“Conversas à quinta” do Observador foi a banhos. Moderados por José Manuel Fernandes, Jaime Gama e Jaime Nogueira Pinto interromperam uma sequência notável de programas semanais com um último episódio dedicado a Moçambique. Conversar com inteligência e educação sobre temas sensíveis é hoje uma arte tão rara quanto decisiva na formação de uma opinião pública esclarecida e livre, num tempo em que a liberdade de pensamento implica o afastamento do politicamente correto. Em vez da conversa, o ideal hegemónico do debate vai deixando um rasto árido que não favorece a sedimentação de um pensamento coletivo tranquilo, renovado, pujante, respeitável, socialmente útil.

Sem contraditar, pretendo complementar o último deste diálogo de cavalheiros.

Jaime Gama e Jaime Nogueira Pinto pensaram a realidade moçambicana “de cima para baixo”, guiando-se por um conjunto de condicionantes macro. O crescimento macroeconómico de Moçambique sustentável no tempo. Um percurso político pós-colonial do país que força crescentemente os agentes envolvidos a referenciarem-se à paz e ao multipartidarismo, apesar das crises. As pressões consolidadas de uma opinião pública embrionária cuja liberdade crítica prende o regime às regras do jogo constitucional. A funcionalidade de uma sociedade bastante heterogénea que consegue cruzar diferentes grupos étnicos, uma imigração secular de diversas paragens do Índico ou portugueses, entre outros. Deste articulado resultou um olhar prudentemente otimista sobre Moçambique, com a vantagem dos comentadores não ficarem condicionados na sua liberdade de pensar as sociedades do antigo império, atitude pouco comum num espaço público português demasiado receoso na matéria. Aguardo conversas sobre Angola e Brasil.

Todavia, quem se predisponha a entrar na realidade moçambicana pela porta inversa, “de baixo para cima”, fica irremediavelmente aprisionado na teia da pobreza que esvazia otimismos. Ainda assim, se alguma vez conseguirmos perceber um país como Moçambique seremos forçados a compromissos entre tendências de sentido oposto. Gerir ambivalências é a forma de contrariar maniqueísmos de forte intensidade ideológica que dificultam ainda mais a compreensão de um mundo cada vez mais complexo.

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De acordo com a prática habitual nas “Conversas à quinta”, quando os discursos se despem de simplismos fica claro que, sendo indiscutível que o contexto internacional condiciona os países, os seus impactos dependem do tipo de gestão de fatores estruturais internos pelas respetivas elites. Os sucessos e fracassos das sociedades devem-se acima de tudo a elas mesmas. Os comentadores do programa elegeram os sucessos. Para mim sobra o papel de advogado do Diabo.

Quando a pobreza bate à porta, uns especializam-se nas críticas à troika. Outros são mestres calejados na atribuição de culpas aos antigos colonizadores e ao Ocidente. Em Moçambique queixam-se da herança portuguesa. Por sua vez, os antigos colonizadores queixam-se da Senhora Merkel. Ambos sempre com muita convicção. Portugueses e moçambicanos revelam-se almas gémeas, embora tal irmandade ande disseminada pelo mundo. Enquanto parte significativa das elites portuguesas renega a má gestão das contas públicas e da dívida externa por elas mesmas durante décadas, as elites moçambicanas há muito que tornaram praticamente invisíveis a explosão demográfica e da pequena criminalidade enquanto condicionantes com impacto no fenómeno da pobreza no seu país. Tal vício de fuga permanente a responsabilidades próprias está na origem dos males.

Como a Europa vive uma situação demográfica inversa, mantém a cabeça na areia sobre o que se passa em África. Quanto mais irresponsáveis são as elites dos países, tanto mais decisivas as pressões externas para que se revertam as variáveis endógenas que prejudicam no imediato e a prazo a qualidade de vida das populações. Felizmente que tais pressões internacionais funcionam hoje contra o diletantismo de parte maioritária das elites portuguesas. Infelizmente que desde o fim da guerra civil (1976-1992) tais pressões deixaram de existir contra o diletantismo das elites moçambicanas. Umas menos e outras mais, ambas herdaram da sua marca genética de meados dos anos setenta doses excessivas de irrealismo revolucionário. Também nisso as elites moçambicanas e portuguesas revelam resquícios anacrónicos geminados dos tempos da guerra fria.

Na altura da independência (1975) Moçambique tinha cerca de 10 milhões de habitantes. Hoje a população mais do que duplicou, são 25 milhões. Em 2034, daqui a duas décadas, prevê-se que sejam cerca de 40 milhões. Os índices de urbanização também dispararam. A prazo metade da população moçambicana viverá em cidades. Somando a necessidade de respeitar a condição humana, o que implica que quaisquer sociedades fiquem hoje obrigadas a garantir aos seus membros condições de vida dignas (acesso à água consumível, saúde, habitação, educação, segurança, saneamento, estradas, proteção ambiental, entre outros), é bastante plausível antecipar que o crescimento macroeconómico de Moçambique, mesmo que tenha impactos efetivos na qualidade de vida das populações, dificilmente conseguirá dar resposta a exigências mínimas de boa governação. A não ser que a gestão da questão demográfica passe a estar no âmago das políticas públicas e no âmago das atitudes e comportamentos das elites do país. Trata-se de uma variável endógena decisiva e sobre a qual os moçambicanos têm exclusiva competência, capacidade e direito de intervir. Se as elites tivessem racionalizado e sido persistentes nesta matéria nas últimas décadas, as preocupações com a explosão demográfica já tinham sido progressivamente integradas no pensamento, discursos e práticas das pessoas comuns, cuja racionalidade é fiável, porém sempre dependente do tipo de informação e formação que os indivíduos quotidianamente recebem.

A relação entre a pobreza e o crime, por seu lado, não é diferente. Paradoxalmente moldadas por setores radicais do malfadado Ocidente, as elites moçambicanas são em geral renitentes no combate à pequena criminalidade. No entanto, a posse de bens nos bairros suburbanos pobres de Moçambique, mesmo de reduzido valor (geleira/frigorífico, televisão, aparelhagem de som, telemóvel, bicicleta, etc.), é crescentemente interpretada pelas pessoas comuns como suficiente para que se sintam potenciais alvos de agressão criminal. Ambicionar melhorar as condições de vida é descodificado como um risco sério de falta de segurança, o que não incentiva indivíduos e famílias a investirem em si. São habitantes de áreas onde não há acesso a grades, portões, alarmes, cães, guardas. É comum nos bairros suburbanos pobres a tese de que a criminalidade explica a pobreza. Daí que os linchamentos nos subúrbios moçambicanos tenham como alvo habitual os pequenos “gatunos” pela simples razão de ser o pequeno crime que mais perturba o quotidiano de quem tem pouco. Pobres como se pensam e sentem, sabem como ninguém ser o pequeno crime (grande para eles) que mais impede a transformação da sua condição social e dos seus filhos.

Sendo essa tendência evidente, outra tem sido a atitude das elites que dominam o país. Não partem do pressuposto de ser o crime a explicar a pobreza, antes do inverso, de o crime ser resultado da pobreza. Fica bem a quem pode e pode defender-se. O forte predomínio desta última interpretação entre os que detêm a capacidade efetiva de influenciar a ação governativa em Moçambique conduziu a uma inércia que vem degradando as condições de segurança de quem mais delas necessita para quebrar o ciclo de pobreza. Em compensação, agita-se muito o combate à grande criminalidade e à corrupção. Não nego a utilidade deste. Problemático é que as causas estruturais da pobreza se mantêm inalteradas porque não se aceita o óbvio por sair fora da cartilha ideológica na qual o pobre é sempre vítima, tese alimentada pela incapacidade de isolar a questão dos comportamentos cívicos da questão das condições materiais de existência. O óbvio é que as principais vítimas da criminalidade suburbana provocada por agressores pobres são, acima de tudo, outros pobres.

Não faltam motivos para retomar as “Conversas à quinta” a seguir às férias.