, inseridos em carreiras profissionais, exercer a sua atividade de acordo com a legis artis e com as regras deontológicas”, gera a ideia de que apenas os profissionais “inseridos em carreias” têm estas obrigações, o que certamente não seria a intenção de quem escreveu a Lei. Para completar as confusões, “os profissionais de saúde em regime de trabalho independente devem ser titulares de seguro contra os riscos decorrentes do exercício da sua atividade”. “Devem” é a determinação de uma obrigação ou um conselho útil? Não tenho presente que as Leis devam ser compilações de aconselhamentos. Em termos de profissionais do SNS, a Base 29 já menciona o regime de dedicação plena que ninguém sabe exatamente o que é. A Base 30, sobre profissionais de saúde com necessidades especiais, é totalmente redundante face à legislação já existente.

Quem beneficia do SNS? A Lei diz que “são igualmente – além dos cidadãos – beneficiários do SNS os cidadãos, com residência permanente ou em situação de estada ou residência temporárias em Portugal, que sejam nacionais de Estados-Membros da União Europeia ou equiparados, nacionais de países terceiros ou apátridas, requerentes de proteção internacional e migrantes com ou sem a respetiva situação legalizada, nos termos do regime jurídico aplicável”. É uma decisão, em termos de segurança sanitária, sensata. Mas, tudo tem dois versos, e o articulado abre a porta a todo o tipo de turismo gratuito de saúde, já que as autoridades não são lestas a repatriar quem cá não deveria permanecer. Alguém fez contas às consequências deste regime excessivamente generoso? Teria sido mais prudente considerar que os migrantes ilegais teriam acesso a um regime especial de cuidados de saúde até à sua repatriação ou legalização, em vez de lhes garantir acesso ilimitado ao SNS.

Quanto ao resto, menos mal. Em suma, a Lei de Bases da Saúde é essencialmente uma Lei sobre o SNS que poderia ser bem mais curta, até porque os Estatutos do SNS repetem partes do articulado que estão nestas Bases. Mas valia terem deixado estar como estava. Adoramos complicar. Se era para rever, assumindo que esta Lei faria falta, poderia estar tudo em meia dúzia de Bases, talvez nem tanto.

Na Parte IV irei comentar os Estatutos do SNS.

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