“Não estamos a dizer que, agora, a política pública de habitação vai fazer-se entrando pela casas das pessoas (…) Mas é nosso dever ter ferramentas para garantir aquele [o direito à habitação] que também é um direito constitucional.”

Marina Gonçalves, 23 de Fevereiro, Público/Rádio Renascença

1 António Costa já conseguiu várias coisas extraordinárias ao longo dos últimos sete anos — como formar Governo sem ganhar as eleições e ganhar uma maioria absoluta sem fazer uma reforma que se veja.

E agora, que decidiu tentar fazer uma reforma, está a agitar o país com um simples power point que contém um conjunto de intenções e de ideias — poucas boas, algumas claramente ineficazes e outras péssimas e perigosas.

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O programa “Mais Habitação” tem os proprietários de imóveis (seja qual for o seu uso) como inimigos, tenciona reduzir ou acabar com o investimento privado no mercado imobiliário e acredita que o Estado é a única solução para a crise na habitação.

A reforma radical que o Governo Costa quer por em marcha vai agravar ainda mais a crise na habitação nas grandes cidades porque os preços não vão diminuir. Pelo contrário, vão aumentar ainda mais por via da destruição quase atómica de um conceito que qualquer investidor (independentemente do seu poder económico) exige ao Estado: confiança e previsibilidade.

Pior do que tudo: além de criar um Estado Okupa, a ministra Marina Gonçalves conseguiu a proeza de criar o contexto ideal para surgir uma nova geração de okupas com a desculpa de que o direito à habitação vale mais do que o direito à propriedade. As manifestações de movimentos inorgânicos como o “Vida Justa” irão levar inevitavelmente à ocupação de generalizada de habitações, como está a acontecer em Espanha desde há vários anos.

2 Este desnorte do Governo acontece porque António Costa e Marina Gonçalves não têm a menor ideia de como vão resolver os problemas complexos (e alguns deles muito antigos) do mercado da habitação.

É confrangedor ouvir a ministra da Habitação responder consecutivamente nas sucessivas entrevistas que deu nos últimos 15 dias que “ainda estamos a desenhar as medidas” ou “não queria ser taxativa e dizer que está fechado” ou ainda “não definimos o prazo” — tudo isto dá uma ideia de amadorismo.

Vejamos as medidas principais, começando pela mais polémica: o arrendamento compulsivo por parte do Estado de casas devolutas.

Foi bastante elucidativo ouvir Marina Gonçalves a dissertar na sua primeira entrevista na SIC Notícias sobre o conceito jurídico de um imóvel devoluto. Quando o país pensava que algo devoluto é algo degradado ou abandonado, a ministra da Habitação esclareceu que essa é uma visão ultrapassada. “Uma casa vazia é uma casa devoluta”, mesmo que esteja em perfeito de estado de conservação, disse.

Se tirarmos a habitação própria e permanente e as casas de férias (a acreditar na ministra), qualquer imóvel que não tenha utilização durante um ano, é uma casa devoluta, segundo Marina Gonçalves. E qualquer proprietário arrisca-se a que o Estado tome possa administrativa do seu bem e fique com o direito de usufruto do mesmo para arrendar.

Deixando a questão de constitucionalidade para outra altura, as perguntas que se colocam são simples:

  • De acordo com o Instituto Nacional de Estatística (INE), existem 723 mil fogos devolutos, sendo que o concelho de Lisboa tem cerca de 150 mil fogos nessas circunstâncias. Como é que o Estado vai identificar cada um desses imóveis para avaliar o respetivo estado de conservação e relacionar com as necessidades de habitação de cada área geográfica?
  • A mesma pergunta feita de outra forma: se o Estado nem consegue fazer o seu próprio cadastro de imóveis — e que falta faz esse cadastro — como é que vai fazer em tempo útil um trabalho de identificação concreto de 723 mil fogos supostamente devolutos?
  • Como é que o Estado vai provar que o imóvel não é usado há mais de um ano? Já se sabe que a lei permite que as autarquias reúnam informação fornecida pelos operadores de telecomunicações e de distribuição de água. Vamos criar um grande Big Brother para vigiar os proprietários e as casas vazias? Alô Comissão Nacional de Proteção de Dados, não há aqui violação dos dados privados dos cidadãos?
  • Se olharmos para a globalidade das medidas, percebemos que o Estado compra para alugar e aluga para sub arrendar, garantindo ainda que paga rendas em atraso. Isto é, o Estado é proprietário, senhorio e fiador. Que organismos públicos vão gerir esses alugueres compulsivos? E quantos novos funcionários públicos serão necessários para fiscalizar estas políticas monstruosas? Nem o velhinho Instituto de Habitação e da Reabilitação Urbana, nem o seu atual quadro de funcionários, chegarão para um terço das novas tarefas que ai vêm.

3 Ao contrário do que proclama (ver frase citada que abre este texto), Marina Gonçalves quer mesmo fazer com que o Estado entre pela casa dos portugueses e se aproprie do seu usufruto. É de ir às lágrimas quando a ministra da Habitação, essa boa samaritana, jura que “verdadeiramente, o proprietário tem um ganho”.

Nada como esta visão cor-de-rosa dos esquerdistas bem intencionados que, vejam só, até querem ajudar os privados a gerir o seu património. Mas só pelo valor e o tempo que o Estado quiser. E sem isenção de nada — que isso é só para quem queria ceder à chantagem da ministra Marina Gonçalves. Perdão, quem queira aderir de “forma voluntária” aos programas de arrendamento.

Como de boas intenções (e da história das ideias esquerdistas) está o inferno cheio, a jovem Marina lá recorda, como aqueles vendedores de seguros com as letras pequeninas dos respetivos seguros, que a renda pode ficar para o Estado no caso de existirem “despesa com o imóvel e tenhamos de reassarcir”. Quem? O próprio Estado, claro.

Outras boas intenções — mas totalmente contraproducentes para o objetivo de aumentar a confiança dos proprietários e investidores — são as seguintes:

  • Tornar os contratos anteriores de 1990, que têm as rendas congeladas, em contratos de duração ilimitada. Serão assim eternos. Com a promessa de que haverá compensações para os proprietários. Pelo calibre das medidas já anunciadas, é melhor que os senhorios esperem o pior.
  • Limitar a 2% os aumentos dos novos contratos de arrendamento. A pergunta é simples: a ministra Marina Gonçalves sabe quando é que a taxa de inflação ficará abaixo dos 2%? Se sabe, não devia ser ministra da Habitação. Devia ser economista-chefe do Banco Central Europeu. Ironia à parte, é óbvio que nenhum proprietário ou investidor se sente motivado a arrendar com uma interferência tão direta na formação do preço do mercado.

Os socialistas não aprendem que congelar e fixar administrativamente os preços de um determinado mercado só pode dar mau resultado. Basta ver as consequências nefastas que o congelamento das rendas tiveram nos centros urbanos de Lisboa e do Porto.

4 O INE calcula que o alojamento turístico gerou receitas em 2022 superiores a cinco mil milhões de euros. São três os segmentos de alojamento que o INE tem em conta, sendo que os dois principais são a hotelaria (com um peso de 87,4%) e o AL — Alojamento Local (com uma quota entre os 8,7% e os 10,4%).

Significa que isto os estabelecimentos de AL devem ser responsáveis por uma receita anual mínima de 500 milhões de euros — mínima porque o INE não conta com os AL’s com menos de 10 camas, que representam um número muito significativo nas regiões de Lisboa, Porto e Algarve.

Nesse valor mínimo de 500 milhões de euros estão incluídos outros gastos (que não apenas o alojamento) inerentes à estadia de turistas, como restauração, supermercados, comunicações, lavandaria, etc. Ou seja, há todo um conjunto de negócios e serviços que gravitam à volta do AL que geram emprego e valor económico.

Ora, o Governo Costa decretou a certidão de óbito a prazo deste mercado ao anunciar a suspensão indiscriminada de mais licenças de AL — o alojamento rural é uma categoria própria — e o fim das atuais em 2030. Isto, claro, além de uma contribuição extraordinária que vai ser já implementada.

Pior: depois de ter regulado com sucesso o mercado do AL, gerando mais receita fiscal para o Estado e para as autarquias, o Estado será um promotor do regresso dos alugueres clandestinos e da fuga ao fisco de antigamente. O autismo ideológico explica este extraordinário caminho de ruína para o país.

Os mesmos efeitos nefastos teremos com o fim dos vistos gold. Ou seja, o país vai perder muito investimento estrangeiro no setor turístico, nomeadamente ao nível da hotelaria.

A conjugação destas duas medidas — o ataque ao mercado do AL e o fim dos vistos gold — fará com que desapareça o investimento privado que permitiu a reconstrução e a reabilitação urbana dos centros de Lisboa, Porto, Coimbra e de outras cidades.

5 Todas estas medidas anunciadas pelo Governo, nomeadamente a do arrendamento compulsivo, abriram um debate — jurídico e não jurídico — sobre o conflito entre o direito à habitação vs direito à propriedade.

Num país em que 78,3% das famílias vivem em casa própria, enquanto que 21,7% das restantes famílias são inquilinos, pensava eu que o direito à habitação e o direito à propriedade são uma e a mesma coisa.

Até por uma razão: o congelamento das rendas desde o Estado Novo até à liberalização do mercado de arrendamento com o Governo de Passos, juntamente com os juros baixos desde os anos 90, fez com fosse mais barato comprar do que alugar uma casa em Lisboa ou no Porto.

É verdade que os preços do arrendamento e do mercado de compra e venda subiram muito desde 2013. Mas não serão com o pacote “Habitação Mais” que os preços irão descer. A única coisa que o Governo Costa conseguiu foi, de facto, uma radicalização do discurso público sobre o dualismo entre o direito à habitação vs direito à propriedade.

Basta ver a manifestação deste último sábado do movimento “Vida Justa” para percebermos que estamos muito perto de regressarmos às ocupações selvagens de casas devolutas que aconteceram nos anos 80 e 90 nos principais centros urbanos.

E basta estudar o que tem acontecido em Espanha nos últimos anos (ler aqui e aqui) para percebermos toda a instabilidade social que dai advirá. Espero não ter razão, mas temo que os tais grupos inorgânicos, apoiados pela extrema-esquerda parlamentar e não parlamentar, possam recriar em Portugal as táticas espanholas.

Dizia Marcelo Rebelo de Sousa que só saberemos se o “melão” — leia-se pacote legislativo do programa “Habitação Mais — é “bom depois de o abrir”. Na realidade, já sabemos que o melão é vermelho — um vermelho bem escarlate. O que obriga o Presidente da República a interferir e a usar a sua magistratura de influência junto do Governo.