Hoje reacende-se com modificações de monta uma velha contenda. O conflito entre a vanguarda artística e a vanguarda política acompanha a reflexão estética desde a aplicação do termo militar ao domínio artístico. Na Enciclopédia, em verbete assinado por Guillaume Le Blond, a guarda avançada (avantgarde) é definida como «a primeira linha ou divisão de exército disposto para a luta ou que marcha em ordem de batalha, ou a parte que está à vista do inimigo e que é a primeira marchar na sua direcção» mas também pode designar um «pequeno destacamento de cavalaria de 15 ou 20 cavalos comandado por um tenente adiantado relativamente ao corpo de batalha mas que é por ele visível». Decorre daqui, por um lado, que o polemos (combate) subjaz à noção de vanguarda, e, por outro, que o pioneirismo lhe é inerente. Remontando ao saint-simonismo, a utilização do termo de um ponto de vista estético introduz uma acepção que vem modificar a noção militar, dando-lhe um novo sentido. A determinação fundamental do conceito depende de uma pergunta: contra quem se combate? Ora, a resposta fixa três características da vanguarda historicamente decisivas. Em primeiro lugar, a arte combate a sociedade como um todo, propondo uma vida nova, uma organização social nova e um homem novo; em nome de um bem futuro, o passado, visto como a figura do mal, ou pelo menos da imperfeição, é julgado e condenado. Em segundo lugar, a acção da arte não é sectorial mas universal – separada da função social celebratória e positiva que exercia nas diferentes esferas da vida no âmbito teológico-artístico, passa a referir-se à totalidade de modo crítico-negativo e suspicaz; desmascara e já não glorifica.  Em terceiro lugar, unifica o espaço, trivializando a geografia, promove o tempo e homogeneíza a história; na década de 20, recorde-se, são inaugurados os primeiros museus de arte moderna: cessaram as tradições, vigora tão-somente a história.

A arte substitui a religião. A radicalização subjectiva da estética não milita contra esse estado de coisas. O sagrado é proposto individualmente e exige uma resposta individual. A unidade existirá a partir da multiplicidade. O que fica igualmente assegurado por esta via é o estatuto da arte como locus da verdade – a sua historicidade, o corrupio das vanguardas, não invalida a tese, tal como a historicidade da ciência também não desmente a conquista da natureza que leva a cabo. Resulta daqui a tensão permanente gerada pela incompletude intrínseca do projecto vanguardista. A angústia religiosa suscitada pela certitudo salutis reproduz-se, ainda mais agudizada, no plano estético de uma revolução artística permanente, uma vez que o extra-quotidiano já não é extra-mundano.

Neste ponto, a vanguarda política aparece como rival que disputa à arte e reserva para si a determinação e direcção da história; como tentação constante e inerente à actividade artística para des-radicalizar e des-subjectivizar a esfera estética e, como estação terminal para artistas cansados, como a fé foi para tantos libertinos exauridos, amargos ou desesperados. Em qualquer um dos casos, a fraqueza paga-se com a degradação da arte. Submissa e dócil, aceita os ditames alheios e torna-se propaganda – mesmo que ataviada com o epíteto engagé. Ainda que tente dissimular-se atrás da qualidade estética, para evitar a vergonha aos seus próprios olhos e também aos alheios, não consegue esconder que o seu papel se transformou. O que fica é a relação com o universal. Com a erosão das grandes narrativas legitimadoras, fruto inclusive das materializações do universal, renunciou-se a essa relação numa viragem puritana e sem compromissos no seio da arte como esfera autónoma, dissolvida no gesto, como foi o caso dos situacionistas, que mantiveram ainda a promessa de salvação no âmbito da modernidade, isto é, sem abandonarem as posições conquistadas pela revolução copernicana na arte. Outros protagonistas, igualmente assustados pela institucionalização da vanguarda, não querendo, porém, abrir mão da arte, fizeram inversão de marcha, contornaram o sujeito e regressaram a uma arte des-diferenciada, não cultural, mas sim mítica – como Dubufett, mais recentemente, mas também Artaud inter alia.  Qualquer uma das versões ratificou a perda do locus artístico da verdade. Um tal abalo sísmico, de que a arte ainda não se recompôs, teve o condão de abrir espaço a novos particularismos, a re-tradicionalizações e auto-estilizações variadas, mas conservando a referência, nem que seja como memória, do universal. Deriva daí, aliás, a ironia e a paródia que dão a muita da arte actual o seu ar de família.

Muitas das atuais lutas identitárias travam-se neste quadro, de que herdam os pressupostos. Mas com alguns perigos. A promoção de artistas e já não de obras de arte cauciona o elemento de propaganda que subalterniza e destrói a arte como tal, fazendo da obra a aplicação ao caso concreto de uma regra geral e abstrata, de uma ideologia. O diferencialismo radical da Spätmoderne, ao naturalizar – a despeito das suas eventuais melhores intenções – as identidades, retira-lhes a referência universal e, no mesmo movimento, subtrai à arte o aspecto lúdico, isto é, autotélico. Pior, torna-a cega e desumaniza-a, e, sobretudo, dá-lhe uma nova seriedade muito superior à das vanguardas históricas. Esse diferencialismo funde num continuum reificado a vanguarda política e a vanguarda estética, tendo por denominador comum uma identidade natural concreta que não pode deixar de se opor às restantes identidades. Assim sendo, a seriedade das lutas da vida passa necessariamente para arte, a distância crítica – em ambos os sentidos, da arte para a teoria ou da teoria para a arte – esbate-se, as mediações esfumam-se, a capacidade de aprendizagem e diálogo liquefaz-se. Quando se trata de um conflito entre identidades tidas por oprimidas, querelles de famille, essa oposição tende a ser mitigada, uma vez que se revêm no ataque comum a um opressor comum. Caso contrário, o último recurso a aparecer no horizonte, hoje como ontem, é a violência: correm o risco de serem os Urmenschen da modernidade tardia felizes na sua servidão voluntária.

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