1 O título desta minha crónica, “Cuidado com as revoluções!”,  foi inspirado pela crónica de António Barreto no Público do passado sábado — “Cuidado com as ambições!” No seu clássico estilo temperado, António Barreto recomenda moderação. As sua crónicas inspiram-me semanalmente. E também me recordam a rara disposição moderada de saudosos amigos como Vitor Cunha Rego, José Cutileiro e Bernardino Gomes — bem como alguns inesquecíveis almoços no Estoril.

Esta recomendação de moderação é particularmente relevante num momento em que crescem as vozes radicais e zangadas: uns querem demitir o Governo; outros querem restaurar o presidencialismo, sabiamente superado por Mário Soares e Francisco Balsemão na revisão constitucional de 1982; outros ainda passam o tempo a falar dos ciganos; e outros querem proibir os que falam dos ciganos. E muitos usam os preocupantes dados da pandemia para dizer que “o regime está esgotado”.

2 Em suma: em casa onde não há pão, todos ralham e ninguém tem razão. Daqui nascem as revoluções. Vozes entusiásticas e zangadas reclamam mudanças de regime e de sistema: em nome dos oprimidos, ou dos explorados, ou dos ‘descamisados’, ou dos ‘portugueses de bem’. (Com o devido respeito, são temas frequentes nas chamadas repúblicas das bananas do terceiro-mundo).

Existe, porém, um problema de fundo com as revoluções: todos sabemos onde começam, mas ninguém sabe onde terminam. Por isso, os democratas não gostam de revoluções. Aceitam-nas, relutantemente, apenas quando são imprescindíveis para repor um sistema constitucional pluralista que possa tornar desnecessárias ulteriores revoluções.

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3 Este foi aliás o caso excepcional e relutante  — e como tal foi declarado — da chamada “Gloriosa Revolução” inglesa de 1688. Aí foi estabelecido peremptoriamente que o único propósito da relutante revolução era “tornar desnecessárias ulteriores revoluções” — através da ordeira restauração constitucional da soberania do Rei no Parlamento, estabelecida na Magna Carta de 1215.

É um facto que não houve mais revoluções na ancestral democracia britânica desde 1688. E ninguém se atreve a falar em “Revolução”, ou “anti-sistema”, no Reino Unido, desde 1688. [Talvez, em rigor, o sr. Corbyn tenha tentado, no seu miserável anti-semitismo e no seu miserável desrespeito pelo hino nacional, “God Save the Queen”. Mas os eleitores tranquila e democraticamente responderam com uma derrota eleitoral histórica. E o muito honroso Labour Party tem agora um muito decente e moderado líder, Sir Keir Starmer — muito honroso líder da Leal Oposição de Sua Majestade Isabel II… ao Leal Governo de Sua Majestade Isabel II].

4Este é aliás o tema de um seminário académico que o Instituto de Estudos Políticos da Universidade Católica Portuguesa (IEP-UCP) acaba de retomar (on-line), desta vez em colaboração com o Labô, Laboratório de Política, Comportamento e Mídia, da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo: “Seis Revoluções da Era Moderna: A revolução inglesa de 1688, a revolução americana de 1776, a revolução francesa de 1789, a revolução portuguesa de 1820, a revolução brasileira de 1899, e a revolução russa de 1917”.

O tópico de dois conceitos de revolução e dois conceitos de democracias volta a estar no centro deste novo projecto luso-brasileiro. Esse mesmo tópico esteve na origem do primeiro programa que o IEP-UCP lançou em 1998/2000, nessa época apenas sobre três revoluções, (inglesa, americana e francesa). Nessa altura, a referência crucial remetia para dois autores muito influentes, que aliás visitaram o IEP, e com quem mantivemos uma intensa e muito amiga colaboração. Refiro-me a Ralf Dahrendorf (1929-2009), o distinto sociólogo germano-britânico [aliás, Lord Dahrendorf], e a Gertrude Himmelfarb (1922-2019), a distinta historiadora norte-americana, Fellow da British Academy e da American Academy of Arts and Sciences.

Ambos enfatizaram, partindo de ângulos diferentes, a existência de culturas políticas distintas na modernidade ocidental.

Não posso aqui rever em detalhe os vastíssimos contributos destes dois autores. Mas devo pelo menos referir brevemente alguns dos seus argumentos que nos marcaram vivamente e nos levaram a iniciar, há mais de 20 anos, o Research Project sobre as “Três Revoluções da Era Moderna”. E que ainda nos acompanham no feliz empreendimento luso-brasileiro sobre as “Seis Revoluções da Era Moderna”.

5 Uma primeira obra que nos marcou foi o livro de Ralf Dahrendorf Reflections on the Revolution in Europe, publicado em 1990 (New York, Random House, 1990). Terá sido um dos primeiros livros sobre a queda do Muro de Berlim em 1989 e a transição à democracia nos países da Europa Central e de Leste, até então sob a ditadura soviética.

Era um livro de alegria e celebração — “Happy times to be alive”, escreveu Dahrendorf  —, dizendo que se completava com a queda do comunismo a vitória democrática iniciada em 1945 com a derrota do nazismo. Mas era também um alerta de prudência, de cepticismo e de moderação — um alerta para a existência de dois conceitos de democracia ao longo de, pelo menos, os últimos 200 anos. E o alerta foi retomado no seu livro seguinte, de 1997, intitulado After 1989: Morals, Revolution and Civil Society (London, MacMillan, 1997):

“Democracia. Nenhuma outra palavra resume melhor os sonhos dos revolucionários na Europa e em outros lugares nos últimos 200 anos. No entanto, a democracia tem dois significados muito diferentes. Um é constitucional, um arranjo através do qual é possível mudar os governos sem revolução, através de eleições e de Parlamentos. O outro significado de democracia é muito mais fundamental. […] A democracia deve ser autêntica; o governo deve voltar para o povo, a igualdade deve ser real. É o sonho de Rousseau sobre a volonté générale que inspirou os revolucionários da França em 1789, uma vontade geral que misteriosamente leva todos a concordar sem força nem constrangimento.”  (Ralf Dahrendorf, “Must Revolutions Fail?”, in After 1989: Morals, Revolution and Civil Society, London: MacMillan, 1997, p. 6).

Dahrendorf em seguida argumentou que estes dois conceitos de democracia tinham conduzido a resultados muito diferentes. O conceito constitucional tinha estabelecido democracias liberais duradouras, abertas à reforma sem revolução, em Inglaterra e na América, em geral também entre os povos de língua inglesa, no Canadá, na Austrália, na Nova Zelândia e em grande medida também na Índia. Em contrapartida, o conceito de democracia fundamental, inspirado na “vontade geral” de Rousseau, tinha conduzido ao conflito permanente entre revolução e contra-revolução em França, bem como no continente europeu, e culminara na despótica revolução comunista de 1917 na Rússia.

6 Este argumento pareceu-nos excitantemente desafiante e intrigante — sobretudo no âmbito da cultura política dominante entre nós, em Portugal, onde era basicamente aceite por todos — democratas e não democratas — que a origem da democracia moderna vinha da revolução francesa de 1789 [que entre nós se escreve com iniciais maiúsculas: “Revolução Francesa”].

Pois bem: ao desafiante argumento de Dahrendorf veio juntar-se outro desafiante argumento da historiadora Gertrude Himmelfarb. Ela dedicou toda a sua intensa vida intelectual — e mais de vinte livros —  ao estudo da cultura política britânica, sobretudo da era Vitoriana, e ao chamado “milagre da Inglaterra Moderna”, uma expressão que insistentemente tomou de empréstimo ao distinto historiador francês Elie Halévy. Disse Gertrude Himmelfarb:

“O verdadeiro milagre da Inglaterra moderna (a famosa expressão de Halévy) não está em ter sido poupada à revolução; mas em ter assimilado tantas revoluções — industrial, económica, social, política, cultural — sem recorrer à Revolução.” (Gertrude Himmelfarb, Victorian Minds: A study of intellectuals in crisis and ideologies in transition, Chicago: Knopf, 1968; New York: Ivan R. Dee, 1995, p. 292).

7 Em suma, cuidado com as revoluções [sobretudo com iniciais maiúsculas]!