O excesso de zelo ainda nos vai matar a todos. Não será o vírus nem a velocidade do contágio, mas a loucura de certas medidas sanitárias e respetivas vistorias.

Há pouco tempo fomos confrontados com a dramática realidade de crianças e jovens retirados às famílias, a quem foi imposta, de forma imediata, uma segunda agonia. Não só ficavam privados das suas referências habituais, como antes de poderem morar numa instituição eram obrigados a passar 14 dias e 14 noites em isolamento total, porventura tão apavorante como a própria realidade familiar de onde foram afastados.

A irrazoabilidade desta medida era de tal forma gritante, que foi revista e, felizmente, anulada. Agora tomam-se outras precauções, mas não se enterra ainda mais quem já se sente como morto. Todas as crianças e jovens retirados às suas famílias vivem realidades de dupla mortificação, primeiro por serem maltratados ou negligenciados pelos próprios pais ou familiares, depois porque são forçados a uma existência de órfãos de pais vivos, em instituições que muitas vezes os separam dos próprios irmãos.

Desta vez, os exageros tocaram outros extremos: os mais velhos e mais vulneráveis. As pessoas que moram em lares, em realidades já de si adversas e em circunstâncias tantas vezes precárias, agora agravadas pelo “legítimo” abandono dos que, por via da contenção da pandemia e respetivos protocolos sanitários, foram impedidos de visitar os seus familiares.

As medidas mais radicais de que tenho conhecimento são completamente desumanas. Pior, são uma nova forma de loucura. Reveladoras da insanidade mental de quem as impõe, mas também de quem as faz cumprir. Como se costuma dizer, se não morrermos do mal, morreremos certamente da cura. E qual é a cura encontrada para travar a escalada de contágios em lares de velhinhos? Retirar tudo, absolutamente tudo o que eles têm nos seus quartos.

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Todos os objetos pessoais, todas as fotografias e quadros, todos os livros, peças e coisas que representam as suas memórias, todas as caixas e caixinhas, malas, sacos e saquinhos. Retirar tudo, deixando as quatro paredes despidas e os poucos móveis existentes completamente despojados. Como numa cela de prisão.

Porquê e para quê, perguntam-se os mais avisados. Para poder desinfetar tudo mais depressa e com menos esforço, certamente, mas também para cumprir ordens e não dar origem a acusações de falta de medidas sanitárias. Por um lado, percebe-se a intenção dos que cuidam, limpam e desinfetam, mas, por outro, prevalece o horror perante a desumanidade das medidas.

Viver num lar não é, nunca foi, nem será um sonho para ninguém. É difícil imaginar o paraíso quando falamos de partilhar o quarto, a casa de banho, os barulhos e cheiros, a sala, a mesa e todos os espaços de uma instituição com outros velhinhos, tão ou mais doentes, alguns inválidos e outros dementes. Se pudéssemos escolher, para nós e para os nossos, escolheríamos certamente morar e morrer em casa própria ou de familiares acolhedores. Quando muito num bom hotel, com bom serviço de quartos e, se possível, apoio médico 24 horas por dia, sete dias por semana.

Bem sei que há lares amorosos e acolhedores, até agradáveis e com vista, geridos por pessoas bondosas, onde o pessoal está literalmente ao serviço dos mais frágeis, mas nem por isso o nosso imaginário muda quando falamos de lares de terceira idade.

Fatalmente, visualizamos lugares desprovidos de familiaridade, onde as pessoas vivem com muitas regras e horários imperativos, onde não é possível voltar ao quarto sempre que apetece, onde é obrigatório passar longas horas sentados a olhar para o vazio (ou ainda pior, para a televisão!), tendo por “colegas” de cadeira e de sala pessoas que se babam, que já não articulam as suas ideias, que não se deslocam sem apoio, que têm limitações de toda a ordem e dificuldades de toda a natureza. Cúmulos de dificuldades, por sinal.

E é por sabermos que existem demasiados lares que são mais parecidos com depósitos de velhos do que com casas de família, que estas novas medidas arrepiam. Um lar é sempre um espaço estranho para quem passou toda a sua vida fora dele. Por ser estranho, chega a parecer hostil e uma das formas de humanizar o espaço e torná-lo mais acolhedor, ou minimamente parecido com a anterior morada, é trazer objetos e até móveis que transformem um lugar desconhecido e, por vezes, inóspito num verdadeiro lar. Como uma chegada a casa e não uma reclusão forçada.

Ora, impor o esvaziamento total dos quartos é transformar a última morada numa prisão. Transformar um quarto, já de si exíguo para conter as memórias de toda uma vida, numa espécie de cela, faz com que cada pessoa se sinta presa e até maltratada. Os utentes, como tantas vezes se tratam os mais velhos, não gostam de se ver presos e muito menos maltratados. Querem, precisam e merecem ser bem cuidados.

Não sei onde moram os avós e os tios de quem teve a tristíssima ideia de desprover os quartos de tudo, apagando todas as memórias e referências, mas apostaria que não vivem em lares. Se vivessem, tenho a certeza de que os autores das medidas pensariam de forma muito diferente.

Não há nada mais assassino, nada mais letal do que impor aos outros aquilo que não quereríamos para nós nem para os nossos. Diria também que nada é mais daninho do que ficar emboscado num escritório, de frente para um computador, a produzir regras e a ditar medidas sem conhecer por dentro as realidades a que se destinam. O conforto do escritório e a distância da realidade-real distorcem sempre a perspetiva.

Por isso, e porque não é legítimo pedir a ninguém que viva desprovido de tudo, especialmente quando está mais vulnerável e saudoso, quando atravessa o tempo de maior abandono da sua vida – não podemos esquecer que ao abandono em que muitos já se sentem, por viverem longe dos filhos e famílias, soma-se agora o abandono institucional decorrente da interdição de visitas –, dizia eu, que por tudo isto, espero que as cabeças pensantes que inventaram estas medidas, as repensem rapidamente, de forma a poderem anulá-las a tempo de conter mais uma catástrofe humana tão grave como a própria pandemia.