Não é surpresa. Não pode ser surpresa.  Para além do ar do tempo internacional, ao qual Portugal chega sempre com atraso, a fatura do descontentamento acumulado ao longo das últimas décadas far-se-ia sentir a dado momento. Depois de décadas de euforia com a entrada na União Europeia nos 80, o virar do século, com a adopção do Euro e a entrada da China na Organização Mundial de Comércio e as péssimas escolhas internas das elites, abriram as portas a uma estagnação económica nas últimas duas décadas. O elevador social deixou de funcionar. Na última década, Portugal sofreu uma intervenção externa que deixou marcas profundas. Era, aliás, motivo de comentário nos meios políticos e académicos internacionais a surpreendente ausência de consequências da intervenção externa na competição política. Como é que uma crise social tão profunda não tinha consequências políticas? Vimos um primeiro-ministro, e toda a sua corte económica, envolvida em escândalos gravíssimos, que implodiram o banco do regime e uma das maiores empresas nacionais, serem presos e em julgamento por crimes que lesaram os contribuintes em milhares de milhões de Euros. A sensação difusa de impunidade da classe política e de fim de festa estava no ar há muito tempo.

André Ventura colheu o fruto bem maduro do caldo de cultura que andámos a cultivar nas últimas décadas. A fatura chegou com atraso, mas chegou, como seria inevitável. Ventura foi o empreendedor político certo na hora certa que conseguiu mobilizar toda uma multidão de descamisados. De resto, aquilo que estamos a assistir agora é apenas uma versão redux do que já vimos noutros países. Nos Estados Unidos, fizeram-se verdadeiras excursões da redacção do New York Times até ao Ohio profundo (In this diner in Ohio…). Aqui, far-se-ão excursões até snack-bars no Alentejo, nos subúrbios de Lisboa e no interior esquecido. A sensação de cópia de pechisbeque não se fica por aqui, contudo. Citando Nuno Garoupa em conversa privada, o ciclo a que assistimos é uma cópia perfeita daquilo que já vimos noutros países. Estes movimentos suscitam, em primeiro lugar, o denial e a sobranceria da comunicação social e das elites. Depois, segue-se a vingança dos deploráveis e a vitimização do partido que os mobilizou. A terceira fase é óbvia: a condescendência das elites, e o tom paternalista com que falam dos eleitores do Chega, aumentam ainda mais a sua alienação do sistema político e a criação de uma identidade política altamente polarizada em que a clivagem entre o nós e o eles marcam a ferro o orgulho na pertença a um grupo que, finalmente, está a dar a uma lição a quem a merecia há anos.

As consequências de Domingo não poderiam ser maiores. O regime está no divã. Pela primeira vez desde 1975, existe uma ameaça real à hegemonia política de PS e PSD. Porém, esta ameaça não se fica por aqui. O perigo que colocou a bolha em estado catatónico é a ideia de a periferia política, económica e social ter agora alguém que traz a sua voz ao centro mais simbólico do poder, com capacidade de condicionar literalmente tudo. Nos 50 anos do 25 de Abril ver um representante da dinastia Rebelo de Sousa e os nomes sonantes do regime postos em sentido por um outsider vindo do subúrbio desumanizado e esquecido de Mem Martins tem o seu quê de irónico. Os canais da democracia oferecem a possibilidade de um crítico feroz do próprio sistema o colocar em causa. Apenas num sistema democrático, em que o povo é quem mais ordena, é possível que as elites percam totalmente o controlo da narrativa e das instituições e estejam neste momento em pânico.

Como saímos daqui? A resposta honesta é: não sei. Na ciência política existem vários trabalhos académicos sobre como os partidos devem lidar com a ascensão das forças análogas ao Chega. Por um lado, existem trabalhos que defendem que acomodar estas forças – e, especialmente, as suas políticas – não surte o efeito desejado. Por outro lado, do ponto de vista da teoria democrática, parece complicado ignorar completamente a vontade popular expressa de mais de um milhão de pessoas. Vale a pena tentar elencar de forma sistemática alguns pontos que são, neste momento, os possíveis. Ao contrário da teoria Marxista, que julgava ter descoberto no materialismo dialético um conjunto de leis universais que lhe permitiriam, na prática, prever o futuro e a sua inevitabilidade, nada está escrito. O futuro é contingente e as elites e as massas têm agência própria. Não é inevitável que Ventura e o Chega se tornem uma ameaça perpétua à democracia Portuguesa. As decisões que forem tomadas pelas elites moderadas interagirão com a estrutura e ditarão o desfecho deste momento delicado.

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Em primeiro lugar, o PS e o seu líder fizeram uma leitura muitíssimo inteligente da situação. Uma leitura melhor do que Montenegro, como argumentarei abaixo. Pedro Nuno Santos percebeu imediatamente que o país está à beira de um momento de grande fluidez política, social e eleitoral. Na noite de Domingo, apesar de matematicamente ainda estar na corrida pelo primeiro lugar, Pedro Nuno Santos foi lesto em reconhecer a derrota e em afirmar que o PS aproveitará a oposição para se reorganizar. Ao mesmo tempo que dizia – com total razão, em minha opinião – que Portugal não tem um milhão de racistas e xenófobos, Pedro Nuno Santos aproveitou para proteger o PS retirando-o daquilo que antecipa (e bem!) será uma luta sem quartel e mortal entre PSD e Chega. Enquanto estes dois partidos se digladiam pelo espaço à direita, enfraquecendo-se mutuamente pelo caminho, o PS assistirá impávido e sereno, afirmando-se como garantia de estabilidade e bom senso. A estratégia de Pedro Nuno Santos é de um enormíssimo cinismo e inteligência. O PS exime-se de ajudar o sistema política num momento de alto, deixando o PSD sozinho a tratar da democracia. Do ponto de vista do partido, é brilhante.

Em segundo lugar, Montenegro não fez uma leitura inteligente dos resultados. Face aos resultados, Montenegro deveria ter clamado para si a vitória eleitoral marginal. No entanto, o seu argumentário deveria ser que, face à pouquíssimo distância em relação ao PS, e até à incerteza que podem trazer os votos dos emigrantes, a decisão do que fazer a seguir seria de Marcelo Rebelo de Sousa. No fundo, deveria ter sacudido a pressão e co-responsabilizado Marcelo pelo que se seguirá.Assim, seria muito mais fácil para o PSD gerir os próximos meses que serão, indiscutivelmente, os mais complexos da história do partido. Os anos de Passos Coelho parecerão um passeio ao lado do inferno que espera Montenegro.

O raciocínio reinante nas elites do PSD sobre a analogia entre 2024 e 1985 é, a meu ver, errado. As elites esperam que, agora, tal como em 1985, Montenegro tenha um mandato curto, bem alavancado no superavit que Costa e Medina deixaram, e, rapidamente, consiga vitimizar-se e, indo a novas eleições, consiga baixar rapidamente o Chega para um resultado mais manejável. Existem, porém, vários problemas com esta teoria. Em primeiro lugar, Montenegro e o PSD não têm o man power disponível com a qualidade que Cavaco Silva tinha em 1985. Especialmente à luz dos resultados eleitorais, Montenegro terá muitíssimas dificuldades em recrutar elites fora do círculo duro do PSD. Em segundo lugar, o Chega não é o PRD. O lastro que o Chega tem, sob o ponto de vista ideológico e de protesto, não é comparável ao partido de Eanes. Por último, enquanto Cavaco tinha o Dr. Soares em Belém, Montenegro terá Marcelo Rebelo de Sousa, o que fará toda a diferença. Não foi por acaso, de resto, que Soares deu uma ajuda preciosa a Cavaco no caminho para a maioria absoluta, recusando a aliança de PS e PRD para substituir Cavaco depois da moção de censura.

A noite de Domingo modernizou Portugal, colocando-nos em linha com a estrutura de competição partidária da Europa. Tivemos a óptima notícia de vermos o Livre, uma esquerda moderna, cosmopolita e descomplexada, a substituir lentamente a esquerda velha marxista e neo-marxista. Muito provavelmente, nas próximas eleições, o Livre ultrapassará o Bloco enquanto força maior à esquerda do PS. Todavia, também tivemos finalmente a ascensão da extrema-direita em todo o seu esplendor. Não há receitas mágicas para lidar com isto, mas também não estamos condenados. Por toda a Europa, à excepção da Hungria, nenhum país deixou de ser uma democracia plena com a eleição destes partidos.