Afinal o que está errado na democracia portuguesa? Ou funcionará ela perfeitamente, resistindo até a tempos difíceis, maus líderes, delapidações como o BPN ou o GES?

E se há alguma coisa errada – se está tudo errado – porque não se faz, afinal, a reforma do sistema político, do Estado, a constitucional?

A semana passada, a inaugurar o ciclo designado Ter Estado, o Instituto de Defesa Nacional (IDN) convidou cerca de 20 cientistas políticos – universitários e investigadores – para discutir a reforma do sistema político. O resultado será publicado em livro pelo IDN, incluindo os argumentos, conclusões e nome dos protagonistas. Hoje limito-me a tecer algumas considerações e a apropriar-me (com vénia aos participantes) de algumas ideias.

Antes do mais, do que falamos quando falamos de sistema político? Resumidamente, dos sistemas de governo (a governabilidade), eleitoral (escolha dos representantes), partidário (formação e selecção dos agentes políticos). Uma afirmação aprovada por quase todos os participantes foi a de que o sistema político só se reforma se os partidos políticos quiserem (intra-sistema). E ainda mais se implicar uma reforma constitucional. Ora do que precisam os partidos para empreenderem uma verdadeira reforma e não apenas mudanças (ou propostas) de cosmética ditadas por oportunidade política, como as primárias, a redução dos deputados ou das pastas governativas? Precisam, defendeu-se no IDN, de ameaças ou incentivos suficientes. Quais serão elas e eles, eis a dúvida.

Do debate emergiu uma conclusão quase contra-intuitiva (da intuição comum), a de que o sistema político nacional funciona bem e não precisa de reforma. Porque, disse-se, se não houve reforma foi por não ser precisa: é um sucesso o sistema de governo, que funciona com estabilidade; é um sucesso o sistema eleitoral que permite a representação de todas as correntes; é um sucesso o sistema partidário, que tem problemas a que os partidos políticos estão a dar resposta (e quem chega sempre atrasado são os académicos).

Foi apesar de tudo evocado um eventual problema de governabilidade, mais à esquerda do que à direita, a requerer soluções micro e meso (na linguagem usada, este é um nível de análise entre o micro e o macro referido a determinados grupos populacionais, comunidades ou organizações). Mas o défice principal é de cultura cívica e de participação na coisa pública por parte dos portugueses. São os hábitos de intervenção política que importa mudar. Outra ideia relativamente consensual foi a necessidade de escrutinar as políticas públicas.

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No essencial, os cientistas políticos do IDN consideram que a insatisfação com a democracia, comprovada regularmente pelos estudos de opinião, não representa um problema de regime.

Não sei se é possível tirar conclusões da iniciativa, que juntou gente de algo do pensamento político, mas ficou-me a sensação de que a discussão falhou um pouco o alvo. Faltaram talvez dimensões macro como a reforma do Estado, a questão da cultura política numa perspetiva identitária, as envolventes internacionais, insuficientemente tratadas, a influência das redes comunicacionais. Permito-me algumas ideias complementares da minha lavra:

Há um problema da democracia em Portugal. Ninguém entre nós pensa o futuro com consequência, a estratégia para chegar a qualquer lado e a que lado se quer chegar; se alguém o faz, é descartado como irrelevante. As políticas públicas são quase sempre avulsas, decididas ad- hoc ou com pouco tempo de gestação. E cada novo poder apaga quase sempre o que o anterior deixou, como um jogo de lego em que os governos derrubam as peças encaixadas pelos precedentes e recomeçam da base. Isso impossibilita o consenso ou os acordos partidários sobre soluções para o país, quando elas são tantas vezes fundamentais.

Faltam em Portugal 2 peças essenciais e interligadas para o bom funcionamento do sistema: centros de reflexão estratégica consistentes e influentes (como lembrou recentemente Carlos Gaspar) e uma administração pública estruturada, consolidada e despartidarizada. Os gabinetes ou direcções de estratégia e planeamento dos ministérios são incapazes de produzir resultados implementáveis – ou se o fazem, a agenda governativa, por ditames partidários ou de comunicação, arruma-os na gaveta de onde ousaram sair. Todos conhecemos ministros, presidentes de câmara, assessores… todos se queixam de falta de tempo para “pensar”. Um ministro disse-me um dia que, desde o dia da tomada de posse, deixara de dispor de uma hora livre que fosse para reflectir sobre os rumos a prosseguir na área por si tutelada.

As políticas públicas resultantes desta forma de fazer política, sem reflexão profunda, coordenada, consistente e prospectiva, são em geral feitas para o curto prazo, rapidamente caducas, convidando à substituição. As próprias leis são plenas de falhas, de coerência, rigor jurídico, erros gramaticais ou remissões para normas inexistentes e isto sem entrar nas questões da constitucionalidade. São precisos exemplos? Lembram-se do diploma de Janeiro 2013 sobre o pagamento de metade dos subsídios de férias e de Natal em duodécimos no sector privado? Do código de processo civil de 2013? Do novo desenho administrativo de Lisboa, chumbado por Cavaco, que pediu “qualidade e rigor na produção das leis”? Da lei da limitação dos mandatos? Em 2010, foi calculado que os custos relacionados com a legislação mal feita eram de 7,5 milhões/ano. E se é elevado muito maior é o real, pelas consequências indirectas em confiança, credibilidade e sustentabilidade das decisões.

No crepúsculo do 2o governo Sócrates, foi aprovado o programa Simplegis, visando simplificação legislativa, acesso à informação legislativa e melhor aplicação. Já se deu pelos resultados? E às vezes as políticas públicas anunciadas ou aprovadas são meros enfeites para malabarismos de comunicação política, pendentes de regulamentação que nunca chega ou que, quando ocorre, desvirtua os objectivos iniciais. Assim de repente recordo a Agenda Portugal Digital (APD) aprovada em Dezembro de 2012: os resultados esperados e obtidos continuam misteriosamente discretos, contrastando com a entrada retumbante e tonitruante da sua proclamação e aprovação, há dois anos.

Em resumo, há um problema democrático em Portugal. É de cultura política, mas também da forma como o Estado está organizado. Os agentes políticos são os principais responsáveis pela reforma indispensável e urgente e necessitam de incentivos para a fazerem. A sociedade civil pode ter um papel fundamental para a criação desses incentivos.

Mas não adianta enterrarmos a cabeça na areia e negar a evidência: o indiscutível afastamento dos cidadãos da coisa pública obriga a uma enorme responsabilidade dos decisores, dos agentes políticos, dos académicos, dos cientistas. Só com uma reforma substancial e séria poderá a cultura cívica dos portugueses aumentar.

 

PROFESSOR DA UNIVERSIDADE CATÓLICA – INSTITUTO DE ESTUDOS POLÍTICOS