Finalmente temos em discussão pública um pacote de medidas de políticas de habitação, que devidamente debatida e melhorada, poderá constituir a primeira grande reforma deste governo. A inacessibilidade da habitação é um problema que exige uma resposta inadiável. Certamente que não haverá consenso, nem sobre os objetivos prosseguidos, nem sobre os instrumentos usados. Há quem já critique as medidas por irem contra o direito constitucional à propriedade privada, esquecendo que a habitação também é um direito constitucional e que uma atenuação do primeiro direito pode ser, e é certamente, uma condição necessária para a realização do segundo, dentro de certos limites.

Começo, porém, pelos prolegómenos. A habitação, é um dos direitos fundamentais e um dos elementos essenciais do bem-estar individual e familiar e está a ser sonegada a uma porção cada vez maior de portugueses a um ritmo nunca visto. Porque é que uma crise, das mais profundas da sociedade portuguesa, e que maior contestação social originará se não for atacada com determinação, levou tanto tempo a ser abordada pelo poder político, central e local? As razões são essencialmente duas. Os partidos para atacarem um problema têm de o conhecer. Mas como estão fechados sobre si mesmos, sem gabinetes de estudo apropriados e bem alheados do que se reflete na academia e na sociedade só muito tarde o identificam. Por isso têm estado a assobiar para o lado até que o problema rebente.

Entre vários outros artigos, bastaria ler o de João Seixas e Gonçalo Antunes (2019) em que se analisa a evolução rápida e dramática da taxa de esforço na compra, ou arrendamento, da habitação em apenas três anos (2016 1ºTrimestre a 2018 4º Trimestre) para se perceber que estamos na presença de uma verdadeira bomba relógio (1). Ou basta olhar para qualquer indicador nacional ou europeu na área da habitação, que denota esta crise: a idade a que os jovens saem de casa dos pais (ocupamos os lugares cimeiros), o preço do m2 sobretudo nos grandes centros urbanos (Lisboa, está ao nível das mais caras cidades europeias), a quebra brutal de compra de habitação pelas gerações jovens, etc. Chegou-se à situação caricata, mas muito real, de a PSP ter de comprar novos prédios para instalar novos agentes em Lisboa.

Desde 2015 o preço da habitação, nos países da União Europeia, aumentou 37%. O problema é geral e convém estudar as respostas políticas adotadas noutros países. Acontece que em Portugal a situação é ainda mais grave. Neste período, aumentou 68%! Com a subida das taxas de juro, o problema torna-se mais explosivo.

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O outro factor que adiou uma reforma é que quase sempre, em políticas públicas existem conflitos entre os objetivos de política, embora isso raramente seja reconhecido. Aquilo que é bom para certo objetivo pode ser mau para outro. Se o trade off é reconhecido poderá tentar-se um equilíbrio. Se não é, joga a pressão do lóbi mais forte. Neste caso temos de um lado os objetivos da atração de capital estrangeiro, de turistas (para promover as exportações) e de novos residentes, do outro, a acessibilidade à habitação por parte dos portugueses. Ora se pensarmos nos lóbis que estão associados ao imobiliário e ao turismo eles são muito mais fortes dos que os quase inexistentes associados a “viver uma vida digna”.

Em Portugal partimos de uma situação de congelamento de rendas, vindas do Estado Novo, que protegeram os inquilinos, fizeram dos proprietários os patrocinadores e financiadores implícitos da política social e habitacional que deveria pertencer às autarquias locais e ao Estado (mas em que ambos se demitiram). Isto levou a um mercado de arrendamento estagnado, depauperado e em acelerada degradação. Esta situação prolongou-se desde 1948 até já depois de finais dos anos 70. Passou-se para uma situação quase oposta de liberalização das rendas, de parcial desregulação do mercado e de novos usos dados ao alojamento (em particular alojamento local), de incentivos de vários tipos para atrair capital e residentes estrangeiros (desde os vistos gold a incentivos fiscais a não residentes). Os poucos incentivos fiscais corretos no sector (por exemplo a possibilidade de agravamento de IMI em prédios em estado de degradação) não têm praticamente sido adotados por parte das autarquias locais.

É ainda cedo para avaliar todas as medidas em discussão pública (apenas num reduzido mês) e que precisam de ser melhor detalhadas. As propostas são várias e apenas irei identificar princípios gerais que deveriam orientar a reforma e deixar algumas notas sobre algumas propostas com as quais concordo, outras que discordo ou que considero inócuas.

Uma reforma abrangente como esta devia ser norteada por princípios. Eficiência e eficácia. Os instrumentos utilizados devem ser os mais adequados para atingir os objetivos com menos ineficiências geradas e menos “danos colaterais” noutros objetivos. Complementaridade. Deveria ser claro aquilo que competirá ao Estado, às regiões e aos municípios. Sustentabilidade política. A durabilidade da reforma, que exige continuidade, exige estabilidade das políticas (governo até fim de legislatura) e uma perspetiva de continuidade pós 2026. Isto exige um diálogo construtivo quer entre os maiores partidos, quer entre governo e autarquias. Sustentabilidade financeira. Não basta pensar no PRR que acabará em 2026, é necessário articular já com o final do PT2020 e, sobretudo, o início do PT2030. A habitação social não será construída e acabada em 2026. Equidade e justiça social. É o mais difícil princípio a aplicar, pois regras diferenciadas geram inevitáveis injustiças. Simplicidade. O mais simples e simultaneamente mais justo local para dar incentivos fiscais é em sede de impostos sobre o rendimento (IRS e IRC), na dedução à coleta para quem tem coleta (quem não tem só poderá ser beneficiado com um subsídio). Deve evitar-se multiplicar regimes paralelos de incentivos que só vão promover atividades de rent seeking. Transparência. Sempre que houver lugar a sorteios ou decisões em que a procura exceda em muito a oferta os critérios de elegibilidade e processos de sorteio devem ser claros.

Apenas uma apreciação preliminar de algumas medidas. Comecemos pelas obviamente positivas. Os vistos gold, a meu ver nunca deveriam ter existido e não cumpriram os objetivos a que se destinavam. Alguém ainda se lembra que deveria haver criação de emprego associado ao investimento? Nalguns casos terão mesmo promovido a corrupção ou o branqueamento de capitais. Critiquei os vistos gold na Assembleia da República, há uns anos atrás. Já não era sem tempo.

Reforçar a discriminação positiva em sede de tributação de rendimentos prediais, cuja taxa de imposto diminui com o aumento da duração do contrato. Esta medida, que foi recentemente introduzida, tem todo o sentido ser reforçada pois dá grande estabilidade às famílias ao mesmo tempo que pode promover contratos mais longos.

Outros benefícios fiscais, como a isenção de imposto sobre mais valias de imóveis vendidos ao Estado e municípios justificam-se, embora tenham uma eficácia incerta.

O objetivo de conter o alojamento local em zonas urbanas parece-me obviamente correto e várias metrópoles estão a fazê-lo. Isso pode ser feito via regulação e através da fiscalidade. Das várias propostas em cima da mesa parece-me excessivo a que isenta até 2030 os rendimentos prediais de alojamentos locais que passem para o mercado de arrendamento. Sobretudo porque cria uma iniquidade brutal com rendimentos de prédios arrendados. Uma taxa reduzida de 5% parecer-me-ia mais equilibrada.

A intenção de aliviar as famílias, quer com a subida de rendas, quer com o aumento dos juros dos empréstimos à habitação é acertado sobretudo se associada a medidas que controlem a subida das rendas. Os critérios de elegibilidade não podem é ser de tal forma apertados que poucas famílias beneficiem.

Há medidas que me suscitam sérias dúvidas quer quanto à eficácia quer quanto à sua constitucionalidade. A obrigatoriedade de toda a banca oferecer uma taxa fixa em novos créditos à habitação considero uma medida inócua, pois essa taxa, a tornar-se obrigatória não beneficiará os que recorrem ao crédito. A mobilização pelo Estado do património devoluto, parece-me que não passará o teste da constitucionalidade, caso seja aprovada. A via fiscal, nomeadamente em sede de IMI, parece-me a mais adequada para lidar com este problema, mas aqui é necessário um maior ativismo municipal.

Enfim, estamos no início da conversa. O essencial da concretização deste pacote é também saber quanto é que o governo, em sede de Orçamento de Estado, estará disposto a gastar ou a reduzir a sua receita (em despesa fiscal) e quanto é que os municípios estão dispostos a investir em habitação social.

Esta é, seguramente, uma das reformas mais importantes que este governo poderá e deverá fazer nesta legislatura. É importante que a sociedade civil se envolva a par dos partidos políticos. E é importante perceber que há muitos interesses e lóbis instalados que irão tentar bloquear qualquer reforma. Porém, ela tem de ser feita. Para que esta bomba não nos exploda nas mãos.

(1) João Seixas e Gonçalo Antunes (2019) “Tendências recentes de segregação habitacional na Área Metropolitana de Lisboa” Cidades Comunidades e territórios 39