O Presidente da República deu uma entrevista a Anabela Neves, da CNN, enquanto viajava de carro para Viseu. Na verdade, não sei se foi uma entrevista se foi uma variante discreta de um monólogo. Na verdade, também não sei se quem deu a entrevista foi o Presidente da República, a primeira figura do Estado. Mas, inequivocamente, Marcelo Rebelo de Sousa, o homem, o comentador televisivo e o narrador de si mesmo, falou com a CNN.

Portugal é um país sui generis no que à Presidência da República diz respeito. Afinal, foram anos de subalternidade parlamentar, de facto, reforçada depois pelo Estado Novo, isto é, pela dominância de Salazar e a sua omnipresença institucional. Quando transitámos para a democracia, coube ao General Ramalho Eanes criar e definir o espaço presidencial. Este foi posteriormente redefinido quando se tornou um lugar civil.

Creio que terá sido Jorge Sampaio quem resumiu exemplarmente o dever de um Presidente da República: vigiar o regular funcionamento das instituições. A forma como o faz, a gestão das suas intervenções, das suas presenças, portanto e de igual forma, dos seus silêncios e ausências, compõe o tom presidencial: mais ou menos reservado; mais ou menos assertivo.

É também da responsabilidade das instituições democráticas, e assim também da Presidência, a aproximação entre os cidadãos e essas instituições. Não haverá uma diferença profunda entre isto e fazer comentário político-partidário? Entre isto e a exuberância de abraçar, beijar e fotografar a eito?

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

Há um fio condutor entre mergulhar no Tejo, quando se é candidato à Presidência da Câmara de Lisboa, ser comentador televisivo em rampa de lançamento, e ser afectuosamente populista na Presidência da República. Marcelo Rebelo de Sousa é tão sui generisquanto o cargo que ocupa. Conhece Portugal, os portugueses e a política desde sempre – as suas circunstâncias familiares foram um posto de observação privilegiado. A aproximação de Marcelo Rebelo de Sousa aos Portugueses é digna de um estudo de caso. Foi cultivada e estabelecida. Marcelo Rebelo de Sousa transformou-se em Marcelo. Marcelo, o Presidente que é referido por todos pelo nome próprio. Quem mais conseguiria construir uma ponte para atravessar o espaço que existia entre cada português e o poder político? Deixou de existir o pobre mas honrado a olhar de longe e reverente o rico e o poderoso. Fechou esta ferida característica da miséria e do provincianismo que Salazar aprofundou. Hoje, uma barriga de qualquer proveniência social ou económica pode ser beijada pelo Presidente. Mas, por ironia, como acontece quando se vive pelo avesso de algo, origens humildes/origens privilegiadas; nome de família/nome próprio; extrema contenção/exuberância; distância/proximidade, as fibras do tecido são as mesmas. O avesso de um polícia é um ladrão. Tanto Salazar como Marcelo levaram o povo pela mão. Um para lhe dar direcção e ser pai. O outro quer mimá-lo e sentir-se amado, e é bem sucedido: quer discordemos ou não dele, o presidente é gostável, afectuoso, humano. Mas tão só e tão fechado no tempo está um como está outro.

A democracia portuguesa tem 48 anos. Não é apenas adulta, é de meia idade por muito que esteja cheia dos tiques de prepotência adolescente exibidos pelo governo, pelos seus acólitos e pelos media ou spin doctors de serviço.

A democracia para ser madura e consolidada quer-nos informados, exigentes e próximos das instituições que a devem defender e garantir. No entanto, nada disto será directa ou indirectamente patrocinado por Marcelo Rebelo de Sousa.

E a despeito da gravidade das circunstâncias que vivemos e temos adiante, hoje, e uma vez mais, Marcelo Rebelo de Sousa demonstrou que é evitante e não confrontacional.

O Presidente, imagino, terá acabado de dar mais uma alegria ao PS de António Costa, o «mata-borrão». E mais um desgosto ao centro-direita.

A autora escreve segundo a antiga ortografia