Primeiro, os esclarecimentos:

1 É um enorme equívoco repetir que os médicos, seja onde for, decidem sobre quem vive ou morre. Na verdade, os médicos fazem escolhas, baseadas na melhor evidência disponível, sobre quem deve ser tratado de uma ou outra forma. Nem se trata de tratar ou deixar morrer. É apenas a imperiosidade de fazer escolhas éticas sobre quem pode beneficiar mais com um tratamento em detrimento de outro. Gerir recursos terapêuticos, sempre escassos, em função da melhor adequação à necessidade existente, é um dos mais nobres e difíceis papéis da medicina. Logo, por exemplo, decidir não submeter uma pessoa a um determinado tratamento quando há elevada probabilidade de que ela não tenha benefício com essa intervenção, seja ventilação mecânica ou prescrever um medicamento, é boa prática.. É isso que se exige de um médico. É a dureza da profissão. No entanto, o que se tem passado em Itália é o caso limite de ter de escolher entre doentes aparentemente iguais. Seja como for, há sempre critérios, nem que seja o bom senso clínico. Há quem se esteja a preparar. E nós?

2 O desenvolvimento de fármacos e vacinas para a COVID-19 coloca novos desafios para investigadores, indústria farmacêutica e a sua regulação. Não vou agora focar-me na necessidade de acautelar o acesso a todos e não apenas aos países mais ricos. Para já, interessa alertar para a necessidade de compatibilizar a rapidez de testes clínicos com a necessária segurança. Grande parte das descobertas com que os jornais nos encantam ainda estão longe de serem resultados fiáveis. Não podemos deixar que morram pessoas por causa da cura, é certo. Mas é preciso não hesitar na oportunidade de ensaiar, mesmo que sem braço comparativo, em fases 1 e 2, toda a panóplia de possibilidades existentes. Ainda que sob o indispensável consentimento informado, será lícito usar toda a gama de medicamentos que possam parecer úteis. É preciso paciência e muita persistência.

3 A letalidade em Portugal, tal como na Alemanha, ainda está abaixo das médias internacionais. Atenção! A letalidade não é comparável, nem se podem extrair, para já, conclusões sobre a qualidade dos cuidados, a disponibilidade de lugares em cuidados intensivos ou modelos de financiamento do sistema. Tirando os casos extremos, um sistema de saúde não é pior do que outro por ter mais mortos com COVID-19. Pode ser, mas ainda não é possível afirmar isso. Não sabemos se as populações atingidas são idênticas e que modelo de padronização deve ser usado. Não sabemos se a população internada tem características comparáveis em termos de idade e comorbilidades. Não sabemos se o internamento dos doentes foi mais precoce ou tardio e se o tempo decorrente entre o início de sintomas e a hospitalização faz alguma diferença. Não sabemos que tipo de tratamentos foram usados. Nem sabemos se podemos comparar a mortalidade entre hospitais especializados e gerais, entre unidades de cuidados intensivos ou entre métodos de assistência respiratória. Estamos todos a aprender. Nem sequer é possível inferir directamente sobre uma hipotética relação entre a adequação do número de testes feitos, características de pessoas testadas e a letalidade. O número de testados serve para comprovar a incidência e perceber quantos dos infetados têm COVID-19 e, destes, quantos precisam de tratamento médico especializado. Relacionar mortalidade com números de testes é um proxy errado. Ter feito mais testes, mais cedo, poderia ter servido para avaliar a dimensão do problema e interromper cadeias de transmissão, o que não seria pouco. Mais testes poderiam ter contribuído para diminuir a incidência, não necessariamente o número de mortes

4 A FDA e a EMA, com a cautela habitual e após o tempo de espera normal, emitiram declarações sobre o uso de ibuprofeno e outros anti-inflamatórios não esteróides na COVID-19. Cautelosos e verdadeiros. Não se sabe se fazem mal, o que é diferente de dizer que não há efeitos deletérios. O problema da COVID-19 é esse mesmo. Há muito que ainda não se sabe. Em todo o mundo há ministros que falam de mais. E a OMS atrapalhou-se…

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5 Quem fuma tem mais hipóteses de morrer de tudo e por tudo, em especial da COVID-19. Cá está mais uma excelente oportunidade, face a um perigo real e presente, para tentar deixar de fumar. É difícil e não será a melhor altura para tentar, mas o ganho pode ser a diferença entre viver ou morrer. E se fuma, compreendendo os efeitos psicológicos do isolamento em casa, do ócio, da ansiedade e da irritação, tente reduzir.

6 A OMS não foi suficientemente assertiva sobre a política de testes de SARS-Cov-2. Portugal foi seguidista e fez mal. Outros foram mais afoitos e fizeram melhor. No entanto, sejamos justos, num contexto de falta de testes e dadas as limitações dos mesmos, até nos EUA há restrições ao uso dos mesmos, se é que os EUA sejam agora exemplo para quem quer que seja. Em Portugal é melhor reconhecer que há política de racionamento de testes do que insistir na ilusão de que chegam para tudo.

Depois, os apelos:

A Não deixem de doar sangue! A página Web do IPST tem informações sobre quem deve excluir-se de dar sangue mas falta-lhe o apelo a que não deixem de doar. A larga maioria dos potenciais dadores de sangue não tem impedimentos e não deve deixar de fazer doações. A falta de componentes e derivados do sangue pode ser mais um problema a adicionar a todos os que temos. Não é por haver COVID-19 que as outras doenças desaparecem. Há quem dependa das doações de sangue para poder sobreviver. Organizem-se com os centros de colheita.

B Evite-se a proliferação de recomendações técnicas. A intenção é seguramente boa, mas não estou certo que a emissão nacional de orientações a partir de sociedades científicas e colégios de especialidade da Ordem dos Médicos ou de outras ordens e organismos, não sendo feita sobre a chancela da Direção-Geral da Saúde ou de outra agência competente do Ministério da Saúde, seja útil. Há risco de contradições e o excesso de informação complica a compreensão e o cumprimento das recomendações. Dito de outra forma, a DGS tem de consultar quem sabe, como é sua tradição. Todos opinamos…até eu. E há um corpo de informação internacional que deve ser adaptada e, posteriormente, adotada.

C Conduzam devagar e ainda com mais cautela. As estradas estarão vazias, mas isso não é razão para correr mais riscos. Agora, mais do que nunca, não podemos ter acidentes graves. Temos uma oportunidade para travar a mortalidade relacionada com acidentes de viação e a nossa capacidade assistencial, nomeadamente a de cuidados intensivos, não pode ser “desperdiçada” com acidentes que são sempre evitáveis.

D Convirá que a PSP e GNR não extravasem o âmbito do que é exigível. O bom senso do governo terá de ser acompanhado pelas forças de segurança. Não tiveram tempo para se preparar e facilmente incorrerão em exageros ou complacência excessiva. Não se pode transformar o aconselhamento e fiscalização em intimidatórias operações stop, tal como não se pode ignorar os inconscientes e infratores.

E É tema tabu. Mas espero bem que, em caso de necessidade indesejável, já esteja tudo preparado para lidar com um excesso de cadáveres. A DGS já tem uma orientação para lidar com os cadáveres de doentes falecidos com a COVID-19. Imagino que os procedimentos para resolver um pico de mortalidade estejam preparados. Lidar com a morte é parte de estar vivo.

F Não deixem de reclamar, denunciar, aperfeiçoar, ajudar e educar. Sejamos construtivos. Mas o Dr. António Costa tem de se conter na soberba de dizer que “até agora não faltou nada e não é previsível que venha a faltar o que quer que seja”. É uma afirmação que o pode matar politicamente mais depressa do que todos os coronavírus deste mundo. Quer conter o pânico, mas que o faça com cuidado e ponderação. Ele que desconfie de quem lhe anda a mentir. Falta muita coisa! E o SNS não existe só para tratar a COVID-19. O desempenho do SNS não pode ser apenas medido pelo número de ventilados ou de óbitos na pandemia. Há consequências da pandemia que ainda não estão a ser equacionadas. Mais mortos por outras causas, mais demora, mais doentes em espera, mais problemas de saúde mental, etc. O Dr. Costa ainda não viu nada.

G A protecção do pessoal de saúde para com doentes assintomáticos é muito escassa. O risco para os enfermeiros e médicos que recebem doentes em consulta pode até ser maior do que o incorrido pelo pessoal das unidades de cuidados intensivos, simplesmente porque os primeiros não têm proteção adequada. Generalizadamente, não temos o que é recomendado, nomeadamente máscaras FP2, batas de abertura atrás descartáveis e proteção ocular. O pessoal de saúde adoece e não é imortal.

H No conforto dos nossos lares não esqueçam os nossos pobres e sem abrigo, mas também os que vivem nos bairros de lata da Ásia, África e América do Sul onde a COVID-19 poderá resultar numa chacina. Ainda não entendemos a dimensão do que isto poderá ser em teatros de guerra, como o da Síria e os seus campos de refugiados. As condições de higiene básica, de acesso a oxigénio medicinal, a hidratação, de risco de co-infecções e de acesso aos mais banais antipiréticos não estão asseguradas para a esmagadora maioria dos humanos.

I Agradeçamos a todos, não apenas aos profissionais de saúde. Agradeçamos a quem fica em casa e percebe a necessidade de isolamento, às forças de segurança, a quem nos atende nas farmácias, a quem não desistiu de cuidar dos idosos, aos que fazem a recolha do lixo, aos lojistas que têm de ficar abertos, aos funcionários dos bancos e dos correios, a quem entrega comida nas casas, a quem continua a cozinhar, aos jornalistas que nos informam, no fundo a todos que continuam a trabalhar para que a normalidade não se perca ainda mais.

PS. Julgo ter vencido a agáfobia. Outros erros existirão. Tal como os outros, não vejo tudo, não sei tudo.