Num processo recente mediático, investiga-se o exercício de alegadas pressões sobre membros do Governo e do setor público, com a imputação do denominado crime de tráfico de influência.

Trata-se de um ilícito que tem uma estrutura diferente da corrupção. Enquanto a corrupção é cometida quando se promete ou oferece uma contrapartida a um político ou funcionário, tendo em vista a prática de um ato lícito ou ilícito, já para o tráfico de influência é indiferente se algum político ou funcionário recebeu efetivamente alguma coisa.

O que está em causa, pondo as coisas de forma muito simples, é pagar ou prometer algo a alguém para que abuse da sua influência junto do setor público, com o objetivo de alcançar um determinado fim ou decisão favorável.

Sendo que, para o crime ser cometido, nem sequer é relevante se esse fim ou decisão que se pretende alcançar é legal ou ilegal. Isso só tem consequências a nível da pena.

Volto a frisar que não vou aqui debruçar-me sobre o processo a que acima faço referência, se o que está em discussão constitui crime ou não. Até porque desconheço completamente as provas existentes e não me compete opinar sobre casos concretos.

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

Mas não posso deixar de constatar que o tema justifica que se inicie o debate sobre o exercício da atividade de lobismo em Portugal.

Primeiro ponto: de acordo com o art.º 11.º do Tratado da União Europeia, “as instituições, recorrendo aos meios adequados, dão aos cidadãos e às associações representativas a possibilidade de expressarem e partilharem publicamente os seus pontos de vista sobre todos os domínios de ação da União”.

Ou seja: não é ilegal contactar com o setor público e dar-lhe a conhecer as preocupações sentidas. O que é ilegal é fazê-lo abusivamente.

Nos Estados Unidos, aliás, chega-se ao ponto de entender que o lobismo tem assento constitucional, na Primeira Emenda. E desde 1995, com a aprovação da Lobbying Disclosure Act, passou a prever-se expressamente a legalidade da atividade de lobismo político.

Os privados e a sociedade civil têm interesses em várias matérias, alguns deles por vezes conflituantes entre si ou com os do Estado. Interesses sobre matérias ambientes, fiscais, transportes, saúde, economia, direitos dos consumidores ou direitos dos animais.

Será ilegal que dêem a conhecer ao setor público, através de determinados representantes, essas suas preocupações? Queremos mesmo que o Estado passe a recusar todo e qualquer contacto com o setor privado e passe a viver um ambiente de autismo social, ou que, ao invés, mantenha um diálogo com as partes interessadas para apresentem os seus pontos de vista sobre as decisões que as possam afetar, assim se contribuindo para, numa democracia madura e desempoeirada, a melhoria da qualidade da tomada de decisões, através da disponibilização de canais para o contributo de opiniões externas e de conhecimentos especializados?

Repito: que não quero com isto dizer que o tráfico de influências não existe, que não deve ser combatido ou que procuro banalizar o exercício de pressões indevidas sobre o Estado.

É, aliás, precisamente o oposto que defendo: aceitando que a participação do setor privado é uma realidade, o que se tem de fazer é passar a regular esse processo de participação, tornando-o mais transparente e mais responsável.

Se não se passar a definir legalmente o que pode ou não ser feito, e até que ponto, não se consegue impedir os abusos.

O Parlamento Europeu, o Conselho da União Europeia e a Comissão Europeia também já compreenderam isto, tendo reconhecido, no Acordo Interinstitucional assinado a 20.05.2021, que “a transparência no que respeita à representação de interesses é particularmente importante para que os cidadãos possam acompanhar as atividades e ter conhecimento da potencial influência dos representantes de interesses, incluindo a influência exercida através de apoio financeiro e de patrocínio”.

Repare-se, de facto, como não se qualifica neste Acordo, logo à partida, o exercício de “influência” sobre processos decisórios como sendo um crime. Aliás, prevê-se expressamente que o Acordo se aplica “a atividades exercidas por representantes de interesses com o objetivo de influenciar a formulação ou execução de políticas ou de legislação, ou os procedimentos de tomada de decisões das instituições signatárias ou de outras instituições, órgãos e organismos da União”, designadamente através da organização ou a participação em reuniões, conferências ou eventos, a prestação de contributos ou a participação em consultas, a organização de campanhas, ou a elaboração ou encomenda de estudos, sondagens ou inquéritos.

Mas então, como se assegura que esta atividade de exercício de influência não enverede por caminhos abusivos?

É imperativa a aprovação de legislação específica sobre a matéria, com o estabelecimento de regras objetivas para a interação entre funcionários públicos e representantes de interesses privados. O que pode ser feito, como, através de quem, onde, etc.

E estabelecendo, em concreto, as seguintes medidas:

Em primeiro lugar, a criação de um registo público para o exercício da atividade, em que se deva declarar, claramente, os interesses que se visa defender, se se está a atuar em representação de um determinado cliente ou não, se se está a exercer a atividade de forma remunerada ou não (e quem está a pagar), se se possui eventuais ligações com o setor público (se são familiares, amigos próximos ou parceiros de negócio), e se se tem conhecimento de situações que podem, ainda que de forma abstrata, gerar conflitos de interesses com o que se está a fazer.

Devendo ainda apresentar-se certificado do registo criminal, declarando-se ainda se se tem conhecimento de algum processo criminal pendente contra si, ainda que na fase de investigação, ou se foi objeto de algum processo passado.

Em segundo lugar, o estabelecimento de regras de publicidade e divulgação pública. Como pode ler-se na página do Parlamento Europeu sobre “Grupos de interesses e transparência”, “qualquer reunião com o objetivo de influenciar o processo de decisão política ou de tomada de decisões das instituições europeias, independentemente do seu local” dever ser divulgada publicamente. Não podem deixar de ser claramente identificadas todas as pessoas com que se interagiu durante um determinado processo decisório.

Em terceiro lugar, através da criação de um Código de Conduta, por via do qual se obrigue os destinatários assumir um conjunto de deveres éticos, como por exemplo: (i) não dar uso a informação obtidas de forma indevida; (ii) não induzir os seus interlocutores a comportamentos contrários às regras que lhes são aplicáveis; (iii) não lhes prometer ou endereçar presentes, convites ou ofertas inadequadas ou contrárias aos usos e costumes; (iv) apresentar reportes de informação financeira e não financeira relativos à sua atividade; (v) identificar os beneficiários últimos da sua atuação, se se estiver numa relação de cliente-intermediário; e (vi) assegurar que se possui a devida competência para o exercício da sua função, incluindo através da implementação de mecanismos de prevenção de riscos de corrupção e combate ao branqueamento de capitais.

Em quarto lugar, através da sujeição a auditorias ou processos administrativos de inquérito, caso por algum motivo se verifique a necessidade de esclarecimentos ou se tenha tido conhecimento de alguma irregularidade que careça de ser investigada. Caso tal suceda, o representante de interesses deverá prestar-se a dar total acesso a todos os seus arquivos e elementos internos e, uma vez concluía a investigação (que não tem de ser criminal, já que para a reavaliação da idoneidade até pode ser indiferente se foi praticado algum crime ou não), pode eventualmente proibir o representante de voltar a inscrever-se no registo durante um determinado período ou, até, proibi-lo do exercício da atividade de lobismo.

Por último, através do estabelecimento de regras claras quanto às chamadas “portas giratórias”. Deve passar a estabelecer-se um prazo mínimo para que uma determinada pessoa, depois de sair do Governo ou do setor público em geral, possa dedicar-se ao exercício da atividade de representante de interesses e voltar a interagir com o Estado. E igual período mínimo, também, deve passar a existir para que um determinado representante de interesses privados possa, de um momento para o outro, integrar o setor público.

No fundo, é como sucede com todas as atividades reguladas no nosso país. Não se vai impedir o acesso à atividade bancária, à mediação de seguros, à intermediação financeira, à advocacia, ao jornalismo, à publicidade, à saúde ou à atividade partidária, entre outros setores. O que sucedeu em relação a todas estas atividades foi que se percebeu que desempenham um papel importante para o funcionamento da democracia e que, dados os interesses públicos em jogo, devem passar a sujeitar-se a regras e limites. Em vez de se fazer de conta que não existem, impõe-se pressupostos de atuação.

Só assim se impede as dúvidas, a opacidade e os abusos.