É possível que, depois de 74, alguém tenha dito algo do género: “francamente, isto da revolução até foi giro, gostei, manifestações lindas, os cravos até são uma flor bonita e tudo, mas estes cartazes assim pela rua fora, valha-me Deus, é como no parlamento: antigamente era tudo do mesmo partido, vinham quase todos de igual, agora parece a taça dos campeões europeus, é só clubes, para mim é muita cor junta, parece a cristaleira da Adelaide, é um copo de cada nação, que falta de gosto”.

Aliás, os diversos estudos sobre as alterações climáticas têm falhado, precisamente, este ponto: o grande responsável pela crise ambiental é a democracia, dado os graves níveis de poluição que produz. A liberdade de expressão gera evidentes quantidades de poluição sonora. (Na clandestinidade as ideias até podem ser subversivas, mas são ditas baixinho). A liberdade de circulação tem aumentado a poluição dos solos. Isto das pessoas poderem andar de um lado para o outro suja muito e gasta demasiado as calçadas. A liberdade religiosa tem deteriorado a atmosfera, porque como cada religião tem o seu paraíso, não necessariamente compatível com o dos outros, isso desequilibra um espaço que, para o efeito, não tem assim tanto pé direito.

Em realidade, a democracia é muito mais que um sistema de liberdades. É, também, a possibilidade de entender o desentendimento, a dissensão e a disputa como uma bênção; como um caminho de regresso e de possibilidade, mais do que como uma estrada de destruição. Por isso é que conceitos como limpeza ou estabilidade lhe assentam tão mal.

De facto, a questão é sempre esta: depois de um jantar de amigos, há quem olhe para a toalha e diga, “que nojo, está toda manchada”, e quem pense, “porreiro, foi uma boa festa, talvez aquele pedaço do Alberto colado ao tecido fosse escusado, mas não há mal”. E mesmo que este segundo grupo de pessoas termine dizendo que vai mandar a dita toalha para lavar – o que não é de todo mal pensado – é sempre para a voltar a sujar, e não para a guardar num museu.

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A verdade é que, na forma como hoje a conhecemos, a democracia é incompreensível sem a influência do Cristianismo. Se nos Evangelhos é claro que Jesus se deixa encontrar por todos, comendo na casa dos derrotados, ao ponto de até ser denominado como “ébrio” e “glutão”, a democracia também só funciona com base no reconhecimento do valor daqueles que não se sagram vencedores. Na Champions League, por exemplo, só uma equipa ergue o troféu, mas no final da noite eleitoral, apesar de haver vencedores e vencidos, até esses se sentam posteriormente no parlamento, com a mesma dignidade que assiste aos mais votados.

É por isso que é particularmente infeliz a recente declaração de Manuel Alegre onde este afirma que “é triste” que haja quem ainda vote na direita. Porque dizê-lo é assumir que ao “outro lado” não reconhece nada, nem a possibilidade de ter um segundo de inspiração. A alegria seria que não houvesse quem pensasse diferente.

No entanto, a democracia, o estado de direito, o sistema de pesos e contrapesos é, precisamente, aquilo que melhor existe contra uma formulação puritana da vida pública, algo também estranho à visão cristã do mundo. Aliás, não raras vezes, uma das insistências de Jesus foi denunciar a falsidade de uma vida higienizada, dos “túmulos caiados de branco” e dos que limpam “o exterior do copo e do prato”, ainda que o seu interior esteja “cheio de rapina e de intemperança”. A este respeito, quando, por exemplo, se denuncia os perigos da “ditadura do relativismo”, devemos sempre perguntar se a solução é a restauração do absolutismo, o regime clean por excelência. Aí o tempo de decisão é o tempo da execução. Aí não há a “massada” de ser obrigado a ouvir o contraditório. Aí não se perde tempo com as demoras da justiça.

Sempre desconfiei desta visão asseada das coisas. Por um lado, porque uma vez, uma tia-bisavó comprou lá para casa uns sofás novos, mas, para não se dar cabo deles, meteu um revestimento por cima do tecido, fazendo com que, com o tempo, sem darmos por isso, eles tivessem apodrecido. Por outro, porque quando entro numa casa impecavelmente imaculada tenho a sensação que não vive realmente lá ninguém. Ou pelo menos ninguém como eu, que raramente se lembra de tirar os sapatos à porta. A verdade é que sempre que alguém pretendeu desinfetar alguma coisa mais séria, quem acabou a ser esterilizado foi ele mesmo. Cromwell e Estaline que o digam. É tudo uma questão de tempo.