Para os europeus, 2021 devia ter sido um grande ano: a pandemia, finalmente travada pelo progresso, daria lugar à recuperação “em V”, ao mesmo tempo que um acordo para o Brexit viria libertar espaço mental em Bruxelas para novas e entusiasmantes aventuras “estratégicas”, tudo a convergir para a execução dos fundos da histórica “bazuca”.

Na realidade, o ano novo já parece muito o velho. A compra de vacinas expôs os limites da Comissão Europeia para intervir nas questões mais importantes da União e os novos confinamentos, tão ou mais exigentes do que os anteriores, atrasaram a economia ao ponto de a bazuca se ter transformado em vitamina – e a precisar de suplemento.

Ironicamente, a única novidade europeia a merecer entusiasmo foi a nomeação de um primeiro-ministro. Mario Draghi, que lidera o seu país com um apoio tão amplo que parece frágil, veio lembrar-nos que a União Europeia ainda é capaz de produzir figuras carismáticas, reconhecidas por todo o continente e com uma reputação praticamente imaculada.

A popularidade de Draghi é importante porque tem uma explicação. O cidadão médio – e o mesmo pode ser dito do colunista mediano – terá dificuldades se lhe pedirem para explicar todas as implicações do quantitative easing, mas todos conseguimos perceber o essencial de “o BCE está pronto a fazer o que for necessário para preservar o euro. E confiem mim, vai ser suficiente.”

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Que o governador de um banco central tenha sido levado a sério numa questão tão evidentemente política e numa garantia que excedia a interpretação do seu mandato até ao momento, é sintoma do problema fundamental da política hoje: ninguém está inteiramente certo do que vai acontecer e não podemos confiar no que nos oferecem, porque pode não ser suficiente.

A União Europeia deu-nos muito do que se pode comprar, mas não nos deu um caminho que fosse nosso e nós acabámos por desistir de o procurar. Como Helena Matos bem explicou neste jornal, sobrou-nos a sensação de que, enquanto sociedade, somos capazes de muito menos do que antes, que estagnámos há muito num lugar desconfortável – demasiado pobres para nos sentirmos ricos e demasiado ricos para sermos vistos como pobres.

Não é um exclusivo nacional. Em Itália, o governo de salvação nacional encontra um país que desde 2008 não consegue escolher um primeiro-ministro através de eleições, uma economia que nunca voltou a ser o que era antes da Grande Recessão e por isso acabou por se afastar das grandes decisões. Em França, a União serve de sucedâneo a um passado que já não volta e, na Alemanha, como uma forma de assegurar que o passado fica mesmo para trás. Em Espanha, nem a continuidade do país é certa. E assim sucessivamente.

A promessa de prosperidade e segurança que serviu para tornar apelativa a integração europeia foi um convite a deixarmos de pensar em nós. Se os objetivos fundadores da democracia portuguesa dependiam da ideia de Europa e foram perseguidos como condições para a adesão à CEE, a verdade é que desde então nenhum propósito comum voltou a unir o país – nem o programa de assistência externa, nem a pandemia e nem sequer o Europeu de futebol, que foi demasiado caro.

A Comissão Europeia falhou este ano, o que nos prolonga o sofrimento quando os nossos amigos americanos e britânicos já pensam no futuro. Talvez este falhanço venha a ser decisivo no futuro da construção europeia, mas não nos desculpa do que deixámos por fazer. Quando a Europa não chega, o que nos define? Qual é a nossa contribuição para uma identidade europeia? Para um país que saltou do Império para a Europa sem perder muito tempo consigo, a discussão sobre o futuro estará sempre amarrada ao passado que não enfrentámos. Aceitar isso é parte das escolhas que temos de fazer. Whatever it takes.

João Diogo Barbosa, jurista (@jdiogospbarbosa no Twitter), é um dos comentadores residentes do Café Europa na Rádio Observador, juntamente com Henrique Burnay, Madalena Meyer Resende e Bruno Cardoso Reis. O programa vai para o ar todas as segundas-feiras às 14h00 e às 22h00. 

As opiniões aqui expressas apenas vinculam o seu autor.

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