Nem toda a gente da minha geração é tão privilegiada como eu. Tenho noção disso e não o nego. Graças ao meu contexto familiar, cresci e vivi sempre de forma bastante desafogada, o que me permitiu preocupar-me sempre com as coisas do espírito, uma vez que a parte material estava plenamente assegurada. Vivi em cinco países diferentes ao longo dos últimos treze anos. Tive a felicidade de doutorar-me no estrangeiro e aprender um sem fim de coisas com professores e colegas. Para além disso, tenho ainda o privilégio de ter acesso aos jornais e conseguir fazer ouvir a minha voz. Hoje conto aqui a história de como saí de Portugal para estudar, voltei numa tentativa vã de viver no país que me viu nascer e onde cresci, e agora estou de partida definitiva para a emigração.

Quando saí de Portugal em 2009, apesar de vivermos numa crise profunda, numa mistura explosiva entre o contexto internacional e erros políticos e económicos sucessivos acumulados ao longo de anos, tinha ainda uma expectativa de regressar e estabelecer-me em Portugal uns anos depois. Em 2014, terminado o doutoramento no Instituto Universitário Europeu de Florença, não consegui voltar. Falhei no concurso da FCT. Menos de um mês depois, tinha duas ofertas de emprego, no Reino Unido e na Alemanha. Fui viver para a Alemanha durante três anos. Retrospectivamente, esta experiência foi óptima para a minha carreira e para o meu desenvolvimento intelectual. A rejeição pela FCT em 2014 foi a melhor coisa que me aconteceu. Em 2017, decidi, e consegui, regressar a Portugal. Daria ainda uma tentativa ao país. Apesar de tudo, é confortável viver em Lisboa, especialmente tendo uma rede familiar de segurança que nos permite ter uma vida acima dos salários verdadeiramente de miséria praticados em Portugal.

Em 2021, voltei novamente a falhar num concurso académico para um lugar permanente num concurso sobre o qual Luís Aguiar-Conraria já escreveu no Expresso. Decidi logo e ali que o meu percurso em Portugal havia terminado. Não estou disposto a desperdiçar a minha vida num país onde, por um lado, o mérito é completamente esquecido e não valorizado e, por outro lado, apenas é valorizado quem tem o cartão do partido dominante ou aguarda, pacientemente, durante anos, a chegada da sua vez de receber uma prebenda dos poderes instituídos. Para além disso, mesmo quando se consegue um emprego interessante, as possibilidades de promoção na carreira, os impostos altíssimos para rendimentos aqui considerados altos, mas na verdade médios na Europa rica, assim como o estado social em franca dissolução criam fortes incentivos para deixar o país.

Esta história é apenas minha, que, como disse, sei ter imenso privilégio à mistura. No entanto, sei que ecoa em imensas pessoas da minha geração, muitas delas com mais dificuldades do que eu. Em conversas com amigos e circulando nas redes sociais, é fácil perceber o desalento dos jovens com o país e como, tal como na década de 60, não há praticamente família nenhuma que não tenha pelo menos um membro da prole noutras paragens.

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A imposição deste quadro está a ser de tal forma normalizada que as próprias atitudes dos jovens em relação a Portugal e à emigração poderão estar a mudar. Recentemente, voltei ao Instituto Universitário Europeu durante um ano lectivo. Diferentemente da minha geração, que acalentava ainda a ideia de voltar a Portugal, a geração que está agora a escrever os seus doutoramentos é bem mais realista do que nós: muitas das pessoas com quem falei partem com a ideia de nunca mais voltar. A ideia de regressar a Portugal depois do doutoramento soa-lhes a um suicídio profissional e a um beco sem saída. Não espanta. Uma geração que foi, na sua maioria, socializada durante os anos Sócrates, da Troika e da Geringonça e que tem os recursos cognitivos para perceber a situação real do país para além da propaganda, não pretende entregar os pontos e deitar tudo a perder depois de tanto esforço.

O país assiste a uma verdadeira hemorragia de quadros qualificados. Num país com a mais baixa educação média na União Europeia, os contribuintes portugueses são chamados a pagar a educação de muitos jovens os quais, depois, irão contribuir para o crescimento económico de outros países a custo zero. Este movimento da periferia para o centro da Europa de quadros qualificados é uma péssima notícia para Portugal. As pessoas mais qualificadas, jovens, em idade de ter filhos – e, assim, contribuir para a sustentabilidade da segurança social – partem para ter uma vida melhor.

Tal como em 1974, o regime deixou-se conduzir a um beco sem saída. Não existem forças endógenas para realizar a mudança necessária. A União Europeia, e os seus generosos fundos, vão continuar a manter o país ligado à máquina. No entanto, na ausência de reformas a sério, que iriam inevitavelmente doer a alguns grupos sociais, a mudança dificilmente chegará de fora. A vitória de António Costa em Janeiro passado não ocorreu por acaso. De forma hábil, conseguiu convencer os portugueses que, sem mudar, o empobrecimento é inevitável, mas que ele, Costa, pode aplicar os cuidados paliativos de forma a minorar a dor. Será, assim, a austeridade com um sorriso. Neste cenário não admira que em 2024 a Roménia nos esteja prestes a ultrapassar. Costa e Marcelo deixarão o país bem na cauda na Europa.