1 É uma das perguntas para a qual ainda não consegui resposta nos últimos cinco anos: por que razão Lucília Gago aceitou ser procuradora-geral da República em outubro de 2018? O que a levou a aceitar porventura o cargo na área judicial com maior exposição pública — exposição essa superior à do presidente do Supremo Tribunal de Justiça?

As perguntas nascem de uma premissa muito simples: Lucília Gago não gosta da exposição pública que o cargo de líder do Ministério Público (MP) acarreta. Pior: lida muito mal com a ideia de ser fotografada, filmada e até mesmo com o simples ato de discursar em público.

Se dependesse de Lucília Gago, um gigantesco pano de palco desceria sobre o Palácio Palmela para que a Opinião Pública não desse pela existência da Procuradoria-Geral da República (PGR).

Daí a pergunta: o que leva uma senhora com este perfil ultra-discreto a aceitar um convite para um cargo que tem competências de direção hierárquica muito significativas, se não pretende liderar, comunicar ou até mesmo prestar contas aos cidadãos?

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

2 Veja-se o caso Tutti Fruti — que tem dado muito que falar, após a TVI/CNN Portugal ter recuperado o caso com a revelação de escutas telefónicas e de despachos do MP que descrevem as suspeitas que recaem sobre Fernando Medina enquanto presidente da Câmara de Lisboa.

Estamos perante um inquérito do Departamento de Investigação e Ação Penal (DIAP) de Lisboa, aberto entre 2016 e 2017 mas que se arrasta no tempo, alegadamente sem arguidos constituídos e que apenas teve um impulso processual relevante em 2018 com buscas alargadas a dezenas locais capital e noutros locais do país.

Além das suspeitas graves de corrupção nas juntas de freguesia dominadas pelo PSD, os autos descrevem com grande grau de pormenor a promiscuidade entre política e negócios, a contratação cruzada de boys e girls entre PSD e PS e até indícios de financiamento partidário ilícito, como revelou a TVI/CNN.

E como se tudo isso não bastasse, ainda há a suspeita de um pacto de estabelecido entre o PS e o PSD para a manipulação de eleições autárquicas em diversas juntas de freguesia em Lisboa e, pasme-se, a “emissão de faturas falsas e acordos com responsáveis do PS para adjudicação de contratos públicos a empresas violando a transparência, integridade, zelo e boa gestão dos dinheiros públicos”.

Tudo isto está reunido em 11 mil páginas e 500 volumes de anexos que compõem os autos.

Chegados aqui, temos de fazer perguntas bastante simples:

  • como é possível que um inquérito com indícios tão graves em termos de saúde do regime democrático se arraste no tempo?
  • O que fez a hierarquia do DIAP de Lisboa, na pessoa da diretora Fernanda Pêgo, para que os autos fossem tramitados com a celeridade que se impunha desde 2016/2017? Pêgo é diretora do DIAP de Lisboa desde setembro de 2017.
  • A mesma pergunta para os procuradores regionais de Lisboa, a quem a diretora do DIAP de Lisboa responde diretamente.
  • E o que fez a procuradora-geral Lucília Gago? Inteirou-se do caso, pediu satisfações à Procuradoria-Geral Regional de Lisboa ou chamou a diretora do DIAP de Lisboa para perceber em pormenor o que está a atrasar a investigação?

Repito para que não existam dúvidas: a procuradora adjunta Andreia Marques, uma magistrada de total confiança da procuradora-geral adjunta Fernanda Pêgo, considera que existem indícios de manipulação das eleições para as juntas de freguesia da Estrela, Santo António e Areeiro.

Haverá suspeita mais grave em democracia do que a manipulação dos atos eleitorais? É isso que diferencia uma verdadeira democracia de um regime autoritário.

É por isso que, numa primeira análise, não é minimamente aceitável que o DIAP de Lisboa ainda não tenha chegado a uma simples conclusão ao fim de mais de sete anos de investigação.

3 Muito menos é defensável que a procuradora-geral Lucília Gago fique de braços cruzados à espera que os seus subordinados façam o óbvio que é constituírem os suspeitos contra quem têm indícios e deduzirem a respetiva acusação. Ou, pelo contrário, arquivarem o caso por falta de indícios.

E não se pense que estamos perante qualquer espécie de controlo político da investigação. Pela simples razão de que a procuradora-geral da República é autónoma do poder político e lidera uma magistratura que faz parte do poder judicial.

O que está em causa são os poderes hierárquicos bastante generosos que a lei confere a quem lidera a PGR. Sendo o MP uma magistratura hierarquizada, Lucília Gago tem o dever (eu diria mesmo a obrigação) de pedir informações sobre qualquer inquérito que possa por em causa a paz pública — muito mais um com as características do Tutti Fruti —, seguindo os canais hierárquicos que existem para essa ocasiões.

Mais: qualquer magistrado titular dos autos é obrigado a explicar tudo aos seus superiores hierárquicos, nomeadamente à procuradora-geral da República.

Em última instância, Lucília Gago pode legitimamente avocar os autos do inquérito (ou seja, chamar a si o inquérito) e distribuir a um magistrado que considere mais competente do que aquele que leva sete anos a investigar um caso e não chega a nenhuma conclusão. É exatamente assim, sem tirar nem por.

A questão é: Lucília Gago exerceu algum destes poderes hierárquicos que, repito, a lei lhe confere?

Tendo em conta o que sei sobre a forma como a PGR é gerida, duvido muito que a procuradora-geral tenha feito isso. Porventura, após a emissão da primeira reportagem da CNN/TVI, alguém terá acordado na PGR e começou a disparar perguntas para o DIAP de Lisboa.

4 A verdade é que nada sabemos sobre o que Lucília Gago fez ou deixou de fazer. Lembra-se, caro leitor, da metáfora da cortina de teatro que deveria cobrir a PGR — um pouco à luz da obra do artista búlgaro Christo, que ficou conhecido por cobrir edifícios públicos um por todo o mundo?

Se analisarmos a política de comunicação de Gago desde que tomou posse, é precisamente com essa ideia com que ficamos. Muitas das perguntas que a comunicação social envia para a PGR costumam ficar sem resposta ou com respostas com a menor informação possível.

O silêncio, que uma vez mais se fez sentir sobre a Operação Tutti-Fruti, é a regra. A exceção são respostas claras e minimamente esclarecedoras — e, mesmo assim, sem um padrão e uma lógica de comunicação.

Isto acontece porque, uma vez mais, a procuradora-geral Lucília Gago não quer liderar e deixa que os procuradores titulares de cada um dos processos (e respetivos diretores) decidam se a comunicação social merece ter alguma resposta. É, portanto, o grau zero de liderança quando é a PGR, a cúpula do MP, quem presta contas aos media e à opinião pública em geral.

O que nos leva a outra questão: a própria Lucília Gago também deve pensar que não tem o dever de prestar contas publicamente sobre o trabalho que faz.

Isto é, uma titular de um alto cargo público que depende de uma nomeação do Presidente do República por indicação do Governo e que tem como principal missão zelar pelo principio da legalidade e do respeito das regras do Estado de Direito Democrático — tudo em nome da comunidade —, considera que não tem de comunicar com a população em nome da qual exerce a ação penal.

5 Se Lucília Gago deve ser escrutinada por estas falhas graves, não é menos verdade que aqui também há uma responsabilidade do Presidente Marcelo Rebelo de Sousa e do primeiro-ministro.

António Costa porque inventou a teoria do mandato único para não ter que propor a renovação do mandato de Joana Marques Vidal em 2018. E Marcelo porque foi cúmplice de algo que só pode ser visto como uma desculpa de tão mau pagador. Aliás, praticamente ninguém acreditou nessa ‘inventona’.

O PS queria ver Joana Marques Vidal pelas costas devido à Operação Marquês e à detenção de José Sócrates mas também por causa do processo Face Oculta (que foi liderado pelo seu irmão João Marques Vidal). Os socialistas não brincam em serviço com essas matérias e não levam desaforos para casa.

E não, não vale a pena argumentarem com a tese da birra entre José Sócrates e António Costa devido à Operação Marquês. Costa não estava preocupado com Sócrates quando não quis renovar o mandato a Marques Vidal. Estava, como é óbvio, preocupado consigo e com a sobrevivência política do seu Governo.

6 É que não tenhamos dúvidas, Joana Marques Vidal estaria — como sempre esteve — a par dos processos mais relevantes para precisamente exercer os seus poderes hierárquicos quando as regras ou a celeridade não estivessem a ser respeitadas.

Foi assim que a então procuradora-geral emitiu um despacho para os autos da Operação Marquês a dizer ao procurador Rosário Teixeira para que se apressasse com a acusação, sob pena da respetiva participação disciplinar ao Conselho Superior do MP.

Tal como foi assim que acompanhou sempre de perto todos os processos relevantes na criminalidade económico-financeira porque era essa a sua obrigação como primeiro responsável pelos atos do MP.

Percebe agora o caro leitor por que razão António Costa queria afastar Joana Marques Vidal da Procuradoria-Geral da República e substitui-la por uma pessoa com o perfil de Lucília Gago? Com Marques Vidal tinhamos eficácia e resultados concretos.

7 Veja-se o caso Galamba, nomeadamente a sua vertente relacionada com os serviços de informações. Tendo em conta o péssimo historial do DIAP de Lisboa no mandato de Fernando Pêgo — um departamento que é uma sombra do seu passado quando já foi liderado por magistradas como a procuradora-geral adjunta Maria José Morgado —, faz sentido que uma investigação dessa importância seja distribuída ao DIAP de Lisboa?

Não tenho grandes dúvidas de que Joana Marques Vidal distribuiria os autos do inquérito ao Departamento Central de Investigação e Ação Penal (DCIAP), não só porque o DCIAP faz parte da PGR e está na dependência da procuradora-geral (e a ela responde diretamente), como também porque é o departamento do MP que está melhor apetrechado em termos de magistrados e know how para uma investigação daquelas.

Se tivesse de avocar (chamar a si) os autos, para os redistribuir de seguida ao magistrado que fosse mais competente para o caso no DCIAP, Joana Marques Vidal também o faria.

Refira-se, por último, que ainda falta fazer a história do afastamento de Joana Marques Vidal, nomeadamente o papel alegadamente cúmplice do Presidente Marcelo Rebelo de Sousa no afastamento da procuradora-geral. Veremos se será possível descobrir no futuro o que aconteceu realmente.

Já sabemos que, no que depender de Marcelo e Costa, a política de segredo imperará, como imperou até agora. Porque provavelmente os cidadãos não estão preparados para saber a verdade.