Sleepwalkers

Sonâmbulos1, foi o qualificativo que o historiador Christopher Clark achou que melhor se aplicava às elites europeias quando, em 1914, no pico histórico do seu desenvolvimento económico e tecnológico, optaram por deixar cair o Continente na destruição total. Quem deveria cuidar do bem público demitiu-se das suas obrigações, enquanto o povo se inebriava pela grande causa da honra nacional e do heróico ataque aos vizinhos. O resultado é conhecido: uns milhões de mortos, economias e infra-estruturas destruídas e o início do fim da supremacia global para as potências europeias. O pós-guerra fez fechar as nações em si mesmas e o emagrecimento do comércio mundial levou à crise económica. Com a crise veio o desespero que abriu a oportunidade para Hitler e para as soluções finais. E assim se foi andando em direcção a uma nova guerra, a 2ª mundial, que, essa sim, colocou os Estados Unidos e a Rússia na liderança global. Na História da Europa no século XX, os sonâmbulos passaram a subalternos.

Sonâmbulos é o qualificativo que melhor explica, também agora, o comportamento das nossas elites actuais. Governos e povos assistem, com alguma indiferença, à vaga de imigração que se abate consistentemente sobre a Europa. Imigração que se justificou inicialmente com a necessidade de crescimento económico e o recurso a mão-de-obra que não existia no Continente. Mas recentemente, o impacto de uma população imigrante, não integrada e aspirando a um mundo diferente do nosso, começou a ser sentido de forma negativa. Uma nova componente de cidadãos de direito, mas não de convicção, ganhou dimensão e põe em causa o universo cultural que os acolheu.

Os sonâmbulos políticos europeus foram ajudados pelos interesses económicos dos que necessitam de imigrantes para que o seu modelo económico funcionasse e pelos que professam ideais generosos ou religiosos que impedem a recusa à entrada a quem a necessita, seja por razões humanitárias, políticas ou económicas. O movimento humano em direcção aos países desenvolvidos não tem parado de aumentar, alimentado pelas guerras que se avolumam e pela natalidade explosiva nos países onde não há recursos nem esperança. O caos foi-se instalando paulatinamente na Europa entre os diferentes países: uns porque são a porta de entrada, outros porque são o ponto de destino, outros, como alguns países do Norte, porque não querem despesas que acham não ser da sua responsabilidade, ou ainda outros, como a Polónia e a Hungria que, mesmo não conhecendo internamente a imigração, deixaram os fantasmas do medo ocupar o espaço mediático.

E pur si muove!

Hoje é impossível ignorar que a paisagem social já se alterou na Europa e que esse movimento tem todas as condições para se reforçar. De acordo com dados do World Bank 2, a variação de população entre 1990 e 2022 foi, nos países que acolhem imigrantes, de +46% na Irlanda, +31% na Suíça e Noruega, +22% na Suécia e Espanha, +18% na Holanda, +17% na França, R.U., Áustria e Bélgica, +12% na Finlândia, e apenas de +6% na Alemanha e de +4% na Itália, Grécia e Portugal. Claro que é necessário analisar o que estes números significam: qual foi o contributo da natalidade, se são movimentos de população intra-europeus e de que tipo, ou se resultam de migrantes económicos e refugiados de outros Continentes. Mas a verdade é que a população não cresceu em todo o lado; diminuiu mesmo de 29% na Ucrânia e Bósnia, 25% na Bulgária, 19% na Roménia, 7% na Hungria e 1% na Polónia. Nestes países não é possível falar em invasão de migrantes, com a excepção recente da Polónia que recebeu os refugiados da guerra da Ucrânia.

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Mas se na Europa há países que perdem população para outros destinos no Continente, a imigração que perturba é a que vem de mais longe. Ainda segundo os mesmos dados do World Bank, registaram-se, nesse período, nos países ao sul do Mediterrâneo, aumentos dramáticos da população: Iraque +151%, Egipto +94%, Síria +78%, Argélia +75%, Líbia +58%, Turquia +57% e Marrocos +53%. E isto sem falar do aumento populacional na África subsaariana, que lança milhões ao caminho da procura por uma vida melhor, a que se juntam os refugiados da Síria e do Afeganistão.

O movimento de populações, característica histórica permanente da Humanidade, está hoje em plena actividade. E assim como os romanos ocuparam os celtas e impuseram as suas leis, e como os visigodos destruíram depois os romanos, a sua ordem jurídica e sociedade, e como os árabes ocuparam os visigodos e tantos outros povos onde impuseram a sharia, também agora se assiste a movimentos que estão a produzir mudanças nas sociedades de acolhimento. Pretender fazer crer que isto não está a acontecer, não é a atitude mais responsável. Actualmente, em vários países da União Europeia, em particular em França e na Bélgica, a mudança de sociedade já ocorreu em certas áreas onde as regras e os costumes são irreconhecíveis face ao que existiu nos últimos séculos. Não existindo um domínio claro de nenhum dos grupos – nem do residente, nem do novo ocupante – a liberdade de cada um está condicionada pela força do outro. Quando um professor de liceu, cuja função é a de formar os homens do futuro, ou um jornalista, que existe para informar a opinião pública, ou ainda um padre cristão que defende a sua fé, preferem esquecer o que são porque a sua verdade os coloca em risco de vida, tal significa que todos eles fazem já parte de uma sociedade sitiada.

Meu Deus

A imigração é sem dúvida um tema complexo. Há razões económicas de ambos os lados, de quem procura mão-de-obra e de quem procura trabalho. Mas hoje há sobretudo um elefante na sala, que voluntariamente optámos por considerar tabu: a religião dos imigrantes e a sua atitude face ao mundo ocidental de cultura cristã. É verdade que milhões de irlandeses, polacos e italianos promoveram o desenvolvimento económico dos Estados Unidos nos séculos XIX e XX e não destruíram o seu país de acolhimento. É verdade que milhões de espanhóis e portugueses explicam grande parte do crescimento da França do pós-guerra, com as gerações subsequentes a integrarem a sociedade. No entanto, irlandeses, italianos, espanhóis e portugueses, apesar das suas diferenças culturais, partilhavam todos o mesmo conceito base da vida e da sociedade, que a religião cristã lhes proporcionava. A conversa era possível porque tinham uma língua comum. É também verdade que os imigrantes chineses, japoneses e indianos foram (e continuam a ser) importantes para o sucesso económico dos Estados Unidos, não só como mão-de-obra, como aconteceu no passado, mas também pelo génio científico e empresarial nos dias de hoje. Mas nem uns, nem outros, apesar das emoções nacionalistas próprias, lançaram aviões contra as Torres Gémeas para destruir os infiéis.

O problema da imigração com que estamos confrontados é outro e mesmo que se pretenda sonambulamente ignorá-lo, o problema chama-se religião.

Falar de religião para tentar perceber os problemas da sociedade é um tema tão minado e explosivo que o melhor é mesmo evitar fazê-lo. O que não deixa de ser uma variante oportunista e cobarde do sonambulismo. Claro que é possível tentar perceber o problema. E o problema é que a religião cristã e a muçulmana professam cada uma a sua singularidade exclusiva, que autojustifica a necessidade de impor a sua fé e o seu modelo de sociedade aos outros. Vale a pena ter presente que esta singularidade militante, nunca foi uma característica obrigatória de todas as religiões. As infinitas formas como os humanos ao longo do tempo se tentaram relacionar com o desconhecido, raramente implicava a necessidade de aniquilação das outras crenças. Mas no caso das religiões surgidas do Livro dos Judeus, essa é uma questão essencial. É a primeira obrigação dos fiéis, já que o seu Deus é único e todos os outros não têm por isso razão de invocar a sua existência. Devem ser aniquilados.

A diferença essencial é que o mundo ocidental de hoje não tem nada a ver com a intransigência teocrática dos tempos passados das cruzadas e da Inquisição, em que a suspeita de desvios no entendimento da fé levava à fogueira. O mundo cristão ocidental é hoje, sobretudo, uma comunidade de partilha de valores muitas vezes inclusivos de que nos orgulhamos e que são o cimento de uma sociedade aberta a que nós chamamos civilização. Cristã, claro. Uma maturidade humanística que o mundo muçulmano ainda não foi capaz de atingir e que, pelo contrário, evoluiu em sentido inverso, levado pela força que advém do dinheiro do petróleo de uns e pelo desespero de outros que, não tendo petróleo, nada mais têm a perder.

Quo Vadis?

E agora? Vamos continuar a achar que a moral do acolhimento aos necessitados obriga a manter as portas abertas? Vamos pelo contrário levantar muralhas nas fronteiras? Vamos promover uma guerra civil de reconquista de espaços onde a nossa civilização já não mora? O que devemos sim, e urgentemente, é pensar sobre o que queremos do nosso futuro. O que implica falar, analisar, discutir e, sem dúvida, agir. E se queremos manter a civilização de que nos orgulhamos, teremos de possuir a força necessária à sua defesa. O que implica com certeza o controlo e orientação dos movimentos humanos, impedindo os que entram de destruir o que nos orgulhamos de ser.

1 The Sleepwalkers: How Europe Went to War in 1914, Christopher Clark – PENGUIN BOOKS LTD 2013
2 Data from World Bank 1990-2022 by Marko Jukic